Pois, ali escondida num recanto da Índia, há uma língua chamada bodo – tem uma gramática complexíssima e um sem-número de palavras peculiares, com sentidos que nos deixam a coçar a cabeça. Repare o leitor, por exemplo, nestas três palavras:

  • egthu: um verbo que indica o momento em que começamos a sentir um certo conforto no meio de um grupo de pessoas que não conhecíamos;
  • goblo: um verbo que indica a troca de um objecto por objectos de valor inferior que, em conjunto, têm o mesmo valor que o objecto original;
  • khonsay: o momento exacto em que um casal numa relação duradoura tem relações sexuais pela primeira vez.

Palavras estranhas, não é? Por que carga de água há-de esta língua ter uma palavra para a primeira relação sexual de um casal?

A gramática do bodo é ainda mais estranha: a língua divide todos os nomes entre a categoria azul e a categoria vermelha. Os linguistas chamam «género» a esta divisão, mas, ao contrário das línguas que nos são mais habituais, não é uma divisão por sexo, mas por cor: os nomes dos objectos azuis terminam em «-o» e os nomes dos objectos vermelhos terminam em «-a». Quando um nome não é nem azul nem vermelho (por ter outra cor ou por ser um conceito abstracto), é integrado num dos géneros de forma aparentemente aleatória. Há ainda casos em que um objecto vermelho é integrado no género azul, não se sabe bem porquê.

Há mais surpresas: algumas palavras são objecto de tabus peculiares. São usadas por uma grande parte dos falantes de bodo, mas não podem ser ditas em contextos formais. Por exemplo, a palavra «goblo», que descrevi acima, é considerada imprópria para muitas situações. No entanto, não é um palavrão nem descreve nada de embaraçoso. É apenas considerada imprópria, sem grande razão para tal…

E a gramática da língua? Há um tempo verbal próprio para nos referirmos a qualquer coisa que aconteceu repetidamente nos dias anteriores ao momento da fala: «nhote ladofa moc lee» significa que o sujeito falou regularmente com outra pessoa nos últimos tempos. Há ainda um tempo verbal que indica alguma coisa que ocorreu no futuro de um acontecimento passado. Ou seja, se eu falo de uma revolução que aconteceu em 1990 e quero referir-me a qualquer coisa que aconteceu cinco anos depois (no futuro da revolução, mas no nosso passado), tenho um tempo verbal próprio nesta língua da Índia. Ah, e se tivermos a certeza do que estamos a dizer, usamos uma certa conjugação verbal, mas, se tivermos dúvidas, usamos outra. É um espanto, a gramática desta língua.

Verbos à portuguesa

Talvez o leitor tenha percebido o truque… As descrições acima não são da tal língua indiana (que existe e é interessante, mas não tem estas características). Muito do que descrevi acima aplica-se, com algumas alterações, ao nosso português!

Vá, peço desculpa pela malandrice. Foi uma maneira de espicaçar a curiosidade de quem me lê…

Sim, há um tempo verbal que indica uma acção que se repete várias vezes: «Tenho falado com ele.»[1] É o pretérito perfeito composto, que, neste caso, tem um sentido iterativo.

Este pretérito perfeito composto também é usado em certas construções condicionais: «Se eu tenho falado com ele ontem, nada disto acontecia!» Há quem veja neste uso alguma informalidade – ou mesmo um erro –, mas tudo dependerá dos hábitos de cada um. O certo é que este tempo verbal até já aparecia com este sentido nesta estrofe do Canto IX d’Os Lusíadas:

Todas de correr cansam, ninfa pura,
Rendendo-se à vontade do inimigo;
Tu só de mi só foges na espessura?
Quem te disse que eu era o que te sigo?
Se to tem dito já aquela ventura
Que em toda a parte sempre anda comigo,
Oh, não na creias, porque eu, quando a cria,
Mil vezes cada hora me mentia. [2]

Ah, a conjugação verbal do português, vista de fora, é um espanto. O próprio presente do indicativo é qualquer coisa de deixar um linguista marciano a coçar a cabeça. Parece simples: é um verbo que indica uma acção que está a decorrer agora. Só que não: se quero indicar uma acção que está a decorrer neste momento, digo «eu estou a falar com o Pedro» ou, por outras paragens, «eu estou falando com o Pedro». O presente do indicativo do verbo «falar» é uma ferramenta que tem outros usos: para dizer que falamos todos os dias com aquela pessoa («Eu falo com o Pedro todos os dias.»); para dizer que sabemos falar uma língua («Eu falo japonês na perfeição!»); para dizer que, no futuro, falaremos com aquela pessoa («Não se preocupem, eu falo com ele.»). E não termina por aí…

Reparemos ainda: dizer «tenho falado com o Pedro todos os dias» e «falo com o Pedro todos os dias» parece quase a mesma coisa. Mas há uma diferença subtil: no primeiro caso, estamos a dizer algo como «nestes últimos tempos, não há dia que passe sem que eu fale com o Pedro»; já a segunda construção significará que eu costumo falar com o Pedro todos os dias desde há muito tempo (e vou continuar).

