As gerações mais velhas falam, maioritariamente, português, mas os mais novos cada vez menos. Nas cidades, o outro idioma está espalhado por todo o lado e poucos conversam em português. Em muitas vilas, ouvimos português na boca dos adultos, mas as crianças já brincam na outra língua. Todos aprendem português na escola, mas usam-no cada vez menos.

Pondo números à catástrofe: cerca de 70% dos falantes com mais de 70 anos falam português; mas entre as crianças até dez anos, apenas 20% usam a nossa língua. O que diríamos? Diríamos que a língua estava a caminhar para o desaparecimento. Quem se importasse com ela ficaria seriamente preocupado — não que a vida noutra língua não seja possível, claro está. Mas a nossa língua, a língua dos nossos avós, da nossa literatura estaria a desaparecer. Seria, de forma contida, algo triste. Seria uma perda cultural irreparável. Uma catástrofe cultural.

Ora, é isso mesmo que está a acontecer na Galiza: os números que acima referi são reais, mas referem-se ao uso do galego no próprio território onde é a língua própria — e oficial, em conjunto com o castelhano. Todos os galegos aprendem galego na escola. Mas, em casa, é muito habitual termos avós que conversam entre si em galego e netos que conversam entre si em castelhano. Todos sabem as duas línguas, mas o uso é muito diferente de geração para geração. Quem se preocupa com a língua galega, na Galiza, está inquieto. Mais do que inquieto!  

O galego tem outro problema. Durante séculos, não foi oficial: só nos anos 80 do século XX se tornou língua oficial, apesar de sempre ter sido a língua da larguíssima maioria da população até então. Ora, na época em que passou a ser a língua da administração galega, havia duas correntes: alguns especialistas defendiam que o galego era uma língua separada de todas as outras e que deveria usar uma ortografia e uma norma que, nas suas escolhas, a aproximavam de certas opções do castelhano. Por exemplo, o uso do «ñ» e do «ll».

Uma outra corrente defendia que o galego devia aproximar-se mais do português — afinal tanto o galego como o português descendem duma mesma língua medieval. Esta última corrente, chamada reintegracionismo, defende, no fundo, que o galego é uma variante da nossa língua. Um dos grandes defensores do reintegracionismo, nessa época, era o filólogo e escritor Ricardo Carvalho Calero. Carvalho: era mesmo assim que ele escrevia o seu nome nos últimos anos, com uma ortografia muito próxima da portuguesa. Neste vídeo, vemo-lo a defender o galego com um sotaque muito diferente do nosso, mas com palavras e frases que mostram bem como o galego está próximo do português (atente bem nas palavras, não nos sons):

Nos anos 80, acabou por vingar a perspectiva que defendia o galego como uma língua separada do português — embora mesmo nesta corrente o português sempre tenha sido visto, em teoria, como boa fonte de vocabulário. O reintegracionismo, no entanto, não morreu, mantendo-se como corrente minoritária. É possível encontrar livros publicados tanto na ortografia oficial (uma larga maioria) como na ortografia reintegracionista. A relação entre os dois campos foi tensa durante muito tempo. Uns e outros defendem o galego e o seu uso, mas têm ideias diferentes sobre como proteger a língua.

Ora, apesar da diminuição do uso, o galego enquanto língua de cultura e literatura é reconhecido todos os anos no importantíssimo Dia das Letras Galegas — que é sempre no dia 17 de Maio. Todos os anos é escolhido um escritor ou figura galega que sirva de tema para as comemorações oficiais. Durante o ano, a Televisão da Galiza, o Governo Galego e as várias instituições da região organizam exposições, documentários, programas e tudo o que for possível para divulgar a figura escolhida. Previsivelmente, as figuras escolhidas não costumam estar enquadradas no campo reintegracionista. 

Até este ano. A Real Academia Galega, instituição que regula a norma oficial da língua — norma que não é reintegracionista — escolheu precisamente Ricardo Carvalho Calero como figura de 2020. Este parece ser um passo, entre outros, de aproximação dos dois campos. Todos reconhecem que o galego precisa de protecção especial. Ora, saber que, em galego, é possível comunicar com os muitos milhões de falantes de português ajuda a dar prestígio social à língua. 

Em Portugal, pouco ou nada ouvimos falar destas questões galegas. E, no entanto, o galego — em qualquer uma das suas variantes — está muito, muito próximo do português (em especial do português popular do Norte). Ou bem que é a mesma língua ou a língua mais próxima da nossa. 

A nossa língua ou a nossa língua-irmã está a desaparecer aqui bem perto, a norte da fronteira. O galego de hoje em dia descende da língua que falavam os primeiros portugueses — e os galegos de então, claro. Faz parte da nossa história. Encontramos por lá palavras tão portuguesas e tão esquecidas como «asinha» (que os galegos escrevem, muitas vezes, «axiña»). Os galegos usam os nossos artigos, muitos dos nossos verbos, têm uma sintaxe arrepiantemente próxima da nossa. Até têm, vejam bem, a «saudade», assim mesmo, escrita desta maneira (também têm a «morriña», porque nisto das palavras há sempre lugar para mais uma).

Por isso, digo: o Dia das Letras Galegas — principalmente num ano em que homenageia um escritor que decidiu usar «lh» para escrever o seu nome e que defendia a aproximação ao português — é também um pouco nosso. 

O que podemos fazer? Nada de especial: afinal, o galego só pode ser salvo pelos galegos. Mas podemos ouvi-los com mais atenção, usar a nossa língua quando conversamos com galegos, começar a conhecer um pouco melhor os nossos vizinhos do Norte, vizinhos que — quando não estão a falar castelhano — falam qualquer coisa que se não é a nossa língua é o diabo por ela. 


Marco Neves | Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu último livro é o Almanaque da Língua Portuguesa.

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