Estou a ser alarmista? Talvez. Mas não sou o único. Michael Dobbs, no New York Times, afirma que “durante seis décadas, a crise dos mísseis em Cuba tem sido vista como a maior confrontação da nossa época, a mais próxima da aniquilação nuclear. A guerra na Ucrânia apresenta um perigo pelo menos da mesma magnitude, sobretudo agora, depois de Vladimir Putin se ter encurralado num canto, ao declarar que grandes áreas da vizinha Ucrânia pertencem à Rússia 'para sempre'”.
Mesmo assumindo que o Sr. Putin é um protagonista racional que não deseja um confronto nuclear, a assumpção não é necessariamente garantida. Ao contrário do que se julga, o maior perigo de uma guerra nuclear em Outubro de 1962 não se deveu a um confronto olhos-nos-olhos entre Khrushchev e Kennedy, mas à incapacidade de ambos em controlar os acontecimentos que tinham desencadeado.
Analistas e especialistas militares apresentam os mesmos receios, baseando-se nos factos que ocorreram há exactamente 60 anos. Na altura, nem Khrushchev nem Kennedy queriam chegar ao ponto de não-retorno, mas vários incidentes no terreno (que seria agora entediante recordar, mas podem ser revistos aqui, podiam ter ultrapassado as vontades dos dois protagonistas.
A situação conjuntural presente é, com certeza, muito diferente. Na altura, tratava-se de movimentações de peças num jogo de xadrez, digamos assim, para as colocar em boa posição para uma eventual guerra. O perigo resolveu-se com a deslocação dessas peças, num acordo que só muito mais tarde foi conhecido: os soviéticos retiraram os mísseis de Cuba e os norte-americanos recuaram os que tinham instalados na Turquia.
Agora, a guerra já está a decorrer. Putin pode não estar a perdê-la, mas certamente não a está a ganhar. Já perdeu a face uma vez, ao falhar o objectivo inicial de ocupar Kiev em poucos dias, e está a perdê-la de novo, ao ver as suas tropas recuar e perder terreno no nordeste e sudeste da Ucrânia. Impossibilitado de reconhecer o desaire — pela sua própria natureza e pela agora evidente aposta no sonho de reconstruir a ex-USSR —, decidiu subir a parada. Incorporou na Federação Russa territórios ucranianos que nem sequer ocupa totalmente — e cada vez menos —, transformando assim qualquer ataque na região numa invasão à “mãe pátria”. No dia 21 anunciou a mobilização de reservistas, o que implicitamente equivale a transformar a “operação militar especial” numa guerra. E, esta semana, no seu primeiro discurso público oficial desde 24 de Janeiro, afirmou que o confronto era um “conflito existencial contra o Ocidente”, ou seja, uma questão de sobrevivência do país, e que portanto podia recorrer a quaisquer meios para se defender, inclusive armas nucleares.
Tal como em 1962, a subida de tom de um lado levou à subida de tom do outro. Biden, citado por todos, inclusive pelo Guardian, respondeu que “temos a ameaça nuclear, se as coisas continuam por este caminho. Estamos a tentar perceber qual é a saída de Putin. Onde é que ele encontra uma porta? Como é que ele fica, se perder não só a face como um poder significativo?”.
Ele e os responsáveis da NATO afirmaram que o uso de armas nucleares, mesmo tácticas (isto é, pequenas e localizadas), teria uma resposta imediata, sem dizer qual seria — por enquanto.
A grande questão, debatida por pequenos e grandes, é exactamente essa: até onde irá Putin. (Por acaso fez agora 70 anos e, portanto, como qualquer homem da sua idade, vê o horizonte de vida mais próximo.) A curto prazo, não parece que a sua liderança esteja em perigo, mas a cada dia que passa diminui de prestígio, tanto dentro como fora da Rússia. Por um lado, a mobilização foi mal recebida pelos russos, que até agora viam a “operação militar” como uma coisa distante. Muitos recusaram-se a ser alistados e centenas de milhar têm fugido do país — os números variam e estão sempre a mudar, mas são notórios.