Quanto ao tal tempo verbal que indica o futuro do passado, claro que existe em português: é o futuro do pretérito, que habitualmente chamamos de condicional: «Anos depois, encontrá-lo-ia no mesmo lugar.» Hoje em dia, usamos mais um tempo composto: «Anos depois, viria a encontrá-lo no mesmo sítio.» Mas esse é o mesmo fenómeno que nos leva a dizer «vou encontrá-lo amanhã»: o verbo «ir» é um auxiliar que permite construir tempos compostos para expressar o futuro. É uma outra complicação da nossa língua, que aprendemos sem pestanejar.

Esta transformação do verbo «ir» numa peça da gramática da língua é um exemplo de «gramaticalização», ou seja, o processo através do qual uma palavra normal, com um sentido próprio, começa a ser usada sem esse sentido original, mas com uma função morfológica ou sintáctica. Deixa de ser parte do léxico da língua e começa a funcionar como peça da gramática da língua.

O próprio futuro do português foi criado pela transformação do verbo haver num morfema (uma peça da gramática):

«amar hei» > «amarei».

Se o verbo «haver» acabou por ser comido pelo verbo principal, o verbo «ir» ainda nos aparece bem separado na escrita – mas o processo é semelhante.

Na descrição ficcional da gramática do bodo, algum leitor mais atento terá também percebido que, em português, também há um modo verbal para a dúvida (o conjuntivo) e outro para a certeza (o indicativo). Note-se que o uso dos dois modos é muito mais complexo do que parece ao fazer esta divisão tão limpinha (como veremos na entrada «garantir que fazemos isto») – nada é simples no que toca à língua.

Uma questão de género?

Já quanto ao género… Aquela descrição do género com base na cor é fantasiosa (mas não garanto que não exista numa língua perdida num vale da Papua-Nova Guiné). Mas, se virmos bem, e ao contrário do que sentimos ao falar a nossa língua, o género dos substantivos que usamos não segue qualquer lógica: por que razão havemos de considerar uma mesa como um ser feminino e um banco como um ser masculino? A divisão por género de todos os substantivos é um pedaço de gramática absolutamente aleatório.

Aleatório e, ouso dizer, inútil – há línguas que passam bem sem um sistema de género, como o inglês, onde há substantivos (e pronomes) que se referem a seres de determinado sexo, mas onde não é preciso atribuir um género aos outros nomes todos. Para um inglês, uma árvore é apenas «a tree» ou «the tree», sem género que se veja ou sinta. É assim no inglês, como noutras línguas. Há línguas com um género, dois géneros, outras com três. À nossa calhou ter dois.

Disse que o género gramatical é aleatório e há línguas que passam bem sem ele. Que haja esta divisão em português é um problema? Claro que não: as gramáticas das línguas estão a transbordar deste tipo de divisões e subtilezas deliciosas que outras línguas dispensam sem mal – estas arbitrariedades são a própria massa com que se constrói a gramática da língua.

A gramática não é lógica: é uma floresta cheia de esplendorosas árvores de troncos engalfinhados uns nos outros, uma floresta que vem do princípio dos tempos e vai mudando devagar. Uma floresta complexa, de que ninguém tem um mapa completo e que, vejam lá isto bem, todos reconstruímos no nosso cérebro nos primeiros anos da nossa vida. Não apetece partir à aventura?

Três curiosas palavras

Quanto às três palavras lá atrás, na verdade, são portuguesas:

  • enturmar-se: um verbo que indica o momento em que começamos a sentir um certo conforto no meio de um grupo de pessoas que não conhecíamos;
  • destrocar: um verbo que indica a troca de um objecto por objectos de valor inferior que, em conjunto, têm o mesmo valor que o objecto original;
  • consumação: o momento exacto em que um casal numa relação duradoura tem relações sexuais pela primeira vez.

Foi uma malandrice? Foi, claro.[3] Mas é esta a explicação daquelas listas de palavras exóticas ou «intraduzíveis» que por vezes aparecem por aí: se escolhermos um dos significados da palavra e o explicarmos de maneira esmiuçada, a descrição parecerá incrível e quase intraduzível.

