De Afonso a Marcelo em poucos minutos
O certo é que o meu filho, numa daquelas conversas em que ele vai lá atrás, na cadeirinha, e nós os dois à frente, perguntou-nos:
— Quem é o presidente de Portugal?
Entreolhámo-nos. Donde viria aquilo?
Dissemos o nome do nosso atual presidente e ele vai e pergunta:
— Há presidentes que já morreram?
Foi então que lhe explicámos que sim, há muitos presidentes que já morreram — e antes dos presidentes havia os reis.
— Já morreram?
— Sim, os reis de Portugal já morreram. Todos.
Na cabeça dele, parecia que a História tinha sido mesmo agora e os reis tinham morrido vítimas duma qualquer epidemia.
Tentámos explicar que sim, já tinham morrido todos, mas há muito, muito tempo — e um de cada vez. Perguntou-nos então como se chamavam os reis e, enquanto víamos o Tejo a brilhar ao sol, fizemos um exame de História de que não estávamos à espera.
— Bem, o primeiro foi Afonso Henriques… — e lá seguimos pelos séculos fora. De vez em quando, ele perguntava-nos se o dito rei já tinha morrido e nós lá explicávamos que sim…
Quando chegámos a D. Sebastião, ele fez a mesma pergunta e aí hesitei.
— Bem, há quem diga que esse ficou vivo lá pelas areias de Marrocos. — O Simão ia fazer uma pergunta qualquer, mas atalhei, antes que me enredasse nas areias do sebastianismo: — Mas está morto, também. Adiante. Logo a seguir veio um senhor muito velho chamado Henrique…
Chegados ao século XIX, contei-lhe que houve um rei que andou em guerra com uma rainha, embora na verdade a guerra fosse com o pai dessa rainha — e que esse rei foi expulso e nunca mais voltou. Ele quis saber o nome e eu disse-lhe «Miguel» e ele perguntou se o tal rei Miguel era mau. Eu fiquei sem saber o que dizer, pois são guerras muito antigas e eu sei lá se o dito D. Miguel era mesmo mau.
— Dizem que sim, filho.
Falámos-lhe ainda do rei D. Fernando II, que era rei porque se casara com a tal rainha e que construiu um palácio em Sintra — isto para ver se a conversa se desviava para outros lados, porque em breve chegaria aos presidentes e, por alguma razão, é mais fácil saber a lista dos reis do que dos presidentes.
Chegados a D. Carlos, disse-lhe que ele já tinha visto uma fotografia desse rei no Aquário Vasco da Gama… Mas o Simão não mordeu o isco e continuou a querer saber os nomes dos reis.
Falámos-lhe então de D. Manuel II, que tal como o D. Miguel, também foi expulso e acabou a viver em Inglaterra (na língua que usamos lá em casa, Inglaterra vem sempre com a descrição «a terra da prima» logo a seguir).
— Eu ainda não existia quando o Manuel foi expulso?
— Não, não existias…
— Foi no tempo dos dinossauros?
— Não, tudo isto foi depois dos dinossauros, mas antes de tu nasceres.
— Já tinhas nascido, mãe?
— Foi antes de nós nascermos…
Lembrei-me então de dizer, para ele se orientar:
— Olha, mas o rei D. Manuel II ainda era vivo quando o avô Manuel nasceu…
Talvez assim o tempo começasse, devagar, a encaixar.
Falámos então dos presidentes. Começámos em Manuel de Arriaga e, entre nomes que já não tinham números à frente, mas lá iam avançando pelo tempo, numa sucessão que, embora não seja a História real e dorida, é mais fácil de perceber, com as datas e os nomes e as histórias de guerras e exílios a ajudar, lá chegámos ao nosso atual presidente…
— Chama-se Marcelo — e usámos o primeiro nome, por hábito, quase como se fosse um rei. Porque será? Por pouco, não resvalámos para «D. Marcelo I», mas não quero insinuar traços monárquicos no presidente da nossa querida República.
