Na semana passada ocorreu o enésimo micro-confronto nos 4.056 quilómetros de fronteira que separam a República Popular da China da República da Índia, a chamada LAC (“Line of Actual Control”). No meio de acontecimentos de importância telúrica, como o vai-e-vem da pandemia, o abismo da crise económica subsequente, o fim de Hong Kong como “Região Administrativa Especial” e a indefinição do Brexit (para citar apenas alguns) as trocas de tiros e pedradas - sim, pedradas - entre pequenos destacamentos dos dois países, da qual resultaram 20 mortos indianos e um número desconhecido de chineses, passou praticamente despercebida.
No entanto é uma situação antiga, recorrente e potencialmente muito perigosa, uma vez que se trata de dois colossos com mais de mil milhões de habitantes e armas nucleares.
Um observador desatento poderia pensar que, apesar das magnitudes referidas, a Índia esfomeada, doente e sempre em crise económica, não é par para a China, agressiva, super-organizada e próspera. Contudo, a situação não é assim tão simples.
A fronteira foi delineada ao longo dos tempos, primeiro pelos ingleses, em 1914 – a chamada Linha McMahon, entre o então Raj britânico e o reino do Tibete – e depois sofreu as alterações resultantes da independência da Índia, em 1947, a instauração do regime de Mao Tsé-Tung, em 1949, e a anexação do Tibete, em 1950. A fronteira actual, que tem áreas mal definidas (são terrenos montanhosos, escarpados, de difícil acesso), foi fixada em 1962, depois de uma curta guerra entre os dois países, e consolidada em 1993 e 1996, nos chamados “Acordos Bilaterais Sino Indianos de Paz e Tranquilidade”.
Paz, talvez, tranquilidade, nenhuma. A guerra de 1962, iniciada pelos chineses, foi uma retaliação por os indianos terem acolhido o Dalai Lama e apoiado os tibetanos na sua revolta contra a ocupação chinesa, em 1959. A Índia tinha iniciado nessa época uma atitude defensiva na fronteira a que chamava, estranhamente “Forward Policy” (“Política Avançada”) e que consistia em provocar constantemente as forças do Exército Popular e atrapalhar-lhes os movimentos.
Os chineses perderam a paciência e desencadearam uma operação de grande monta que durou um mês e conquistou algum território. Deve ter sido a única guerra pós-1950 em que nenhum dos lados usou meios aéreos. A China porque, provavelmente, ainda não os tinha em condições; a Índia, porque não conseguiu usar os MIG oferecidos pela União Soviética, que já tinha cortado relações com o maoismo.
Pequim declarou unilateralmente o cessar-fogo e até se retirou de algumas zonas conquistadas, conservando, contudo, o controle da região de Aksai Sin.
O outro inimigo perene da Índia é, como se sabe, o Paquistão. Quando da independência da Índia, os muçulmanos, que eram minoria nacional, mas maioria nessa região, declararam-se independentes. Deram-se grandes migrações de muçulmanos das outras partes do país para o Paquistão, e de hindus para a Índia, uma movimentação nada pacífica, com massacres e milhares de mortos. A zona de Caxemira, com uma divisão religiosa mais equilibrada, passou a ser uma disputa permanente. Dois terços são administrados pelos indianos, mas com um movimento de guerrilha intermitente de grupos muçulmanos apoiados pelo Paquistão. Como seria de esperar, os chineses colocaram-se do lado paquistanês, até porque consideram que o Vale de Shaksam e a zona de Aksai Chin lhes pertencem.
Em agosto de 2019, o novo primeiro ministro da Índia, Narendra Modi, revogou o estatuto especial de Caxemira e declarou-a como Estado indiano. As suas tropas ocuparam a região, mandou prender os líderes locais muçulmanos e declarou o estado de sítio. As tensões entre os dois países chegaram ao rubro – mais uma vez, pois já estiveram em guerra aberta em 1947, 1965 e 1971 – mas à última hora os paquistaneses desistiram de retaliar abertamente, ficando-se por declarações fulminantes (e, com certeza, apoiando os distúrbios que perturbam constantemente as tropas “ocupantes”). Na verdade, tratando-se de duas potências nucleares, nenhuma tem interesse em chegar ao ponto em que tenha de usar as suas armas.
Os estados do norte da Índia ficam no caminho das “Novas Rotas da Seda” que a China pretende lançar através do Paquistão e depois para Oeste, até à Europa. Mas, tratando-se de rotas comerciais – auto-estradas, caminhos de ferro e portos – é essencial que o processo seja pacífico. Pequim vê a “amizade” russo-indiana”, que já vem dos tempos da União Soviética, como uma parede que impede a expansão das Rotas. E os Estados Unidos sempre apoiaram as posições indianas, tanto contra o Paquistão como contra a China. Talvez seja essa a principal razão por que Xi Jinping tem mostrado contenção na região. Ora, a escaramuça da semana passada que opôs indianos e chineses não foi por acaso – nada é por acaso com Xi. E neste momento a Índia encontra-se numa posição muito fraca; a agitação em Caxemira não pára, as atitudes de Modi contra os muçulmanos têm provocado distúrbios dentro do país, e a situação económica está no radar com as medidas de contenção da pandemia do novo coronavírus.
Os observadores internacionais concordam que a China não teria interesse em ocupar permanentemente o norte da Índia – não porque não o possa fazer militarmente, mas porque teria um custo brutal tanto militar, como estratégico e diplomático. Contudo, os observadores também não sabem como justificar a brutal repressão chinesa em Hong-Kong, que terá um custo desproporcionado face aos seus interesses diplomáticos e financeiros a médio prazo.
Uma coisa é certa: é a primeira vez que se dá a coincidência dos dois países serem liderados por políticos agressivos - no passado os dirigentes indianos sempre se mostraram mais insidiosos do que aguerridos. A situação internacional dá mais possibilidades à China de impor o que quiser; certamente que os aliados tradicionais da Índia, Estados Unidos e Rússia, não se querem meter em conflitos que não os tocam directamente.
Este pequeno incidente pode ser o primeiro passo de uma estratégia maior. Ou pode ser apenas um incidente para manter a pressão sobre a Índia.
Com a China, nunca se sabe.
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