Quando o leitor encontrar uma lista de palavras intraduzíveis, desconfie: provavelmente, cada palavra tem um sentido mais genérico, mas o falante com quem o criador da lista conversou escolheu um sentido particular, porque na vida real as palavras são usadas em frases, com sentidos precisos, e não nos dicionários, onde as definições têm de ser abrangentes. As palavras são uma espécie de nuvem de significados e só adquirem o sentido preciso em cada frase (às vezes com a ajuda de um gesto ou de um piscar de olho). É assim que todas as línguas funcionam, e, por isso, nenhuma palavra é inteiramente traduzível por outra palavra exacta, mas as frases já são bichos bem mais fáceis de domar nas mãos treinadas do tradutor.

Uma nota em relação a esta brincadeira toda: os tempos verbais de que falei anteriormente ou as palavras que enumerei não são exclusivas do português – não é esse o objectivo deste jogo. Foi uma maneira de nos obrigar a olhar com outros olhos para a nossa língua, com tudo o que tem dentro (exclusivo ou nem por isso). É uma forma de começarmos a olhar para o português com olhos de linguista marciano.

Um tabu peculiar

Repare agora no tabu que inventei lá atrás: o medo da palavra «goblo». Como disse, esta palavra existe em português e é objecto de um tabu real. Falo da nossa palavra «destrocar». Tem um sentido preciso, está formada como outras palavras que não desinquietam ninguém («desinquietar», por exemplo), mas o seu uso é tabu em certas situações ou por certas pessoas: é considerada uma palavra incorrecta, demasiado rasteira, um erro que se perpetuou. Podemos até imaginar um falante de bodo a dizer: «Ah, não: os verbos começados em “go” são negativos! Não podemos usá-lo para esta palavra!» Nós, que estamos de fora, reparamos como os falantes da língua usam vários verbos começados por «go» sem qualquer sentido negativo – e achamos curioso este tabu peculiar. É precisamente o que acontece com o nosso «destrocar» e o prefixo «des», que alguns juram ter um sentido estritamente negativo.

Este torcer do nariz em relação a umas palavras, e não a outras, acontece em todas as línguas. Esta tendência para tentar corrigir a gramática da língua tal como ela existe também não é assim tão rara entre os povos do mundo. Este horror a certas palavras e construções muito usadas é ilógico, mas é parte do que torna a linguagem humana tão interessante…

Muito do horror nasce duma certa dificuldade em lidar com a variação: a língua muda de situação para situação, de pessoa para pessoa, de família para família, de classe social para classe social, de região para região, de época para época. É assim em todas as línguas – no entanto, esta variação no espaço e no tempo é incómoda para algumas pessoas. Este incómodo também existe em todas as línguas e todas as épocas – mas ultrapassá-lo ajuda-nos a conhecer melhor a linguagem humana e a nossa língua em particular.

É precisamente por este prisma do medo ou horror a algumas palavras e expressões que este livro irá mergulhar na língua, para trazer à superfície algumas das suas delícias.

Todas as línguas nos espantam

Todas as línguas são estranhas para quem olha para elas pela primeira vez – e todas as línguas são naturalíssimas para quem as aprendeu desde criança. Quando nos esforçamos (é o que os linguistas fazem todos os dias), começamos a ver a nossa língua de fora – e o espanto, para quem tem a coragem de saltar por cima das ideias feitas e dos medos habituais, é de nos deixar de boca aberta.

Se levantarmos o capô da língua, vemos o motor que o nosso cérebro recriou através do contacto com outros falantes nos primeiros anos de vida. Há quem se concentre nas pequenas imperfeições desse mecanismo numa cabeça em particular – ou até em imperfeições que não estão lá. Há quem não conheça a complexidade do motor e confunda as suas ideias simplificadas com o funcionamento do mecanismo. Criam-se então alguns mitos e a ideia de que esta palavra ou aquela construção estão erradas, apesar de fazerem parte do léxico ou da gramática da língua.

Um exemplo? Ainda há dias ouvi alguém a queixar-se do pretérito perfeito composto de que falei antes. Dizia a pessoa que «se eu tenho disparado» é um erro quando usado no sentido condicional (por exemplo, na frase «Se eu tenho disparado, ele morria na certa.»).

No entanto, no debate que se seguiu, percebi que a pessoa não sabia que estava perante um tempo verbal legítimo. A ela, este tempo composto parecia-lhe apenas o verbo «ter» no presente do indicativo e o verbo «disparar» no particípio – ora, os dois verbos, em conjunto, são mesmo um outro tempo verbal (composto): o tal pretérito perfeito composto.

