Está a fazê-lo sob a égide da iniciativa humanitária Cereais da Ucrânia (i.e., “Grain from Ukraine”), que foi lançada em novembro de 2022 e sob a qual já foram, desde então, expedidas dezenas de milhares de toneladas de cereais ucranianos para ajuda alimentar a populações carenciadas em África e noutras áreas do globo. Estes envios têm garantido o afluxo de alimentos para cenários afetados pela escassez e complementam, de resto, ao nível humanitário, as próprias exportações alimentares comerciais da Ucrânia que, apesar de terem sido fortemente impactadas pela guerra, têm continuado a desempenhar um importante papel no abastecimento alimentar do planeta com cereais e outros bens de sustento.
A Cereais da Ucrânia é implementada por Kyiv em parceria com o Programa Alimentar Mundial e com cerca de 30 países e organizações. Portugal é um dos parceiros, a par de outros países no continente europeu e de atores como EUA, Japão, Qatar e Canadá. A doação de cereais ucranianos a países vulneráveis através da Cereais da Ucrânia tem o propósito de assistir aqueles que mais precisam e, de tal maneira, contribuir para superar as consequências humanitárias e económicas da insegurança alimentar que foi criada ao longo do mundo pela própria guerra e pelo ataque à grande exportadora global de alimentos que a Ucrânia é. Assim, e ainda que a guerra em si tenha vindo a tornar-se, nos últimos meses, mais árdua e inóspita para Kyiv, o facto é que os ucranianos enviaram recentemente, por meio da iniciativa, dois carregamentos de 25 mil toneladas de alimentos para a Nigéria, a par de um outro de 7.600 toneladas para ajuda alimentar a 1 milhão de pessoas no Sudão. Antes disso, já tinham sido entregues 170 mil toneladas de cereais a Etiópia, Afeganistão, Somália, Iémen e Quénia, sendo que de futuro também deverão vir a ser beneficiados países como Moçambique, Malawi, Madagáscar, Djibouti e Mauritânia. A Cereais da Ucrânia pode deste modo ser decisiva para salvar vidas ao longo do globo e, em especial, num continente africano onde as repercussões da crise na Ucrânia, dos conflitos regionais e das alterações climáticas, entre outros, continuam a impor a fome a dezenas de milhões de seres humanos. E, de resto, pode também contribuir para o alívio dos impactos potenciais, para a segurança alimentar em África, das disrupções à navegação mercante que os ataques dos Houthis têm gerado no Mar Vermelho.
A iniciativa é financiada pelos parceiros, tal como pelo próprio orçamento de uma Ucrânia devastada e esticada ao limite pela guerra. Porém, qualquer um – incluindo indivíduos, empresas e ONGs – pode apoiar os envios humanitários através de doações financeiras. Pode ainda fazer-se notar que os cereais para entrega humanitária são comprados a produtores ucranianos – no que são priorizados os pequenos e médios produtores –, que são assim ajudados a subsistir numa época de grande incerteza e destruição.
A Cereais da Ucrânia é uma iniciativa promissora para a mitigação de carências humanitárias urgentes e para a garantia do sustento básico de populações ameaçadas pela escassez – tal como é um relevante testemunho de solidariedade humana num planeta cada vez mais conflituoso e inseguro. Devia ser, portanto, apoiada por todos os países e amplamente expandida. O mundo tem a obrigação de acompanhar e potenciar o gesto humano que a Ucrânia está a estender aos mais vulneráveis. Este gesto assume, aliás, especial relevância se visto à luz da asserção feita por Andriy Yermak, chefe de gabinete de Zelensky, quando, ainda antes do lançamento da iniciativa e, ao falar do propósito ucraniano de levar a cabo o abastecimento humanitário de cereais a países carenciados, apontou que a Ucrânia, tendo passado pelo Holodomor da era soviética e sabendo por experiência própria o que é a fome, estava, assim, interessada em acautelar a condição de outros países, num contexto marcado pela insegurança alimentar imposta pela guerra. O Holodomor foi, claro, a fome que foi infligida à Ucrânia por Estaline em 1932/33 e que resultou então na morte de milhões de ucranianos. Portugal e o Parlamento Europeu estão entre os muitos atores que reconhecem o Holodomor como um genocídio do povo ucraniano. A Cereais da Ucrânia foi lançada por ocasião do próprio aniversário do Holodomor em 2022, no que foi um gesto de grande simbolismo: o uso do aniversário do genocídio dos ucranianos pela fome para lançar uma iniciativa de combate à fome global. Como afirmado pelo ministro dos negócios estrangeiros da Ucrânia, Dmytro Kuleba, o Holodomor é um trauma histórico para a Ucrânia, que prometeu, desta maneira, a si mesma, que “nenhum país voltará a fazer o mesmo aos ucranianos [e] que sempre que possamos ajudar outros a evitar a fome, fá-lo-emos.”
