Aos três anos fui diagnosticado com um neuroblastoma toráxico no mês de Setembro. Estive internado no IPO do Porto durante algum tempo e foi neste período que surgiram as primeiras memórias que guardo comigo e que nunca irei esquecer: o meu quarto, a sala dos brinquedos e dos livros, o cadeirão onde tirava sangue, o cateter e a rede que tinha no braço, o corredor escuro e húmido daquele piso subterrâneo pelo qual passava para ir fazer as TACs.
Após a operação em que me removeram o cancro, tive a sorte de ter alta do internamento antes do Natal. Não me lembro perfeitamente daquele Natal passado em casa dos meus avós com a minha família, mas tenho alguns fragmentos dessas memórias. Nesse ano tive toda a minha família comigo, até as minhas primas e os meus tios de França vieram passar o ano connosco, e fomos todos buscar um pinheiro a um terreno do meu avô para ter uma árvore de Natal natural em casa que era enorme, ia quase até ao tecto!
Na noite de consoada, foi a primeira vez em que fui à Missa do Galo na Sé, e só abri as prendas na manhã de dia 25. Estava tão feliz por ter tido tantas prendas! Lembro-me de me sentir fraco, mas animado por ter tantas prendas, tantos brinquedos, só que não sabia, nem tinha a capacidade de perceber, o porquê de nesse ano estar rodeado de tanta gente. Nos anos seguintes já não tive tanta gente a celebrar o Natal em casa, já não tive tantas prendas, e só me apercebi do porquê anos mais tarde. Mal eu sabia da sorte que tinha tido quando ainda hoje tantas crianças, adolescentes e jovens passam a época natalícia numa cama de hospital, a lutar pela vida ou a recuperar num serviço de pediatria oncológica quando aquilo que querem é poder estar juntos das suas famílias e amigos no calor acolhedor da sua casa a celebrar aquela que é a época mais festiva do ano.
O mês de Dezembro passou, tal como todos os outros meses que se seguiram e eu continuava a ser uma criança que não fazia a mínima ideia daquilo que estava a passar, mas que achava que aquilo era normal e que todos os meninos também faziam: todos os exames, todas as consultas, todas as viagens que fazia desde Vila Real, onde vivia, até ao IPO do Porto no carro da minha mãe depois da alta do internamento (que sempre fez questão de me levar no carro e não numa ambulância para não estranhar e assim fazer de conta que íamos numa viagem).
Inicialmente ia algumas vezes por semana, depois uma vez por semana, duas em duas semanas e por aí adiante até que, no final, ia apenas uma vez por ano. Fiz aquela viagem tantas vezes que ainda hoje conheço todo o caminho, todas as curvas, todos os metros do IP4 e da A4 pelos quais passei centenas de vezes. Eu adorava ir ao IPO! A minha mãe fazia um jogo comigo que consistia em tentar contar todos os carros que visse de uma certa cor, e dessa forma lá ia distraído durante uma hora de viagem até ao Porto e outra hora a voltar. Quando chegava ao hospital a minha mãe dizia-me sempre que se me portasse bem depois das consultas e dos exames levava-me à Toys’R’Us do NorteShopping e deixava-me levar um brinquedo, e eu, como adorava brincar, acabava por gostar sempre de ir às consultas para depois poder levar um brinquedo novo para casa.
A frequência das consultas e exames foi diminuindo conforme o tempo foi passando e foi em 2009 que recebi a alta e não voltei a mais nenhuma consulta de oncologia. Felizmente ficou tudo bem.
Eu era criança e não sabia o que tinha, apenas me lembro de a minha mãe me dizer que tinha um bichinho dentro de mim e que precisava de ser tirado e que precisavam de ver se tinha saído mesmo ou se não tinha voltado. Só por volta dos meus 14 anos é que comecei a aperceber-me daquilo que tinha tido e da gravidade da minha doença. Eu tinha tido um cancro. Afinal nem todas as crianças precisavam de ir a consultas no hospital, nem todas as crianças precisavam de fazer exames, nem todas as crianças eram doentes.
Tal como grande parte dos jovens que sobrevivem a um cancro, eu decidi afastar-me completamente desta realidade. O cancro é uma doença demasiado cruel que, mesmo em criança, vi amigos meus a não resistirem, e por isso o mais fácil a fazer foi desligar-me de tudo isto e fazer de conta que nunca tinha acontecido.