Os detectives da língua

Quando queremos saber mais sobre a nossa língua ou sobre a linguagem humana, temos de ser um pouco mais exigentes com nós próprios, menos prontos a disparar sem saber, mais curiosos e espantados. A conjugação verbal portuguesa (para nos atermos só a esse aspecto particular da língua) é muito mais intrincada do que parece. Mesmo quem a estuda todos os dias tem dúvidas – atrever-me-ia até a dizer que todos os que a estudam de forma aprofundada acabam com mais dúvidas, porque percebem o tamanho da nossa ignorância sobre o tal mecanismo que temos dentro do cérebro.

Na verdade, a língua mais estranha, mais espantosa, mais deslumbrante é a nossa – e todas as outras. Se olharmos de fora, todas as línguas são estranhas. São mecanismos espantosos, criados ao longo de séculos sem que ninguém planeie as suas estruturas ou os recantos emaranhados – a complexidade de cada língua nasce da interacção de milhões de falantes; é um sistema feito de hábitos antigos, regras que começam a cristalizar-se e, depois, a desfazer-se, metáforas que se tornam palavras correntes, palavras correntes que se tornam parte da gramática… As línguas nunca estão paradas, e é espantoso ver como estes mecanismos cerebrais se vão recriando, destruindo e construindo continuamente ao longo dos tempos, como nuvens de beleza estonteante – e que, ainda por cima, nos deixam comunicar uns com os outros ou apenas dizer o que nos vai no corpo.

Usamos o nosso mecanismo particular – a língua portuguesa – todos os dias, sem parar e sem pestanejar, à mistura com gestos, com o tom de voz, com a relação particular com a pessoa com quem falamos. Como usamos um destes mecanismos todos os dias, a todas as horas, é natural que tenhamos uma curiosidade tremenda sobre como funciona. Essa curiosidade vê-se, por vezes, amarrada por certos medos e tabus, certas ideias falsas, certos mitos. Ora, uma mente curiosa não se deixa saciar com umas quantas certezas mal-amanhadas: procura sempre mais. Neste livro, tentarei alimentar as mentes curiosas dos meus leitores – a estratégia que encontrei, desta vez, foi olhar para os erros falsos, essas expressões ou construções da língua que são tão legítimas como qualquer outra, usadas por milhões de falantes, mas consideradas incorrectas por algumas pessoas.

 Como disse, esta é uma estratégia. A minha real motivação para escrever este livro foi olhar com atenção e prazer para o português. Quero levar os leitores a reparar na língua que falam – quero afastar o medo e algumas superstições e mostrar como a língua é uma coisa espantosa, para lá dos erros que todos cometemos (uns mais do que outros, é verdade).[4]

Convido o leitor a armar-se em detective e a dar asas à sua curiosidade. Veremos, ao longo do livro, o que é, afinal, a norma da língua (no glossário que se segue a esta introdução), como usamos o corpo para evitar ambiguidades, como a redundância é essencial ao bom funcionamento da língua, como as palavras saltam categorias e mudam de significado por dá cá aquela palha, como a gramática é mais complexa e espantosa do que pensamos, como os sons que saem da nossa boca são surpreendentes, como a língua, no fundo, é um bicho selvagem, um bicho que podemos admirar, cavalgar o melhor possível e, de vez em quando, tentar domar – mas continuará selvagem pelos séculos fora.

Este é o primeiro capítulo do livro Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português, publicado pela Guerra e Paz. 

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas na página Certas Palavras e fala sobre livros na Pilha de Livros. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita.

Notas

[1]  Aliás, a frase «nhote ladofa moc lee» é «tenho falado com ele» com as letras baralhadas.

[2]  Segui a fixação de texto de Helder Guégués, na edição publicada pela Guerra e Paz. Agradeço a Sérgio de Carvalho Pachá ter-se lembrado desta estrofe d’Os Lusíadas.

[3]  Fui buscar esta ideia de disfarçar algumas palavras europeias com a máscara duma língua distante a um livro de John McWhorter (Our Magnificent Bastard Tongue), que fez a mesma malandrice em relação ao inglês. Foi ele que se lembrou de usar o bodo como máscara – a razão por que escolheu esta língua e não outra é interessante, mas fica para quem ler o livro. Fui também buscar duas das três definições ao seu livro.

[4]  As grandes falhas surgem na escrita, uma forma de tentar capturar com manchas no papel as palavras que dizemos nesse espanto que é a língua falada. Escrever é como falar para um microfone com uma venda nos olhos e as mãos atadas atrás das costas, sem saber quais são as reacções de quem nos ouve. É mais difícil, e só muito recentemente a maioria da população aprendeu a lidar com esta outra ferramenta. Passamos a vida a aprender a usá-la como deve ser.