Em suma, apela o papa: não dêem todo o protagonismo ao mal, procurem também, com atitude responsável, as aproximações positivas e as propostas de soluções. A exortação de Francisco é sábia. Bem deveria estar presente nas redacções dos noticiários das televisões quando fazem a conferência diária para discussão – sim? – das matérias a tratar.
Há nos diversos telejornais muito efeito de contágio pelos males e demasiado culto das misérias humanas, porém, é facto que a realidade não ajuda mesmo nada. Vivemos uma época demasiado ameaçada pela intolerância, e os jornalistas têm o dever de denunciar os abusos, as violências e as injustiças. Por mais que haja vontade de seguir a boa recomendação de Bergoglio, não vale arranjar lentes com dioptrias que modifiquem a realidade.
É assim que não há como evitar Trump. Após 10 dias no cargo de presidente dos EUA, o mundo está menos livre e menos seguro. Não caio no exagero de pensar que existe um automatismo que leva a que, uma política estúpida, como é a que está a ser introduzida, produza a imediata radicalização das comunidades hostilizadas pelo mundo. Mas não é preciso recorrer a lentes sofisticadas para ver que a narrativa dos extremistas islâmicos está a ser robustamente alimentada.
Quem está nestes dias a esfregar as mãos com satisfação são, por um lado, os amigos do Daesh e de outros grupos que cultivam a prática do terror, por outro, os movimentos extremistas, nacionalistas e populistas que, na Europa, procuram liquidar o sistema de valores de solidariedade, fraternidade e liberdade em que a Europa foi fundada e substituir essa democracia de tolerância e respeito pela sua ideologia egoísta de ódio. Entrámos num tempo em que quem procura pontes embate em muros. Com o medo a ser usado mais como pretexto que serve a ideologia.
Antonio Caño, director do El País, acaba de escrever num artigo que merece ser lido com toda a atenção, que “uma das características do novo populismo em ascenção é a hostilidade com a imprensa, em especial a imprensa profissional. Com o pretexto da presumida comunhão entre os meios mais implantados e um perverso establishment”. É assim que os dinamizadores desse novo populismo tentam “laminar a credibilidade dos jornais com o objectivo de eliminar obstáculos no seu caminho e deixar espaço para que outros meios – confidenciais, contas nas redes sociais, blogues – que eles controlam e através dos quais podem aceder sem intermediários ao seu público, aos seus votantes”.
Uma gente escassa de escrúpulos, que tenta tomar o mando na política, pretende instalar uma “nova ordem”: adulterando a democracia e degradando os princípios de solidariedade e de autoridade moral. Há que combater essa gente e fazer oposição frontal à arbitrariedade.
A mensagem papal “comunicar esperança e confiança no nosso tempo” faz pensar longamente. É certo que não há dioptrias que melhorem a visão da realidade. Mas há que insistir na superioridade do bem sobre o mal.
Vale que a democracia na América merece grande confiança, como se está a ver nas manifestações nas ruas e aeroportos e em tantas instituições, com Silicon Valley na primeira linha.
Também a ter em conta: o caso francês
As eleições primárias nos principais partidos em França estão a desafiar a lógica dos aparelhos partidários e a apontar, à direita como à esquerda, escolhas radicais. Na área da direita tradicional, até há um mês, o moderado Alain Juppé era dado como o preferido, e até parecia lançado para conquistar a presidência da França. Mas os eleitores de direita nas primárias preferiram o muito mais conservador François Fillon.
Agora, no PS francês, o eleitorado rejeitou o ex-primeiro-ministro Manuel Valls (considerado por muitos como um social-democrata a conduzir políticas de direita) e votou a 59% por um quase desconhecido candidato da ala mais à esquerda do partido, Benoît Hamon, candidato que diz pretender que os franceses possam voltar a sonhar e promete a todos um rendimento mensal mínimo de cerca de 750 euros.