— O Marcelo vai ser presidente até morrer?
Já assustados, dissemos:
— Não, não! — e falámos um pouco das eleições: somos nós todos que pomos um papel numa caixa e escolhemos. Quem tiver mais papéis com o seu nome fica presidente. Daqui a uns anos, escolhemos outro e o Marcelo deixa de ser presidente.
— Ah, e depois é expulso?
As horas que ficam na memória
Bem, deixo o leitor descansar destas conversas infantis. Só descrevi tudo isto para falar do tempo — é difícil perceber como passa, que gerações nos separam desses primeiros presidentes, dos reis e rainhas, do que veio antes, dos dinossauros…
Na nossa própria vida, não é nada fácil olhar para trás e perceber o tempo que já passou. No entanto, nesse tempo que não pára, há dias que ficam marcados — como diz Javier Marías no livro que calhou andar a ler nestes dias, a vida vai a passar, sem pedir contas a ninguém, e de repente um acontecimento imprevisto, como uma morte, grava para sempre na nossa memória as banais horas que vieram antes.
(Fica o leitor oficialmente intimado a ler o tal livro — que não é um livro de ficção, diga-se. Não dará por mal empregue o tempo e ficará, ainda por cima, a saber como o próprio Javier Marías se tornou rei duma ilha das Caraíbas. O livro chama-se Negras Costas do Tempo ou, no original, Negra espalda del tiempo.)
Estes dias que agora vivo ficarão marcados, sei-o bem: está para nascer o irmão mais novo do Simão, aquele que anda preocupado com a morte dos reis. Por isso, imagino que algum destes dias — talvez hoje mesmo, dia 14 — fique para sempre inscrito na minha cabeça como o dia em que nasceu o meu segundo filho — e imagino ainda que um dia esse outro filho me pergunte se isto ou aquilo aconteceu antes de ele existir.
Os velhos piões dos meus filhos
Enquanto ando para aqui entretido em elucubrações sobre o tempo e sobre livros, o meu filho está ali a brincar, já esquecido de reis e presidentes.
E brinca com o quê? As modas vão e vêm, mas agora anda louco com os Beyblades, umas traquitanas que giram sem parar dentro dumas arenas azuis que se compram no supermercado. No fundo, apesar do nome inglês, está a brincar com… piões!
É verdade: embora o aspeto seja muito diferente, aquilo são piões — e, depois de perguntar ao meu pai, percebi que as lutas de Beyblades não têm regras assim tão diferentes das guerras de piões de antigamente.
Pois, é verdade que muitos acreditam viver num tempo diferente dos outros. Há quem ache que vive num tempo diferente por ser melhor do que todos os tempos, mas a maioria das pessoas (digo eu, embora possa estar muito enganado) acha que vive num tempo diferente por ser um tempo bem pior: um tempo em que os miúdos já não brincam, com o nariz enfiado em ecrãs, um tempo menos genuíno, bem diferente do tempo da nossa infância, em que as brincadeiras eram boas e o sol iluminava o nosso país em paz...
Bem, para ser sincero, estou convencido que o nosso tempo não é especial: tem as suas coisas muito lá dele, há quem agora brinque, de vez em quando, com um ecrã na mão e todos os dias aparecem outros perigos, outros medos, outras alienações e outras brincadeiras — mas as crianças continuam a brincar, os reis ou presidentes ou o que for entram e saem (devagar), a História não pára e as conversas também não…
Agora, aquilo que sei, sem grande margem para dúvidas, é que daqui a muitos anos os meus filhos e os amigos, já bem mais velhos, irão reclamar dos miúdos de agora («só querem saber dos zirpotecs!») e terão saudades desses velhos tempos em que brincavam com piões, perguntavam aos pais tudo o que queriam e, no nosso país, reinava em paz Marcelo I de Portugal.
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