A morte é mais triste neste caso, pois nada embeleza. A morte tem o condão de filtrar grande parte da história e da personalidade das pessoas; põe-nos a falar só das coisas boas, e a exagerá-las. No caso do Zé Pedro a morte nada embeleza, não faz revisionismos, isto porque a maior parte da história e da personalidade dele era feita de coisas boas. O Zé Pedro era bom; disse-lho em vida e digo-o agora num pretérito imperfeito que me dilacera.
Hoje até é permitido que puxemos a nós a dolência, que nos finjamos todos família enlutada. É legítimo homenagear o Zé Pedro com relatos simples onde também somos intervenientes, porque o toque angelical dele era mesmo esse: ser simples, e equiparar-se a nós nas histórias. Exactamente por isto, vou falar pouco do músico célebre e mais do proveito que ele dava à celebridade – partilhava-a, atribuía importância ao seu interlocutor, oferecia-nos a naturalidade dum tipo naturalmente bom. Terra-a-terra, aquele toque angelical.
Conheci-o há quase 20 anos, era eu ainda mais ninguém do que sou hoje. Jantou connosco, uns putos imberbes do punk-rock que iam, juntamente com ele, ser jurados num concurso de bandas em Corroios. O nosso deslumbramento com o Zé Pedro manteve-se todo o jantar, mas mudou de natureza: primeiro foi fascínio pela estrela do rock; muito depressa se tornou em fascínio pelo gajo porreiro, absurdamente acessível, de simpatia insuperável. Pode não parecer grande história, mas é por isso que funciona. É inédita uma elegia fúnebre que contempla bifinhos com champignon na margem Sul, e um gajo comum a comer connosco. Gajo comum que afinal era gajo gigante, e apequenava-se até ao tamanho certo de homem bom.
Conheceu-me ele uma década mais tarde. Na Rádio Radar anunciou que ia ver um concerto meu, e não o justificou por qualquer música, mas por causa duma entrevista que eu tinha dado. Ganhei vontade de lhe dar um abraço e, ainda assim, no nosso reencontro foi ele quem me ofereceu o abraço primeiro. A generosidade do Zé Pedro era mais rápida que a própria sombra, e muitos músicos portugueses o sabem. Era generoso em palco e fora dele. Era o cúmulo da alegria a tocar, e a imagem da felicidade quando descobria e apoiava novas bandas nacionais. Era tão bom a ser bom, o sacana.
Repetimos os abraços várias vezes ao longo dos anos. O último que trocámos foi na festa do seu sexagésimo aniversário. Tinha-lhe dedicado um post nesse dia, uma espécie de carta aberta a um país que não o merece. Dizia:
“Por muito frankensteiniano que isto pareça, um coração gigante e um fígado recente não são coisas de monstro. Nem sequer de monstro sagrado.
O Zé Pedro não é um vulto, nem uma personagem. Não é um monstro sagrado. É o oposto, e a prova que somos um país avançado no roque enrole, por conseguirmos consagrar como figura de proa aquele que se excede nas melhores características dos comuns. Em generosidade, fixeza e porreirismo não há 60 anos mais bem completados.
Puxar o braço da guitarra como um bad boy e sorrir como o melhor gajo do mundo – como é que hoje as nossas janelas não estão cheias de bandeiras verde e vermelhas?”
Foi há pouco mais de um ano, mas quem me dera que fosse para sempre. Escrever-lhe-ia homenagens por todos os aniversários redondos, angulares, obtusos que celebrasse.
As últimas palavras públicas que lhe dirigi foram estas, mas ele continuou a estar encomendado em conversas privadas. Sempre que alguém (com pouco tino) me acusava de ser, simultaneamente, músico e simpático eu respondia "Oh pá, não estás a ver o Zé Pedro".
Um rebelde cortês, uma montanha de generosidade, o rock'n'roll mais abraçável. Vamos lá ver se aprendemos alguma coisa, mesmo que nem um acorde de Xutos saibamos tocar.
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