Há quase dois anos que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), Henrique Araújo, por inerência presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM), avisa o país para o risco de os tribunais estarem a ser tomados pelo poder político.
"A justiça não é uma prioridade para o poder político", disse. "Não vejo nos responsáveis políticos vontade de alterar alguma coisa". E, para que não restassem dúvidas, explicou: "Quando falo em poder político, não falo a nível de ministros, falo a nível dos partidos políticos no parlamento e falo a nível de quem detém o poder executivo".
Depois veio a Operação Influencer, que envolve o primeiro-ministro, António Costa, em funções até à tomada de posse do novo governo, e multiplicaram-se os discursos sobre importância da independência do poder judicial para o bom funcionamento da democracia: "À justiça o que é da justiça, à política o que é da política".
Ainda esta semana um grupo de ilustres do PS, Alberto Martins, Jorge Strecht, José Vera Jardim, Manuel Alegre e Maria de Belém Roseira, assina no jornal "Público" um artigo de opinião com o título "Em defesa do Estado de direito" - que começa por fazer a defesa de António Costa e acaba a falar no combate à corrupção, à fraude e à evasão fiscal (ironia das ironias, no mesmo dia em que o Grupo de Estados contra a Corrupção do Conselho da Europa (GRECO) publica os resultados relativos à 5ª e 4ª rondas de avaliação dos Estados na prevenção e luta contra a corrupção e revela que Portugal cumpriu apenas três de 15 recomendações neste domínio).
Noto que Alberto Martins foi ministro da Justiça entre 2009 e 2011, governo Sócrates, e Vera Jardim foi ministro da Justiça de 1995 a 1999, governo Guterres, sucedido por António Costa, que ocupou o cargo entre 1999 e 2002. Pormenores.
No discurso de tomada de posse como presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a 7 de Junho de 2021, Henrique Araújo lembrou que "Os sistemas de poder nas sociedades modernas têm produzido formas sofisticadas de condicionamento ou ‘domesticação’ do poder judicial. São facilmente intuíveis as razões que subjazem a essa intromissão [...].
Desde então não poupou esforços. Quis proibir o regresso aos tribunais dos juízes que escolheram uma carreira no governo - ministros, secretários de Estado e membros dos gabinetes ministeriais -, e propôs ao Conselho Superior da Magistratura (CSM) a criação de um grupo de trabalho para alterar o Estatuto dos Magistrados Judiciais.
O argumento é que "a alternância entre a justiça e a política cria uma ideia de potencial falta de imparcialidade quando há conflitos de interesses", justificou o presidente do STJ. A proposta, claro, era para juízes, porque dos procuradores quem trata é o Ministério Público. E é preciso que o Conselho Superior do Ministério Público queira discutir o assunto (ou tenha de o discutir à força).
O Conselho Superior da Magistratura quis, e não só discutiu o assunto como aprovou por unanimidade a proposta do presidente do Supremo. A de 8 de Março de 2023, o CSM aprovou a proposta de alteração do Estatuto dos Magistrados Judiciais relativa à transição de magistrados judiciais para cargos políticos ou outros cargos públicos, apresentada pelo grupo de trabalho constituído em 5 de Julho de 2022.
E o que aconteceu? Como manda a lei, a proposta de alteração foi enviada para o gabinete da ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, no dia 13 de Março de 2023. "Até hoje não é conhecido qualquer desenvolvimento sobre a matéria", disse Henrique Araújo ao Sapo 24.
Actualmente, os juízes que desempenhem funções no governo podem voltar aos tribunais logo que o mandato termina. E já aconteceu. Também já aconteceu o contrário; Fernando Negrão, ex-juiz e deputado do PSD, foi ministro em dois governos e no dia em que aceitou ser deputado decidiu que não voltaria à magistratura.
Por motivos óbvios, a proposta do CSM vai ficar na gaveta pelo menos até meados deste ano - eleições, novo governo, eleições europeias e já estamos em Julho, mais de um ano depois de a proposta, que ainda terá de passar pela Assembleia da República, ter sido entregue ao governo.
Esta dupla personalidade dos políticos faz lembrar "O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde/O Médico e o Monstro". Na Justiça, a independência dos tribunais está cada vez mais comprometida, mas PS e PSD recusam-se a mudar a maneira como são escolhidos os juízes. E isso tem consequências na vida dos portugueses, até nos impostos que pagamos.
Porquê? Ontem, na 1.ª Conferência pelos Direitos dos Contribuintes, organizada pela recém criada Associação Portuguesa de Contribuintes, economistas e fiscalistas criticavam o Tribunal Constitucional por não reconhecer a inconstitucionalidade de uma quantidade de taxas que foram criadas com objectivos que, entretanto, desapareceram, mas as ficaram.
O ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Carlos Lobo, afirmou mesmo que "nada é mais perene em Portugal do que um imposto extraordinário", a começar pelo "Imposto do Selo, de 1660, criado para financiar uma guerra. Ainda o temos. Em Portugal temos um Tribunal Constitucional que mantém todas as contribuições extraordinárias, basta ver as que foram criadas na altura da crise. Nenhuma foi extinta".
Como provocação, no fim da conferência perguntei a Mira Amaral e a António Nogueira Leite - ambos já tiveram responsabilidades governativas -, se, afinal, a culpa dos impostos é do Tribunal Constitucional. A resposta não se fez esperar: claro que sim. "Os juízes do tribunal são funcionários do Estado", diz Mira Amaral. "Têm de responder ao patrão".
Dos 13 juízes, dez são eleitos pela Assembleia da República por maioria qualificada de dois terços dos deputados e três são cooptados pelos juízes eleitos pelo parlamento (actualmente, cinco PS, seis PSD, um PCP e um independente). O economista António Nogueira Leite concorda, e acrescenta que "em qualquer país de primeiro mundo o Tribunal Constitucional tem juízes que não são juristas, são especialistas em determinadas matérias".
Volto às palavras do presidente do Supremo: "Vejo no horizonte cada vez mais próximo a criação de um ambiente propício a aventuras legislativas, que podem comprometer a independência dos tribunais e o regular funcionamento do sistema de Justiça", disse ainda na semana passada.
Supremo Tribunal de Justiça, Ministério Público, Tribunal Constitucional. Se perguntarmos a qualquer partido político, com ou sem assento parlamentar, se a independência do poder judicial deve ou não estar na linha da frente da defesa do Estado de Direito, a resposta, aposto, é afirmativa. Chama-se a isto esquizofrenia. Ou então temos motivos para acreditar que os partidos querem mesmo manter as portas giratórias para partidarizar as magistraturas.
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