As palavras conseguem ser deliciosas como um bom prato — quando, por vezes, vou a uma livraria comprar o novo livro de um dos meus autores preferidos, sinto fisicamente água na boca. Quando oiço algumas palavras nas minhas línguas preferidas, sinto qualquer coisa na barriga, uma satisfação física difícil de explicar. As palavras são qualquer coisa de físico, que saboreamos com a língua, mordemos com os dentes, apreciamos com o olhar e deixamos a soar no nosso cérebro, imaginando-lhes cores, ligações secretas, formas concretas. 

Pois hoje apetece-me fazer uma homenagem às delícias da nossa língua. Para tal, nada melhor do que tentar olhar para essa língua com olhos (e boca) de quem a vê de fora. Há uns tempos, assisti a uma conferência em Lisboa que comemorava os 30 anos de Português nas instituições europeias. A certa altura, começou a falar Ulrike Hub, funcionária alemã da Comissão Europeia, que decidiu contar as suas aventuras na língua portuguesa. Arrebitei as orelhas: aquilo era muito giro (uma bela palavra portuguesa). Aquelas expressões portuguesas parecem-nos perfeitamente banais — e, no entanto, aos ouvidos alemães da Ulrike, tinham qualquer coisa de diferente e muito saboroso...

Pus-me a rabiscar. Precisava de apontar aquelas deliciosas palavras portuguesas. Aqui ficam sete exemplos: 

«Pequenos nadas»

A primeira era, de facto, deliciosa: «pequenos nadas». Sim, aos ouvidos daquela alemã esta expressão fazia cócegas divertidas. Pensem bem como nem notamos que os «nadas» não podem ser nem pequenos nem grandes — são nadas. E a vida, claro, é feita desses pequenos nadas… Uma expressão ilógica? Ah, sim — mas deliciosa. No fundo, é um dos pequenos nadas de que se faz o irresistível encanto da língua portuguesa.

«Barriga das pernas»

Claro que a nós não parece, mas é de facto uma expressão curiosa. Imagino que um alemão, quando encontra esta expressão pela primeira vez, pense num umbigo no meio das pernas. Ou mesmo numa pequena criança a nascer na barriga da perna de um qualquer deus grego (que tinham tendência para essas maluqueiras).

«Céu da boca»

É tão normal, mas tão normal que não percebemos como é atrevida esta expressão (que, diga-se, não é só portuguesa): pois quem não encontrou já o céu num bom beijo? E andamos nós com esta poesia toda nos lábios sem lhe dar valor. Sim, quem fala português tem um céu dentro da boca. Uma alemã arregala os olhos, claro está. E aproveita as delícias desta língua, pois então.

«Lusco-fusco»

A luz mais difícil de definir, mas que está inteira nesta palavra portuguesa. Não sei porquê, mas lembra-me «luz que foge», o que até nem é mal pensado. À Ulrike, não sei por que razão soa bem esta palavra — talvez a repetição do «usco»? As repetições não ficam por aqui...

«Corre-corre»

Há outras línguas que fazem isto: repetem uma palavra para lhe dar outro significado. Aqui, a coisa é quase cinematográfica: vemos a pessoa a correr e logo, num corte, a correr para outro lado. Uma palavra que é um filme cómico só por si.

«Vai-não-vai»

E voltamos às repetições, desta vez com um «não» no meio. É a imagem da indecisão, de quem queria beijar, mas afinal não beija, de quem sabe o que quer, mas hesita, de quem lhe apetece, mas sabe que não deve... Não é delicioso pensar que um verbo e a sua negação, bem juntinhos, se transformam num peculiar substantivo da nossa língua? 

«Fuz»

Apontou-nos a Ulrike para esta falha da língua: se nós temos «faz» («ele faz»), «fez» («ele fez»), «fiz» («eu fiz»), «foz» («a foz do rio») — só temos de nos esforçar um pouco para ter um «fuz». E tem muita razão: quem de entre nós se atreverá a dar um significado ao nosso «fuz»?

É no que dá pôr-me a ouvir a nossa língua pela mente duma alemã. Tudo se torna menos familiar, menos habitual e por fim — como acontece quando repetimos uma palavra comum muitas vezes — estranho e delicioso. Por momentos, ouvimos as nossas palavras como se fosse a primeira vez.

Será também aí que reside um dos grandes prazeres de aprender línguas: a estranheza da língua dos outros é sempre imensa e há momentos em que até as nossas palavras nos aparecem como estranhas invenções que não são de ninguém em particular, mas de todos nós — deliciosas invenções que vamos saboreando pelos séculos fora.

(Texto publicado anteriormente.)

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita.