E, assim, vejo-me naquela rotina espantosa dos primeiros dias, a dormir aos bocados, a pôr o bebé a arrotar depois da mama, a tomar conta do irmão, a aprender a viver agora a quatro.
Pois, ia-me esquecendo, mas não me esqueci — e aqui estou, perante a página em branco, sem saber bem o que escrever.
Bem, está decidido: vou começar no A e acabar no Z.
A... Ora, o A... A primeira letra. Lembro-me duma certa palavra, mas não pode ser. Demasiado banal. Isto começa bem: não sei o que escrever na primeira letra... Fica para o fim.
Banho. O miúdo é tão pequeno. A água está demasiado quente ou demasiado fria. Ele chora. O que fiz? Queimei-o? Parti alguma coisa? Ele acalma. Afinal gosta. Depressa, que está frio — toca de o vestir para ir mamar. E chora de novo quando o tiro da água.
Cocó. Depois de ter um filho, uma pessoa tem de pôr as mãos na massa, ou seja, no cocó, essa estranhíssima palavra de bebé que continuamos a dizer já depois de adultos. Pois, por estes dias, até o cocó é parte da felicidade. (Peço ao leitor que me perdoe esta última frase — tenho dormido pouco.)
Dormir. Sim: pouco. Talvez até nem seja assim tão pouco — só que o sono fica dividido pelo dia todo. À noite, toca de acordar várias vezes. Durante o dia, toca de encostar a cabeça várias vezes. É assim que tenho sonhos às cinco da tarde e acabo a ler e a responder a mensagens às cinco da manhã.
Enfermeiras. Nas primeiras horas, entravam e saíam sem quase notarmos. São a companhia bem-disposta dessas horas atarantadas.
Futuro. Sei lá o que há-de ser o futuro. Olho para esta criança e imagino o mundo em 2038, terá ele 20 anos, ou em 2068, terá ele 50 anos. Os números são quase absurdos, como eram absurdos números como 2000 ou 2018 quando eu nasci. O mundo não se prevê — vive-se o melhor possível.
Gabinete. Ao segundo dia, lá foi ele ao gabinete do hospital onde se registam as crianças — e onde, descobrimos agora, se tira a primeira fotografia oficial para o famoso Cartão do Cidadãozinho. E pronto: já ficou habilitado a pagar impostos.
História. Sim, ao nosso lado passam os dias do mundo como uma televisão ligada que ninguém vê. Devia escrever crónicas sobre notícias, sobre o mundo, sobre os grandes acontecimentos da semana — e agora não consegui. A História há-de voltar, mas para já a História que me importa dorme aqui ao lado.
Irmão. É estranho pensar que, há cinco anos, este rapaz falador e curioso que está a tentar adaptar-se à nova vida com um irmão era o recém-nascido que nada dizia e apenas mamava (e fazia o tal cocó). Agora, apresenta-se baixinho ao irmão: «Sou o teu mano!»
Jogos. E brincadeiras. E risos. E cócegas. Ele — o irmão — mal pode esperar. Nós também não. Há-de haver, claro, choro e zangas e birras. Faz parte. Mal posso esperar.
Livros. Uma confissão: há cinco anos, aquando do primeiro filho, comprámos um ou dois daqueles livros que ajudam a enfrentar o bicho. Pois, desta vez, nem nos passou pela cabeça.
Medo. A grande surpresa que tive há cinco anos, quando nasceu o primeiro filho: o medo que aparece donde menos se espera. Agora, foi a mesma coisa, mas já estava preparado — julgava eu. Afinal, não estamos, nunca estamos — mas avançamos.
Nascer. Logo de madrugada, às cinco e meia da manhã. Num mundo ensonado, em silêncio, pelos corredores dum hospital quase vazio, momentos que ficam gravados para sempre na memória de todos — menos dele (e também para que ele a leia um dia escrevo esta crónica).
Opiniões. Há as bem-intencionadas: deve deitar-se para baixo; deve deitar-se para a esquerda; deve dormir a fazer o pino. Depois, há as torcidas: ah, pois, no meu tempo isso não era assim e vejam lá como estou aqui. Por vezes, resvalamos para a mesquinhice: os pais de agora, as crianças de agora, o cocó de agora...
Primos. Dois primos babados já a imaginar as brincadeiras do futuro. Uma prima à distância que fala com o bebé pelo ecrã do telefone e fica derretida, a mandar festinhas em duas línguas.
Quarto. Desta vez, deixámos quase tudo para a última — mas agora lá está o quarto enfeitado com dinossauros (há cinco anos foram piratas). É o mesmo quarto do irmão que, de qualquer forma, escapa-se de lá quase todas as noites para vir dormir um pouco ao pé de nós e do irmão.
Recordações. Porquê esta compulsão em tirar fotografias? Para mostrar ao bebé? Para não deixar escapar estes dias que são difíceis, mas sabem bem? Não sei, mas é difícil evitar: e depois, já não em papel como nos tempos em que nasci, seguem para a família, que ouvimos fazer um «oohhh» mesmo à distância de quilómetros.
Sorriso. O rapaz sorri aos quatro dias. Todos nos dizem: ah, isso não é sorrir, é apenas um espasmo ou algo assim. E olhamos para o sorriso dele e sorrimos também (não podemos evitar, é um espasmo).
Tios. Verdadeiros e emprestados: olham para ele como olhei para os meus sobrinhos, com aquele outro amor mais leve (no bom sentido), sem o peso das noites mal dormidas, mas com curiosidade para saber o que vão ouvir da boca do miúdo. Há ainda os avós, que podia muito bem ter deixado lá em cima, na letra A, mas ficam aqui — e ficam muito bem.
Umbigo. No parto, o pai faz pouco: está ali a dar apoio, mas o apoio é sempre um pouco absurdo. Parece que empata mais do que ajuda — mas não podia estar noutro sítio qualquer. Depois, o bebé nasce, cai qualquer coisa dentro de mim, aproximo-me, boca aberta, mão encostada ao ombro dela e ouvimos o bom choro do bebé nascido — e, por fim, com as inevitáveis lágrimas nos olhos, corto o cordão e, os dois juntos, a olhar para ele, sabemos que é já uma outra pessoa pronta a começar a...
Vida. Que será como ele quiser e o mundo deixar — mas já neste momento em que apenas mama e dorme e faz cocó e chichi (ou xixi), desejamos profundamente, para lá de todas as certezas, que ele tenha sorte e consiga um pouco da felicidade que merece. Nós cá estaremos para ajudar o melhor que pudermos — e, claro, para limpar as fraldas do…
Xixi. Eu sei que o costume é escrever «chichi», mas tenham algum dó de mim que cheguei até aqui e não tinha palavras para esta maldita letra. Pois fica o chichi nesta grafia alternativa, mais uma palavra que, bem vistas as coisas, continuamos a dizer pela vida fora mesmo entre adultos, porque há coisas em que todos somos bebés.
Zélia. Fazer uma crónica assim, por ordem alfabética, é um pouco arriscado. As palavras nem sempre aparecem no sítio certo. Mas aqui a tal ordem implacável acertou em cheio — a última letra tinha mesmo de ficar reservada para o nome da mãe do bebé e nem é preciso dizer porquê.
Passo os olhos pelas letras todas e vejo que praticamente tudo aquilo que escrevi podia ter sido escrito por qualquer pai ou mãe. Não faz mal. Ter um filho ajuda-nos a não ter medo de dizer coisas que não são originais. Porque ter um filho é tudo menos original — e, no entanto, parece sempre a primeira vez. Ora, nesta segunda primeira vez em que temos um filho sentimos as dúvidas, os nervos, o cansaço, o mundo, o trabalho, os problemas a continuar à nossa volta — e nós a querer uns momentos de pausa para ficarmos, babados, a olhar para esta criança que ainda não sabe o que lhe aconteceu.
E o que lhe aconteceu foi, apesar desse mundo todo, muito bom. Nasceu — e nós não conseguimos evitar (é mais forte do que nós) sentir qualquer coisa que só conseguimos descrever usando a tal palavra banal de que tinha medo no início deste texto, mas que não posso deixar de dizer agora: amor.
Marco Neves | Tradutor e professor. Autor dos livros Doze Segredos da Língua Portuguesa e A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa. Escreve no blogue Certas Palavras.
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