Temos pois que Hamon é o homem do PS, e Fillon o homem da direita para a sucessão de Hollande em maio próximo. Fillon parecia bem colocado. Mas o candidato que se apresentava exemplar está agora a ser investigado com a suspeita de ter patrocinado um emprego fictício à mulher, Penelope Fillon, como assessora parlamentar, entre 1998 e 2012, período em que cobrou meio milhão de euros do orçamento parlamentar. Sendo que muita gente está a dizer que nunca viu Penelope no parlamento. A revelação tem uma semana e a imagem de Fillon já acusa desgaste. A sondagem mais recente coloca Marine Le Pen à frente das intenções de voto, com 25%. Em todas as sondagens a candidata extremista de direita e xenófoba aparece em primeiro lugar. Mas todas também a dão amplamente derrotada na finalíssima da segunda volta.
O cenário político francês, segmentado, tem muito que se lhe diga: há cinco candidatos acima dos 10% e nenhum passa dos 25%. A família Le Pen, na sétima candidatura presidencial (Jean-Marie apresentou-se por cinco vezes, foi segundo em 2002, quando superou Jospin e só perdeu para Chirac) consegue agora o primeiro lugar nas intenções de voto para a primeira volta da eleição presidencial, com 25%.
A direita tradicional, com Fillon, está em modestos 22%.
A esquerda, aparece com três candidatos, todos com origem no PS, mas dois em dissidência: um destes, Macron, jovem social-liberal, aparece com discurso de ruptura com a política tradicional, ocupa o deserto espaço central e surge creditado com 21%, portanto ombro a ombro com o candidato da direita clássica. Também há Melenchon (10%) em aliança com os comunistas e, agora, Hamon, candidato oficial do PS, social-ecologista, com 15%.
A três meses das presidenciais, tudo é volátil. Le Pen parece com lugar certo na final mas também parece certo que vai perder para o candidato da frente anti-ultra. Qual deles? Fillon, à direita, agora questionado, dificilmente terá votos da esquerda. Macron, no centro, candidato com discurso contra o funcionamento dos partidos, mas europeísta e popular sem ser populista, pode ser o beneficiário e, com surpresa, vir a ser eleito presidente da França?
Tudo é possível. Sendo que um mês depois das presidenciais, em junho, os franceses terão eleições gerais. Há sinais de que são estas a grande aposta de Hamon, o socialista que quer o PS com políticas de esquerda e recusa radical da austeridade.
Em qualquer caso, com Hollande, Sarkozy e Valls fora de jogo, está à vista que até ao verão vai haver grande recomposição da paisagem política francesa. Com Le Pen forte, a 25%, mas com um sistema eleitoral maioritário que tem minimizado a presença parlamentar da Frente Nacional ultra-nacionalista e xenófoba. Com a França em situação económica apertada e com um partido socialista dividido entre uns que querem o sonho (e que ganharam as primárias) e outros que querem gerir (e que perderam). E com a direita tradicional armadilhada pela suspeita sobre o candidato escolhido. O futuro governo da França anuncia-se tarefa complexa.
Vale ver:
“4,1 Miles”: Daphne Matziaraki conta assim, para o The New York Times, em 21 minutos e 20 segundos, a travessia do Mar Egeu, da Turquia até à ilha grega de Lesbos, onde a Europa começa. São 4,1 milhas que foram, ao longo de um ano, a luta e a esperança de 600 mil migrantes que se fizeram a este mar.
The Wall: um muro que já ali está, ao longo de 300 quilómetros, entre o México e os EUA.
O nosso mais antigo avô conhecido: Saccorytus, um antepassado de há 540 milhões de anos.
Um lugar de maravilha lá no fundo da América do Sul: lentes focadas sobre a mini-floresta na Tierra del Fuego.
Outro despertar da China: agora, para ser grande no futebol.
Primeiras páginas escolhidas hoje: esta do Libération, esta do The New York Times e esta do Le Monde. Também esta do El Periódico. E esta da The New Yorker.
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