Todos movimentam recursos colossais, quase todos financeiros. No caso de Jorge Mario Bergoglio, o papa que veio de Buenos Aires, o poder dele é o da palavra. Um admirável e popular poeta catalão, Martí i Pol, costumava dizer que tudo o que somos são as nossas palavras. Cada pessoa é definida pela substância, também pela emoção, que insufla nas palavras que escolhe no seu bosque pessoal de palavras. Palavras que entram para dentro de nós e que não são ruído. O jesuíta Bergoglio, como papa Francisco, tornou-se poderoso, em apenas três anos e meio, pelo modo incisivo, franco, transparente, como em tom pacato, sabe chegar às pessoas e entrar nelas, sejam fiéis ou laicos. Numa época em que proliferam as exclusões, a palavra deste papa é sempre inclusiva. Vem ao encontro, compreensivo, próximo. Ele fala da realidade como nós todos a sentimos.
Logo que foi eleito pelos cardeais, na noite de 13 de março de 2013, quando pela primeira vez usou a palavra como papa, Francisco, a partir da varanda da Basílica de São Pedro, marcou a diferença pela simplicidade, ao saudar todos com um “irmãos e irmãs, boa noite”. Como se estivesse a cumprimentar os vizinhos na paróquia ou no bairro. Estava em circuito televisivo global.
Logo a seguir, vieram outros gestos. O facto de ter trocado o alojamento no fausto do Palácio Apostólico pela Casa de Santa Marta, onde vive em residência partilhada com sacerdotes de todo o mundo, ou preferido um Fiat 500L aos Mercedes blindados de alta gama, nem é o mais relevante.
Um gesto que mostra o seu humanismo foi a viagem este ano à ilha grega de Lesbos, para ali estar, em cinco horas de grande intensidade, ao lado dos milhares de refugiados no campo de acolhimento (é assim que querem chamar-lhe, de facto tem modos de um campo de concentração) de Moria. Ali, onde não há como maquilhar o terrível drama humano, o papa não só mostrou solidariedade com os concentrados, também levou no avião de volta ao Vaticano, como símbolo, doze deles, que estão em Roma sob acolhimento da Santa Sé. Foi um abanão aos chefes políticos da Europa, e fê-lo também com as palavras, ao lembrar que “este continente é a pátria dos direitos humanos, e isso deveria poder ser sentido por todos quantos pisam esta terra”.
Às vezes, as palavras e os sentimentos têm expressão em silêncio. É o que se sentiu na dolorosa e comovente visita ao campo de extermínio de Auschwitz. Sobretudo, quando parou na praça das execuções públicas ou quando entrou no sinistro bloco 11 e tocou no muro da morte. Ali, Francisco, como papa, quis dizer apenas duas frases: “Senhor, tem piedade do teu povo, perdão por tanta crueldade”.
Nestes três anos e meio, Francisco entrou várias vezes pelos infernos. Quer que a sua igreja funcione como um hospital de campanha ao serviço de quem precisa de ajuda. Repete visitas aos pobres de Roma e multiplica encontros com grupos vulneráveis e marginalizados.
Usa a palavra para, com autoridade moral, alertar para a escalada da violência xenófoba e do terrorismo. Para pedir intervenção contra o tráfico de seres humanos e de armas. Para alertar que já estamos dentro de uma nova guerra mundial. A pedir urgência na acção contra as alterações climáticas. Também para criticar o culto dos media pelo sensacionalismo em vez da busca de entendimento sobre o que se passa à nossa volta.
Este papa assume riscos e envolve a arguta diplomacia vaticana na reconciliação e defesa dos direitos humanos na Venezuela, na Colômbia e em Cuba. E a explorar pontes para a esperança na Palestina.
A missa celebrada na linha de fronteira entre os EUA e o México foi uma forte mensagem de tolerância. A missa ecuménica a que Francisco presidiu na cidade sueca de Lund, nos 500 anos das 95 teses em que Lutero denunciou a corrupção espiritual católica, foi um gesto pela cooperação e contra o sectarismo entre as duas grandes igrejas cristãs, a católica e a protestante. Como tanto outros passos para o ecumenismo.
