A prática de “tiro ao Cavaco” foi a modalidade em que muitos adeptos se especializaram nos últimos anos. É verdade que o Presidente que sai se colocou muitas vezes demasiado a jeito, a maior parte das vezes pelo que dizia e como dizia do que propriamente pelo que fazia.
É a velha questão do “estilo”, a pose de professor de Finanças, a rigidez e distanciamento no trato, o hiper formalismo, um certo conservadorismo de costumes para lá do prazo de validade, o moralismo imaculado auto-atribuido, a incapacidade para admitir erros ou falhas.
Por mais sustentadas que sejam as críticas e algum azedume em relação a Cavaco Silva - que sai de cena com baixíssimos níveis de popularidade - elas são manifestamente exageradas enquanto balanço da carreira política do homem que mais tempo deteve o poder nas quatro décadas de democracia. É demasiado cedo para fazer uma análise serena e distanciada do papel de Cavaco no Portugal contemporâneo mas uma coisa é certa: reduzir a um equívoco o contributo de quem governou o país durante dez anos - com duas maiorias absolutas - e presidiu durante outros dez não só é manifestamente anedótico como é um atestado de desprezo pelas escolhas populares.
Se o problema é, em grande parte, o “estilo” aí temos agora a antítese: Marcelo Rebelo de Sousa chegou há pouco (escrevo nesta manhã de quarta-feira) a pé ao Parlamento para a cerimónia da sua tomade de posse, quebrando todo o protocolo, vindo de casa dos pais. Foi o trajecto que tantas vezes fez quando ia para a escola, justificou.
Arrisco prever que Marcelo será o mais próximo de um monarca que teremos na República, com uma vantagem sem preço: foi eleito pelo povo.
A proximidade e a descontração, os afectos e as “pontes”, já tantas vezes sublinhados, são bem vindos, nestes anos que vão continuar a ser de chumbo.
A crispação política e partidária que se ergueu nos últimos anos, as barricadas ideológicas reais ou postiças, o extremar de posições contra alguma coisa e muitas vezes a favor de alternativa nenhuma, são dispensáveis e não devem confundir-se com as opções políticas diferenciadas que sempre se devem colocar numa democracia.
Marcelo terá um mandato difícil. A descompressão que promete e será certamente capaz de cumprir no relacionamento dos principais actores político e na reconciliação do país consigo próprio pode ser uma ajuda mas não resolve tudo. No fim do dia, a substância das suas decisões e a forma como exercer os seus poderes - os constitucionais e os informais - serão também essenciais.
Os desafios económicos e sociais são hoje menos violentos do que eram há cinco anos, quando Cavaco Silva inaugurou o seu segundo mandato, mas nem por isso são menos importantes. A emergência da bancarrota foi ultrapassada mas é notório que nada está consolidado. Um sopro mais forte e as contas públicas voltam a descarrilar, o financiamento da República e dos bancos podem voltar a ficar em causa. Estas são as fronteiras intransponíveis das opções políticas, as linhas vermelhas que não podemos de forma alguma pisar, sob pena de arriscarmos o quarto resgate financeiro da democracia.
A tentação de desafiar esses limites pode ser grande, como forma de afirmar alternativas políticas que são legitimas mas que os recursos que não temos não paga.
O equilíbrio entre o que o que gostávamos e o que podemos, entre as opções nacionais e os compromissos europeus, entre a coesão social e a falta de dinheiro, entre as visões alternativas e os necessários consensos são os desafios com que continuamos confrontados e que estarão sempre na agenda do Presidente da República.
Marcelo Rebelo de Sousa chega num momento em que o país experimenta uma solução executiva nova, um governo do PS sustentado pelo apoio parlamentar do BE e do PCP, de incerta longevidade como sempre acontece com soluções minoritárias. Fazer a governabilidade bater certo com a responsabilidade é responsabilidade diária.
Para lá dos discursos que sabe fazer, da sua generosidade e simpatia pessoais, como acaba de demonstrar na tomade de posse, serão estes os testes fundamentais que o novo presidente vai enfrentar. Já a partir de amanhã.
Outras leituras
Há precisamente um século, Portugal entrava na Primeira Grande Guerra. Como, porquê e com que consequências? Manuel Carvalho, do Público, continua a desbravar-nos a História. Imperdível.
O acesso à internet como bem essencial, comparável à electricidade e à água. Nos Estados Unidos.
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