Grutas e açoites
Esta foi a semana em que os miúdos tailandeses saíram, por fim, daquela gruta. Foi um alívio vê-los, sorridentes, a acenar das camas de hospital. Talvez seja uma fraqueza imperdoável, mas como tantos fiquei com medo do que podia acontecer. Suspeitei que, desta vez, o mundo ia chorar — e fiquei aliviado por vê-los salvos. Não correu tudo bem: um homem morreu. Mas morreu para que acontecesse o que de facto aconteceu.
Foi mesmo um alívio? Bem, para alguns, foi apenas uma irritação, uma chatice. Por que razão ninguém se calava com o assunto? Houve outras vezes em que os mesmos irritados bateram na cabeça dos vizinhos por não se preocuparem suficientemente com as tragédias longínquas. Desta vez, ficámos todos a torcer por estes miúdos fechados numa gruta do outro lado do mundo. Vi quem desse grandes cambalhotas para conseguir criticar esta onda de simpatia mundial: ah, pois, estão preocupados, mas só porque os miúdos eram jogadores de futebol. Foi isso, foi!
Li também que os miúdos mereciam era uns bons açoites por terem entrado onde não deviam. Na cabeça destes comentadores implacáveis, toda aquela operação devia ter como intuito trazê-los cá para fora para lhes aplicar umas boas reguadas no rabo. Malandros!
Crime e castigo
Não é que não devamos ser cuidadosos. Devemos criticar os comportamentos perigosos e evitá-los — mas quando as coisas acontecem, o que há a fazer é salvar e acarinhar. Fosse qual fosse o castigo que os miúdos tailandeses merecessem, não seria certamente pior do que ficarem dias a fio fechados numa gruta. Mais: devemos alegrar-nos apenas com o salvamento de quem não tem culpas algumas, de quem não arrisca, de quem nunca fez nada de mal? Que arrepio...
A emoção sentida pelo mundo por estes miúdos foi uma emoção muito selectiva, irracional, difícil de explicar — mas nem por isso menos forte e menos comovente. Não conseguimos dar atenção a tudo de forma justa e equilibrada. Entre não dar atenção a nada e ficarmos todos agarrados a um ou outro caso de vez em quando, prefiro a segunda hipótese.
Festivais e felicidade
Somos naturalmente críticos dos outros — faz parte da nossa natureza e, provavelmente, esta nossa característica é essencial para o bom funcionamento das sociedades. Mas essa crítica também tem de ser justa e menos cega.
Há uma certa incapacidade para aceitar os prazeres dos outros. São sempre uma despesa inútil, uma demonstração de qualquer coisa que está mal no mundo, uma prova (mais uma!) da decadência das gerações... Então se forem os jovens (esse termo tão vago) a gostar de alguma coisa, só pode ser péssimo. Não que não possamos criticar o que «os jovens» fazem — mas as críticas são sempre tão rasteirinhas, tão mal pensadas... Como aquela do «estamos em crise, mas lá estão todos nos festivais!». É certo que, com o tempo, os festivais já se tornaram outra coisa, bem menos jovem — as críticas começam agora a dirigir-se ao tipo de festival a que os jovens vão — mas ainda é possível ver quem abane a cabeça: «Ah, estes jovens! Ali a dançar ao som de música! Nem imagino o que para ali vai!» Vai música, para começar — onde acaba já depende dos gostos de cada um.
Os miúdos fazem sempre tudo mal: ou estão sempre enfiados em casa, ou vão a festivais; ou não sabem nada, ou sabem coisas que não lembram ao diabo; ou não andam na natureza, ou entram numa gruta; ou não praticam desporto, ou praticam demasiado desporto... Somos tão criativos a arranjar maneiras de criticar os que nasceram depois de nós como a lembrar, com saudade, as maluqueiras da nossa juventude. O que vale é que o mundo — como sempre — pula e avança, esquecido do sussurrar maldoso com que o comentamos. Criticamos, é certo, mas não há ninguém que não tenha os seus prazeres. E ainda bem! (Agora mesmo tenho amigos aos saltos a ouvir Pearl Jam — um dos grandes prazeres da minha geração — e eu aqui, a escrever. O que não faço pelos leitores!...)
Bem, para terminar, digo apenas isto: a felicidade é perigosa, tem várias formas, nenhuma delas pura, nenhuma delas isenta de perigo. Andamos à aventura, exploramos uma gruta, saímos à noite, vamos a concertos, viajamos, beijamos, confiamos nos outros, vivemos — e tudo isto, às vezes, corre mal e às vezes precisamos dos outros para nos salvar. Aprendemos com os erros — e às vezes repetimo-los. Depois, há outras felicidades talvez um pouco menos perigosas, mas também saborosas. A felicidade de ver aqueles miúdos salvos, de saber que não morreram, que podem continuar a errar pela vida fora. Ou a felicidade de olhar para um filho a dormir. Ou a felicidade de dar um beijo. Ou de ver um bom jogo de futebol. Ou de ler um bom livro. De me assustar com um filme. De abraçar um amigo que regressa. De saltar para a água. De jogar à bola com uma criança. Até a felicidade de escrever uma crónica pela noite fora, quando todos dormem e já nem vejo bem as letras...
Marco Neves | Tradutor e professor. Autor do livro A Baleia Que Engoliu Um Espanhol. Escreve no blogue Certas Palavras.
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