Numa época em que somos toldados pela ilusão do mundo digital, do consumo imediato, do menos humano e, muitas vezes, nada genuíno, há famílias que enfrentam a realidade de uma forma hercúlea e que por isso merecem que não nos esqueçamos delas.

Quando os pais se sentam num gabinete médico e recebem a notícia de que o seu filho tem cancro, o mundo deles para.

"A vida travou a fundo!"Maria do Carmo, mãe do Diogo  

A partir daquele minuto, todos os sonhos e projectos de futuro que uma mãe tinha para o seu filho e a faziam sorrir, deixam, de repente, de fazer sentido e dão lugar à preocupação, à incerteza, aos estados ininterruptos de ansiedade e ao medo. Esse passa a ser um sentimento omnipresente na vida da sua família. 

"Há dois anos a minha vida pessoal e profissional parou abruptamente, o meu filho era muito mais importante que tudo o resto. Ele estava doente e precisava incondicionalmente de mim"Maria do Carmo, mãe do Diogo  

Depois do impacto do diagnóstico, iniciam-se os tratamentos e, frequentemente, uma mãe tem de deixar outros filhos, também eles ainda menores, em casa. Como as despesas não param, porque a vida lá fora não se compadece, o pai vai-se desdobrando entre o trabalho, as idas à escola e as visitas ao seu filho em tratamento, agora, quase impossíveis devido às restrições que se impõem com a pandemia.

Entretanto, a Isabel deixou de ser chamada pelo seu nome e passou a ser só a mãe do Luís, a alimentar-se quando é possível ou quando se força a comer qualquer coisa nos momentos de repouso do seu filho. Está mais “descansada” porque ele já é um adolescente. A mãe da bebé da cama ao lado, por vezes, nem água bebe para que a Matilde não grite e chore quando ela se afasta para ir ao quarto de banho, mesmo que por escassos minutos.

Entre as dores, a má disposição e o não querer comer, o seu filho vai percorrendo os desafios da doença e dos tratamentos. 

Ao meu bebé foi lhe dito, tens de parar!

15 anos e dizem-nos: Diogo tens de sofrer, não há outra forma de te curar!

Resposta do Diogo: "Se não há outra forma, vamos a isso! Só quero ficar bem!"

"O nosso menino, teve de se tornar um homem à força e digo-vos, tem sido testada a sua resistência ao limite, mas o sorriso é sempre este, e vai acalmando os nossos corações, independentemente da batalha ser difícil.”  Maria do Carmo, mãe do Diogo

É importante referir que os cuidadores são confrontados, in extremis, com a dicotomia da sua vulnerabilidade e a sua capacidade de resiliência.

Por vezes, somam-se, aos dois anos previstos de tratamento, outros longos anos. A situação corrói, irremediavelmente, as relações conjugais mais frágeis, a comunicação com os outros filhos e o acompanhamento do seu crescimento. Torna-se frequente a completa anulação da própria imagem enquanto ser individual com necessidades próprias específicas e a paragem laboral, geralmente da mãe, que seria apenas temporária, passa, não raras vezes, a ser definitiva.

A angústia da possível perda do filho é permanente e ganha mais força quanto maior for a gravidade da doença diagnosticada ou a situação de recaída, em que a possibilidade de morte se torna mais provável. O tempo passa e o muito que havia a fazer vai-se convertendo no pouco que já há a fazer. Segundo os dados de que dispomos, apesar dos 80% de sobreviventes, o número de crianças que falecem por ano de cancro é impossível de aceitar. 

"Tanto que o nosso Dioguinho pediu para voltar para o mar, dizia que o mar o curava... hoje transformou-se num verdadeiro Tritão. Agora os mares são teus, meu amor." Maria do Carmo, mãe do Diogo

Quando o inevitável acontece, a família encontra-se numa situação de completa exaustão e os pais vêm-se obrigados a regressar ao trabalho em cinco dias, previstos por lei, após a morte de um filho. Não restam dúvidas de que é urgente cuidar dos cuidadores.

"Agradeço todos os dias por ter tido a oportunidade de ser tua mãe/pai..."

"Não acredito que haja maior sofrimento que este. Perder uma filha é perder a luz que ilumina o dia, perder o sentido da nossa caminhada". - Sara, mãe da Matilde 

Há um mês perdi a pessoa que mais amava neste mundo, a minha irmã. Parece que a minha vida ficou suspensa, na expectativa que tudo não passasse de um pesadelo, partiste deste mundo e por mais que já se tenha passado um mês, ainda não consigo despedir-me. Não tenho forças para aceitar e para dizer adeus a irmã incrível que és e serás sempre! " - Maria Beatriz, irmã da Matilde

Os pais que perdem um filho, necessitam de um tempo para voltar a casa, iniciar o processo de reestruturação de toda a dinâmica familiar e prepararem-se para o regresso à vida activa laboral e social. É premente que a sociedade entenda que o luto de uma vida não cabe em 5 dias.

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Telma de Sousa é Gestora da Região Centro da Acreditar – Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro. A Acreditar existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio em todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional, logístico, social, entre outros. Em cada necessidade sentida, dá voz na defesa dos direitos das crianças e jovens com cancro e suas famílias. A promoção de mais investigação em oncologia pediátrica é uma das preocupações a que mais recentemente se dedica. O que a Acreditar faz há 27 anos - minimizar o impacto da doença oncológica na criança e na sua família - é ainda mais premente agora em tempos de crise pandémica.