Conheci a aldeia de Cem Soldos no outono do ano passado, quando fui lá fazer um espetáculo de stand-up com o meu colega Dário Guerreiro. Apesar de só ter permanecido na aldeia poucas horas, porque não se conhece nada a fundo na estrada, fiquei cativado não só pela graciosa aldeia, como pela eficiência e dedicação do SCOCS, clube/associação que organizou tanto esse espetáculo como está à frente do quase adolescente festival Bons Sons.
Na altura, prometi que voltava em agosto, para me estrear no festival. Agora, eu sou perito em promessas vãs deste género. Desejava ir, mas no fundo era um “depois logo se vê”. Não tinha noção de que era um festival que merece juras de compromisso um pouco mais sólidas.
O meu preconceito era básico: o Bons Sons é um festival para hipsters. Hipsters com menos dinheiro e apelidos do que os hipsters do Primavera, mais novos do que os hipsters do Paredes. Mas para hipsters. Hipsters que estudam Ciências da Comunicação na FCSH (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas) e frequentam a Casa Independente. Hipsters que dobram a calça e uma vez escreveram um artigo sobre Kierkegaard para a Comunidade Cultura e Arte. Mas enganei-me.
O Bons Sons não define ninguém. Ninguém tem cara de quem vai ao Bons Sons. Cem Soldos é uma aldeia de porta aberta que exorta qualquer um a conhecer música portuguesa ao vivo sem ritos de pertença. Não é um local onde se coloque as pessoas em caixas, mas onde a fauna é tão diversificada — e descomprometida na sua diferenciação — que não há uma pirâmide alimentar social evidente.
O Bons Sons não parece ter uma faixa etária. O panorama é reconfortantemente caótico. Jovens casais que podem muito bem ter-se conhecido na aldeia a empurrar carrinhos de bebé, velhos a bebericar bagaço em esplanadas apinhadas de barbudos a comer “sandes de vegan”, quarentões divorciados no engate com homólogas quarentonas, ganzas enroladas sorrateiramente por adolescentes que nasceram depois dos Arctic Monkeys. O Bons Sons é um enorme almoço de família (mas das raras famílias em que as pessoas não gritam umas com as outras).
Cem Soldos dá ao mais desenraizado dos tipos urbanos a oportunidade de pertencer a uma aldeia. É um exemplo de desenvolvimento no interior sem condescendência. Grita personalidade e orgulho, não pena e miserabilismo. O facto de ser organizado por uma associação e não por uma promotora inquieta com o mercado dos festivais permite-lhe durabilidade e sustentabilidade. Não será fácil obliterar a genuinidade de Cem Soldos.
Não vai ser fácil estragar este festival, que é ecológico sem ver uma oportunidade de lucro nisso mesmo (oferecem o primeiro copo de plástico reutilizável e também distribuem cinzeiros portáteis). Um evento sem o ruído da presença massiva de marcas e ativações de produto, sem zonas VIPs daquelas que nem um dos frequentadores é ligeiramente importante, quanto mais muito. É um festival sem vaidade e sem pressão. Sem grupinhos e sem FOMO [sigla de "Fear Of Missing Out"; "medo de ficar de fora", numa tradução livre]. Sem influenciadores e influenciados, só influenciandos – indivíduos que influenciam e se deixam influenciar presencialmente e não através de uma série de Instastories. Bons Sons, Sem Tolos.
Recomendações:
Reservar uns dias de agosto para o ano que vem.
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