Mais anos passaram, passei muitos mais Natais junto da minha família, mas senti sempre que faltava algo. Não falava abertamente que tinha tido um cancro, mas ficava extremamente frustrado quando dizia isso às pessoas e me respondiam dizendo “eu percebo”. Não percebem. Não sabem o que é a rotina num hospital, não sabem o quanto dói, não sabem o quanto isto afeta psicologicamente uma criança. Vim para Lisboa estudar Direito, e foi então que decidi começar a procurar pessoas que tinham passado pelo mesmo que eu e foi aí que voltei a encontrar a Acreditar. A Acreditar já me tinha apoiado quando estive doente e até cheguei a ir a festas de Natal da Acreditar, mas com o passar do tempo acabei por me esquecer desta associação, apesar de hoje poder dizer que é das coisas mais importantes que tenho na minha vida. Aqui encontrei pessoas que realmente me percebem, podem não ter passado pelo mesmo que eu, mas temos uma história que nos une.
E foi também na Acreditar que me apercebi realmente do que é ter um cancro, agora que sou um jovem adulto e tenho uma perspetiva totalmente diferente da vida da que tinha quando fui diagnosticado. Apercebi-me que ter tido um cancro, mesmo que há quase 20 anos, limita-me imenso. Se um dia quiser comprar uma casa e pensar em pedir um empréstimo provavelmente não o vou conseguir fazer, porque quase todos os bancos pedem que se faça um seguro de vida ou seguro de saúde, e estes seguros são extremamente discriminatórios: não importa se ficamos ou não com sequelas, se temos riscos de reincidências, dos tratamentos que fizemos; se tivemos um cancro os prémios dos seguros aumentam num nível astronómico o que efetivamente impede o acesso a um empréstimo de elevado valor. É legal? Não é obrigatório por lei fazer um seguro de saúde ou de vida, mas quase todos os bancos o exigem. É legal limitar o acesso a estes? Aquilo que é ilegal é recusar um seguro, mas não é ilegal aumentar o prémio para valores absurdos. É justo? É óbvio que não, nós não tivemos culpa de ter tido esta doença e quando toda a sociedade reconhece que é demasiado duro para uma criança passar por ela, parece irónico ninguém querer saber das dificuldades que os sobreviventes têm de encarar.
O cancro é cada vez mais considerado uma doença crónica, que mesmo após a cura possa vir a revelar efeitos tardios. Fará sentido uma criança ser largada no Sistema Nacional de Saúde após a alta? Acredito que não, não faz sentido não existir um acompanhamento especializado por uma equipa multidisciplinar ou, pelo menos, por um médico oncologista que tenha conhecimentos sobre este assunto de forma a prevenir mais eficazmente todos os efeitos tardios ou secundários que possam vir a existir.
Felizmente o IPO de Lisboa reconhece esta necessidade dos sobreviventes e implementou uma consulta anual de acompanhamento, onde independentemente da idade o sobrevivente pode ver todas as suas dúvidas esclarecidas num ambiente especializado que é capaz de dar respostas às suas necessidades. Não faz sentido os sobreviventes que foram tratados noutros centros oncológicos de referência não poderem ser acompanhados da mesma forma quando todos têm as mesmas necessidades, riscos e anseios.
Hoje, com 22 anos e a terminar a licenciatura, sei muito mais o que é ter um cancro do que quando fui diagnosticado com três. Posso já não ter a minha vida ou a minha saúde em risco, mas tenho o meu bem-estar pessoal, social e económico ameaçados por um conjunto de fatores que, tanto a sociedade como o Estado, parecem não dar importância e que deveriam ser reconhecidos como direitos dos sobreviventes de cancro infantil.
Resta-me desejar um feliz Natal a todos, em especial a todos aqueles que ainda lutam contra um cancro infantil, a todos os sobreviventes que podem passar esta época em casa, a todas as famílias que conhecem a realidade da doença oncológica, e a todos os médicos, enfermeiros e auxiliares que todos os dias trabalham para melhorar a vida dos doentes com cancro infantil.
Sobre a Acreditar
A Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio em todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional; social e jurídico. Em cada necessidade sentida, dá voz na defesa dos direitos das crianças e jovens com cancro e suas famílias.
Com a experiência de quem passou pelo mesmo, enfrenta com profissionalismo os desafios que o cancro infantil impõe a toda a família.
Comentários