Os fugitivos representam as mais aptas cabeças do país, o que terá efeitos a curto e longo prazo. Aqui não resisto a citar Tom Friedman, no New York Times: “A transformação da Rússia numa Coreia do Norte está a transformar um país que já deu ao mundo os mais famosos autores, compositores, músicos e cientistas numa nação mais adequada a fabricar batatas fritas (potato chips) do que microchips, a ganhar fama mais pela roupa interior envenenada do que pela alta costura, e mais concentrada em abrir os seus reservatórios subterrâneos de gás e petróleo do que os reservatórios à superfície de génio e criatividade. O mundo inteiro fica diminuído com a diminuição da Rússia feita por Putin”.
Friedman é um pouco exagerado; nem a Coreia do Norte tem uma cultura e massa crítica comparável à Federação Russa, nem o mundo inteiro fica diminuído com a repressão putinista. Mas a elegância do texto tem razão de ser, porque não só os que fogem como também os que ficam e perderam a voz representam uma perda que demorará décadas a recuperar — depois do regime de Putin, que não se cabe quando acabará.
E, quando acabar, o que pode acontecer também não é um prognóstico muito optimista. Na Rússia não há oposição à ditadura que se veja; a única figura com prestígio é Navalny, que está preso por décadas, e qualquer afirmação ou manifestação menos elogiosa dá direito a penas extensas. Por outro lado, existe um grupo variado de intelectuais, empresários e militares que considera Putin demasiado fraco e quer uma acção mais musculada na Ucrânia. Não existe nenhum mecanismo constitucional ou legal para substituir Putin; na URSS esse papel era cumprido pelo Politburo, que desapareceu e a Duma (parlamento) não tem esses poderes. Pelo que se vê e ouve nos media e nas redes sociais, a corrente de extrema-direita, chamemos-lhe assim, parece a mais forte em termos de eliminar ou demitir Putin. O resultado, do ponto de vista da ameaça nuclear, seria ainda pior.
A tese da “crise existencial” da Rússia tem raízes históricas e, ao longo da história, justificou muitas atitudes agressivas das sucessivas ditaduras que dominaram o país. A ideia de que a Rússia não tem o devido papel no concerto das nações e é minimizada pelos países europeus determinou as políticas de Nicolau II e de Estaline.
A NATO, que é uma aliança defensiva, sempre foi vista como uma iniciativa ofensiva dos Estados Unidos. De facto, a NATO tem sido a desculpa para a Europa descurar completamente a sua defesa — contra a Rússia ou outro inimigo —, protegida pela “sombrinha” do poder militar norte-americano. Estava nos cuidados intensivos, sobretudo depois de Trump a ter considerado um “mau negócio” e reduzida a um clube de generais dos países participantes, que se reuniam de vez em quando para brincar às guerras — teoricamente, porque nenhum país europeu tem forças armadas que se vejam. (Esta semana, na nossa AR, o PCP, numa das suas tiradas surreais, chamou a aliança de “fascista”, uma etiqueta que perdeu completamente o sentido. Actualmente não há regimes nem alianças internacionais estritamente fascistas. Adiante.)
Putin foi realmente o grande revitalizador da NATO — isto já foi dito milhares de vezes. Tivesse respeitado a integridade da Ucrânia, os membros da aliança continuariam alegremente a enriquecê-lo com as compras de petróleo e gás, e não pensariam em rearmar-se. Mesmo agora, que estão francamente assustados com a invasão, não consideram ameaçar a existência da Rússia, apenas contê-la.
Mas as raízes históricas cá estão. Putin, ou quem o suceder, pode muito bem sentir-se obrigado a cumprir a missão imaginária de salvar a pátria. Ainda esta semana, o patriarca da igreja ortodoxa disse em Moscovo que foi Deus que colocou Vladimir Putin no poder. Com o apoio divino, não há nenhuma opção que esteja fora de cogitação — inclusive o Apocalipse.
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