“Fernando Santos tem o ar amarrotado de um homem que dormiu no carro. Poderia ser Peter Falk, interpretando Columbo”. A magistral caracterização ganhou ontem vida no jornal britânico, The Guardian, após o triunfo (6-1) frente à Suíça, nos oitavos de final do Mundial Qatar 2022.
Para além da imagem que podemos reter do selecionador de Portugal após uma noite mal dormida no banco de trás da viatura no seguimento da celebração do triunfo diante os helvéticos, outra descrição bate à porta da minha imaginação.
A gravata solta e o último botão da camisa quase sempre desapertado, os tiques e trejeitos laterais de lábios e pescoço denunciam, irritantemente, um aperto difícil de suportar.
As suas expressões fazem-me lembrar alguém que acabou de comer um peixe cozido com brócolos, prato que não renega, antes deve apreciar.
Talvez por isso, não seria, à primeira vista, o primeiro nome que convidaria para um menu de degustação num restaurante gourmet. Não porque a companhia não fosse aprazível e conversadora. Porque é. Mas para tal teremos de baixar a cortina do circo futebolístico.
Admito igualmente, não seria a minha escolha, caso fosse presidente de uma SAD ou clube, para orientar o “meu” emblema. Não vende bilhetes ou lugares de época, nem tão pouco merchandising com o seu nome. Acresce que as inesgotáveis conferências de imprensa, diárias, seriam enfadonhas de assistir, reconheço.
Dito isto. Olhamos para Fernando Santos e nada nele se enquadra no estereótipo de treinador moderno, trendy, de roupa preta ou sweats e calças slim fit. Também não veste fato de treino, nem assume excentricidades como longas tranças, bonés ou traje de luces.
Veste fato. Cinzento, tom que faz pandã com o seu figurino. A indumentária, “não lhe cai bem” e parece ser sempre a mesma desde que a 11 de outubro de 2014 se estreou no banco das Quinas frente à França, orientada por Didier Deschamps (derrota por 2-1), jogo realizado no Stade de France, em Paris.
Desde esse ano, este homem sisudo e de poucas palavras, de face carrancuda, cerrada e zangada com o mundo, está aos comandos da seleção nacional de futebol.
Assumidamente católico, devoto de Nossa Senhora de Fátima, Santos não se tem dado mal neste caminho das pedras, muito antes pelo contrário. Embora, a avaliar pela ferocidade da letra e voz dos iconoclastas do teclado ou dos painéis mediáticos, seguidistas caninos da crítica pelo bel-prazer de criticar tudo tem sido um mar tempestuoso de resultados só amortecido por superiores interesses federativos ou empresariais (as seleções “escolhidas” por Jorge Mendes).
Pelo caminho, entre pingos da chuva, Fernando Manuel Fernandes da Costa, levou Portugal a dois Mundiais, 2018 e 2022, dois Campeonatos da Europa, 2018 e 2020, uma Taça da Confederações, em 2017 e três Ligas das Nações, em 2018/19, 2020/21 e 2022/23, esta última a decorrer.
Tenho de reconhecer que, debaixo da sua batuta, a equipa de todos nós produz um futebol muitas vezes aborrecido e molengão, nada consentâneo com o plantel existente e à sua disposição.
No entanto, sob o prisma resultadista, os dois únicos troféus no hall de entrada da Cidade do Futebol, casa das seleções, são obra sua. O Europeu de França, em 2016 e a Liga da Nações 2019. O 3.º lugar na Taça disputada pelas confederações dos quatro cantos do mundo entra igualmente na vitrina da história da Federação Portuguesa de Futebol (FPF).
A crueldade dos números não perdoa, reconheçamos. E joga a favor de Fernando Santos. 106 jogos sentados no banco português. 66 vitórias, 23 empates e 17 derrotas. Sete dos desaires foram em jogos particulares. Celebrou meia centena de vitórias em jogos oficiais. E em fases finais de grandes competições, venceu em 22 ocasiões, perdeu 7 e empatou 13.
Os seus críticos dirão. Tem tido e tem à disposição a melhor e mais completa geração de futebolista produzida em Portugal e uma das melhores no mundo. Teve (e atente-se no verbo) Cristiano Ronaldo, o português cujo nome sai de forma desenvolta debaixo da língua de um indígena em Papua Nova Guiné, tão só melhor jogador do mundo, hoje alvo, também ele, dos haters das redes sociais nacionais.
Fernando Santos é muitas vezes tratado como “o” engenheiro, por ser licenciado em Engenharia Eletrónica e Telecomunicações. É apelidado também de “Engenheiro do Penta”, por ter concluído o percurso portista de cinco títulos seguidos após a participação de outros dois treinadores, Bobby Robson e António Oliveira. De forma pejorativa, é chamado de “Nando” ou “Nandinho”, diminutivo soletrado com intuito de reduzir a responsabilidade no sucesso do futebol português a nível de seleções.
Tendo-se inspirado em Jimmy Hagan, treinador britânico do Benfica no início da década de 70 do século passado e que passou pelo Estoril, clube no qual Fernando Santos fez grande parte da carreira, define-se como um treinador "Teimoso moderado”, capaz de convencer os jogadores que podem mesmo vencer uma grande competição. A esta narrativa falta acrescentar a Taça Jules Rimet.
Habituado a ter a cabeça na guilhotina, terá no próximo sábado, frente a Marrocos, mais uma prova de fogo e de vida. Se a seleção nacional perder, será o principal derrotado do remake de Alcácer Quibir. Se colocar a equipa das Quinas, pela terceira vez na história, nas meias-finais de um Mundial ou mesmo na final, poucos serão o que lhe atribuirão mérito.
Pego na história, não do lado da eventual derrota, mas sim da lenda produzida. Independentemente do que vier a acontecer, com ou sem regresso em dia de nevoeiro, será alguém, que após desvinculação da FPF, a quem durante os anos que se seguem iremos sempre esperar que apareça, de novo, no banco da seleção. Ou que o sucedâneo faça, pelo menos, igual ao que fez.
Num país onde quem ganha nem sempre merece de elogios, inclino-me para a segunda. “Nando”, para mim és o maior. E aqui o “Nando” ganha contornos de admiração, respeito e, diria mesmo, cumplicidade, tantos são os anos a vê-lo a cantar "A Portuguesa" antes de cada batalha.
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