Para mim, que fui educado na Idade Média salazarista num colégio de padres, ouvir o Papa Francisco - queria escapar mas acabei de ver um documentário sobre o seu pensamento - foi uma surpresa impressionante.
Reconheço que nunca lhe tinha prestado muita atenção, uma vez que a minha educação me tornou fortemente crítico dos princípios e da actuação da Igreja Católica Apostólica Romana - é preciso não esquecer que há outras igrejas cristãs, com uma visão do mundo ainda mais medieval (no sentido da crendice medieval) do que a “multinacional italiana” (classificação do artista Bordallo II).
Devo dizer, antes que me comecem a apedrejar, que gostei muito da Jornada e considero os resultados, materiais e morais, muito positivos.
Para já, fiquei surpreendido com as abordagens escolhidas por Francisco. Nada daquela conversa de que a fé está ameaçada, os incréus precisam de ser convertidos, os bons vão para o céu e os maus para o inferno. Francisco falou dos problemas concretos do nosso tempo, que independem das religiões, e se devem a uma maldade - ou indiferença - humana que precisa de ser combatida. Ou seja, uma conversa que me fez pensar no Dalai Lama e esquecer momentaneamente das perversões que a Igreja de Roma continua a fingir que não existem. Fiquei mesmo a pensar que, se o Francisco pudesse andar à rédea solta - ou seja sem a influência reacionária dos que rodeiam o Papa - corrigiria alguns dos maiores tabus da sua Igreja, como o casamento dos padres e as relações homossexuais. A eutanásia continuaria a ser inaceitável - ele disse-o - mas praticamente todos os hábitos e comportamentos da Europa do Século XXI seriam aceites. Até nem é preciso ser católico-apostólico-romano para ir para o céu, imagine-se!
A vantagem da estrutura piramidal da Igreja romana, com um Shaman infalível no topo, é que ele pode ditar o pensamento dos fieis, enquanto nas outras igrejas (excepto, precisamente no budismo do Dalai Lama) não há ninguém que decida quais são as leis do bem do mal. Há muçulmanos humanistas e pacíficos, porque decidiram ler assim o Alcorão. Outros muçulmanos têm uma leitura diferente do mesmo texto e acham que isso os obriga ao martírio. Os judeus, igualmente, têm um grupo que não difere em nada dos muçulmanos mais radicais, e uma massa mais geral que brilha - mais do que brilha, dirige - as artes e a cultura contemporâneas, além de mostrar um extraordinário espírito científico e inventivo. Os israelitas - que não é a mesma coisa que “os judeus”, como gostam de salientar - também têm vários líderes espirituais com opiniões diferentes. Uma atitude que se pode louvar na religião judaica é a aversão ao proselitismo - ou seja, não querem converter ninguém. O Povo Escolhido só se reproduz geneticamente, portanto as conversões são vistas com desconfiança.
Mas estou a desviar-me.
Quando era adolescente, um tio culto e excêntrico explicou-me. “Isto de Deus e do espiritual é como um produto. Depois, há as religiões que são os produtores que vendem o produto com diferentes embalagens.” Nunca mais me esqueci porque, realmente, esta “revelação” fez-me ver a posição real das religiões, sem sequer pôr em questão a natureza do produto, a existência de Deus.
Então, estas várias instituições ensinam-nos o que é o Divino e como nos devemos relacionar com ele. Algumas permanecem imutáveis, como os budistas e os muçulmanos; outras evoluem, como a Católica Romana (acabei de o perceber!). Outras, ainda, nascem como versões do cristianismo, normalmente ainda mais retrógradas: são os chamados Evangélicos. O seu forte, e a razão do sucesso, é a promessa da felicidade eterna aqui mesmo na terra, imediatamente. Não é preciso morrer para conhecer a divina felicidade. Claro que uma ideia tão irrealizável só pode ser vendida a pessoas muitos simples - mas o que não falta são pessoas simples, sobretudo pobres.
Quanto ao conceito de Deus, que é comum a todas as religiões - é o “produto”, não esqueçamos - tem sido cada vez mais posto em causa, à medida que a ciência e as técnicas avançam em território que fazia parte do “mistério” religioso. Um telescópio como o James Webb, que nos mostra a vivo e a cores um universo de milhões de galáxias, coloca em questão a ideia de Céu. Ir para o Céu significa o quê? Viajar para a estrela K-272 duma constelação ainda sem nome?
Claro que há sempre uma resposta religiosa imbatível: a Fé. Pode uma coisa fazer ou não fazer sentido, se se acredita nela não há argumentos possíveis. A Fé é formidável e um verdadeiro pacificador para as angústias humanas.
Mas voltemos ao Papa Francisco. O que ele compreendeu é que a tal Fé, e mais a Esperança, são os melhores pressupostos para a Caridade. E Caridade não quer apensas dizer dar esmola aos pobrezinhos, quer dizer “care”, cuidar dos outros. Ou educando-os, ou alimentando-os, ou apenas reconhecendo que são pessoas como nós, com os mesmos direitos. Ou seja, o Papa Francisco já não quer converter ninguém, nem mandar para a fogueira os incréus. O que ele quer é que todos, católicos apostólicos romanos ou animistas, se preocupem sobretudo com o bem estar dos outros. (Este é também um princípio maçónico, mas é melhor não falar nisso para não criar confusões. Aliás, os maçons, tal como os católicos, também não fazem o que pregam. Adiante.)
Esta nova função da religião católica, ser um instrumento de justiça e igualdade, evidentemente que é retórica, mas mesmo assim é um grande avanço em relação à postura “missionária” da igreja do século passado. E é retórica, como se sabe, não porque Francisco não queira que ela seja posta em prática, mas porque, como está fechado dentro duma muralha tenebrosa de cardeais e bispos (e outros cargos que não me ocorrem) que formam o aparelho do Vaticano.Como acontece em todas as grandes empresas, entre as quais o Estado é a maior de todas, é extremamente reactivo a mudanças. Para quê mudar, se assim está bem?
Finalmente, levantou-se a questão se a vinda de Francisco a Portugal era um benefício ou um prejuízo pecuniário. Acho a questão bizantina, isto é, inútil. Primeiro, nunca se conseguira contabilizar quanto se gastou exactamente (e quanto gasto duvidoso, em ajuste directo) e quanto gastará o suposto milhão e meio de miúdos que vieram alegremente olhar para o infinito. Mas estas coisas não podem ser medidas apenas em valor pecuniário. A Jornada mostrou o nosso país aos jovens estrangeiros e tornaram-no real aos 500 milhões de telespectadores que vão assistir à festa apoteótica final.
Também o convívio e a alegria desses jovens, vindos de todas as partes do mundo, é um bálsamo de ver, num mundo em que só se conhecem mortes e falcatruas. Sempre achei que, quanto mais pessoas de diferentes países se conhecessem, menos hipótese haveria de se guerrearem.
A Jornada pode ser comparadas, em grandeza e universalidade, aos Jogos Olímpicos, Esposições Mundiais, e campeonatos da bola. Mas, ao contrário de todos estes mega-acontecimentos, não são competitivas e têm uma mensagem muito clara de fraternidade e igualdade. Esses valores são incalculáveis.
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