O mérito humanitário demonstrado pela Ucrânia durante a guerra também se estende, explicitamente, ao próprio nível da cadeia de abastecimento comercial. Assim, e ainda que exposta à destruição de muitas das suas capacidades de produção e exportação de alimentos, a Ucrânia não cedeu e tem conseguido contribuir acentuadamente para alimentar um mundo que já antes da guerra estava a passar por graves dificuldades alimentares. Deste modo, e entre agosto de 2022 e julho de 2023, assegurou, pela sua participação na Iniciativa dos Cereais do Mar Negro, o abastecimento dos mercados com quase 33 milhões de toneladas métricas de cereais e de outros alimentos – com 57% das exportações totais e 65% das de trigo a irem para países em desenvolvimento. E, após a Iniciativa dos Cereais ter sido inviabilizada pela Rússia, Kyiv conseguiu abrir um novo corredor humanitário no Mar Negro, de tal forma assegurando as suas exportações marítimas desde então. A frota russa tem até aqui sido mantida à ilharga do corredor pela campanha de ataques com drones e mísseis que a Ucrânia tem levado a cabo contra as capacidades russas no Mar Negro e na Crimeia ocupada e pela qual conseguiu destruir múltiplos meios navais russos nos últimos meses – assim contrabalançando, de resto, as crescentes adversidades na frente terrestre. Para além disso, os ucranianos também têm exportado grandes volumes de alimentos por via fluvial e terrestre, o que inclui as cada vez mais relevantes exportações pelos portos do Danúbio. Não obstante, tudo isto tem sido alcançado sob a instabilidade que é imposta pela guerra e pelos bombardeamentos que a Rússia tem, do final da Iniciativa dos Cereais em diante, dirigido contra os portos marítimos e fluviais da Ucrânia.
A Ucrânia está, porém, decidida a dar firme continuidade às exportações e a proteger o espaço aéreo do novo corredor – no que tem de ser inabalavelmente apoiada pelos aliados. Da mesma forma, pretende revigorar a economia, após a proeza inesperada de um crescimento de quase 5% em 2023, e está, com efeito, determinada a emergir da guerra como uma democracia moderna plenamente integrada na União Europeia e na NATO. Para além disso, e a par dos envios humanitários e das exportações de alimentos, está a contribuir para a segurança alimentar do planeta também por via do trabalho do Grupo Internacional de Coordenação para a Prevenção da Fome, que foi formado sob os auspícios da Cereais da Ucrânia e que tem a missão de desenvolver um programa de ação global para prevenir o agravamento da crise alimentar mundial. Adicionalmente, Kyiv tem estado a falar com países africanos com vista à criação, em tais países, de pólos de abastecimento de cereais ucranianos, a partir dos quais esses cereais possam ser fornecidos a África mesmo em tempos de crise. Tudo isto expressa uma Ucrânia moderna e dinâmica que, longe de ter sido quebrada pela guerra, está a afirmar-se como uma força de paz e legitimidade no palco global.
A Cereais da Ucrânia é vantajosa para as populações apoiadas e para os próprios produtores ucranianos. Porém, também o é para os países ocidentais, que têm, através de um enérgico e publicamente visível envolvimento na iniciativa, a oportunidade de reforçar laços com África – algo que assume especial relevo face à crescente influência, ao longo do Continente, de uma Rússia que é acusada de cultivar e explorar sentimento antiocidental no seio das sociedades africanas. A iniciativa deveria ser, portanto, expandida e amplamente publicitada à escala internacional. Uma adequada publicitação da Cereais da Ucrânia também permitiria enfatizar o valor humanitário das exportações ucranianas, o que contribuiria significativamente para proteger de agressões adicionais as capacidades agrícolas e de exportação da Ucrânia.
Contudo, a Cereais da Ucrânia também é importante para relembrar o mundo da realidade da fome global numa era de turbulência aumentada – e, para o consciencializar da necessidade imperativa de dar resposta a esta questão. Aqui, devem fazer-se notar as palavras de Ulisses Correia e Silva, primeiro-ministro de Cabo Verde, quando, em finais de novembro, e para além de afirmar o apoio cabo-verdiano à Cereais da Ucrânia, constatou que a dignidade dos milhões de seres humanos que sofrem as consequências da guerra na Ucrânia deve ser colocada em primeiro lugar, e apelou, assim, à ação firme e concertada dos Estados para a restauração da cadeia de abastecimento de cereais. Todos deviam abraçar este propósito, pelo vigoroso apoio à Cereais da Ucrânia e às exportações ucranianas. Porém, e ultimamente, também há que pressionar Moscovo para que cesse todos e quaisquer ataques contra as capacidades agrícolas e portuárias da Ucrânia – na aceção de que tais capacidades são indispensáveis à segurança alimentar global.
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