O papa Francisco conduz uma igreja que tem 227 cardeais, cinco mil bispos, 400 mil sacerdotes e à volta de 1500 milhões de fiéis – não chega a um quarto da população mundial. É uma igreja nas últimas décadas minada por escândalos, dos abusos sexuais à corrupção. Este papa governa a sua igreja com transparência, sem deixar espaço para as intrigas de sacristia. Reposiciona a igreja católica no palco global, com a prioridade dada aos que sofrem.
No plano doutrinal, Bergoglio não é um revolucionário, talvez nem seja um liberal como às vezes passa nos media. Segue a tradição católica em questões como o aborto, a contracepção ou o casamento homossexual. Embora, às vezes, com sábias ambiguidades. Como ao nomear uma comissão para estudar o papel da mulher nos altares católicos e ao assumir que as pessoas são mais importantes do que o dogma. Será um reformista, sabendo que o tempo do Vaticano é sempre lento, medido em séculos.
Já conseguiu que o Vaticano comece a deixar de ser a sede de uma palaciana monarquia feudal. Este papa que veio de Buenos Aires, que usava uma Renaul 4L, quer uma igreja sem opulências, de serviço. Que acolha e abra pontes em vez de fechar portas. Mais humana, mais próxima.
A Forbes coloca Francisco no top 5 dos poderosos. Estamos na época em que é de tradição apontar figuras do ano. Em Portugal, é fácil escolher: Marcelo, Guterres e até Costa – este pelo modo como sabe fazer política, procurando soluções que tenham em conta as pessoas. Pelo mundo, está menos fácil essa escolha: Trump é uma figura, mas pelo que perturba, não por representar alguma esperança; Merkel teve a coragem para contrariar os populismos que avançam. Talvez a escolha certeira passe por apontar em direcção aos cidadãos eleitores que estão a mudar a matriz política ocidental – ainda que não seja no que parece uma boa direcção.
Francisco, o papa que veio de longe, é seguramente uma figura do ano, pela esperança que aos 80 anos, a idade em que tantos estão na reforma, continua a representar. Pelo modo como anula a distância entre função e pessoa, entre ser abstracto e ser concreto.
Apetece recorrer aqui a Mário Soares que sempre se assumiu agnóstico. Sendo uma pessoa fora das religiões, a proximidade e diálogo com figuras da igreja é uma marca do seu percurso. Quis participar no primeiro encontro ecuménico promovido em Assis. A intuição apurada é um condimento do êxito político de Mário Soares: habituou-nos a ter razão antes do tempo (veja-se o modo combativo como fez campanha contra a guerra a Saddam, quando o discurso das armas de destruição maciça, que afinal não havia, parecia adoptado por quase todos), embora às vezes se tenha enganado. Quando Bento XVI foi escolhido para papa, Soares não escondeu grande desapontamento – que depois reviu. Quando a escolha foi Francisco, logo declarou “É a escolha de que a Europa e o mundo precisam, tal como a chuva em tempo de seca”.
A palavra do papa Francisco consegue tirar pedras do caminho.
A TER EM CONTA:
O ataque em Berlim é uma tragédia duplamente simbólica: visou um mercado de Natal, portanto um símbolo para os cristãos, e aconteceu a dois passos de uma igreja dedicada à memória dos sofrimentos da II Grande Guerra. Vai aumentar a pressão sobre Merkel em complexo ano eleitoral.
Falta exactamente um mês para a mudança presidencial nos EUA. Assusta a nula estratégia de harmonia internacional dos falcões escolhidos por Trump. É também um grupo de negacionistas quanto às alterações climáticas. Vem aí uma América gerida como uma empresa. The New Yorker antecipou o que há a esperar. Michelle Obama anseia que os cidadãos dos EUA continuem a ter esperança.
Algum do cinema para o ano que vem.
Uma primeira página que retrata o dia de hoje.
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