Comecemos pelo fim: onde está Juan Carlos? Segundo as primeiras notícias, teria viajado para a Republica Dominicana, onde estaria com o seu grande amigo multimilionário Pepe Fanjul, o “rei do açúcar”. Depois, segundo várias fontes, estaria em Portugal, mais concretamente em Azeitão, em casa da família Espírito Santo Brito e Cunha, de quem é amigo desde os tempos do “exílio” no Estoril, até 1948.
Em Portugal, as especulações foram desde os raciocínios lógicos – afinal, o monarca tinha cá vivido e ainda por cá tem amigos, entre os quais Francisco Pinto Balsemão – até às mais disparatadas especulações. O jornal i, por exemplo, fez capa com declarações em que João Soares afirma que “Rei Juan Carlos deve ir para Cascais”, para logo em seguida o próprio João Soares comunicar no Facebook que não teve qualquer contacto com o jornal. No Facebook, houve quem chamasse de tudo a Juan Carlos – como, por exemplo, “biltre emérito” – e quem aproveitasse para defender a postura de Filipe VI em particular e os regimes monárquicos em geral.
A última notícia, tão credível quanto as outras, foi dada pelo jornal monárquico ABC, segundo o qual sua ex-majestade teria voado para Abu Dhabi, onde também tem amigos milionários – neste caso a própria casa real.
Mas é em Espanha que a saída de cena de Juan Carlos está a causar mais agitação, pela importância histórica, mas também porque serve de detonador das várias fissuras e casos mal resolvidos que pululam no país. Por exemplo, o escritor Arturo Perez Reverte escreveu na sua conta de Twitter: “É um triste final e uma decisão oportuna. Deve-se pagar por tudo o que se faz, sobretudo quando se deixa para trás vergonha e decepção. Calculo que agora iremos todos, com igual entusiasmo, atrás de Jordi Pujol”. Pujol, para quem não se lembra, foi o dirigente separatista e herói catalão que em tempos passados se viu envolvido, ele e toda a família, num monumental escândalo de corrupção.
Todavia, a questão aqui não é onde Juan Carlos vai ficar à espera das investigações da justiça espanhola (e suíça, também), mas o que poderá acontecer em Espanha como resultado do escândalo.
A Espanha vive um momento difícil, entre a insistência catalã na autonomia, a difícil coabitação da coligação entre os socialistas de Pedro Sánchez e os esquerdistas republicanos de Pablo Iglesias e, evidentemente, a crise sanitária e económica provocada pela Covid-19. A última coisa de que precisava era de uma crise na Casa Real, que é ainda a única instituição susceptível de unir as várias nações que compõem o país. A dicotomia monarquia/república, eliminada à bruta por Franco, que fuzilou republicanos até muito depois da Guerra Civil ter acabado, e decidiu sozinho que a sua ditadura seria seguida por uma monarquia, continua uma questão em aberto.
A passagem do regime franquista para a monarquia constitucional, feita em 1975 sem sobressaltos de maior, não fez esquecer a questão da legitimidade do regime. Franco pode ter eliminado a maior parte dos republicanos entre 1939 e 1948, mas entretanto novas gerações chegaram à maioridade e questionam um regime imposto sem qualquer consulta popular.
Aliás, vem a propósito reconsiderar a famosa afirmação de que Juan Carlos terá salvo a democracia espanhola, aquando do golpe armado de Tejero Molina, em 23 de Fevereiro de 1981. Molina ocupou pelas armas o Parlamento, esperando apoio das forças militares, ainda franquistas. Mas os militares, mais do que saudosos de Franco, eram respeitadores da ordem e os generais telefonaram ao então rei Juan Carlos. O rei desautorizou o golpe, legitimando assim umas credenciais democráticas que não tinha.
Também houve quem considerasse que o golpe era uma encenação, precisamente para provocar a legitimidade real. Uma prova circunstancial, mas forte, é que Tejero Molina, acusado de alta traição, saiu em liberdade condicional e vive até hoje em paz e sossego.
Durante o reinado de Juan Carlos sabia-se, à boca pequena, que sua majestade tinha várias amantes e muitos namoros; contudo, seguindo a tradição latina, havia um acordo tácito na comunicação social de não falar nessas marialvices. Só quando o rei teve um infeliz acidente de caça no Botswana, em 2012, é que o caldo se entornou. Por um lado, Juan Carlos estava em lautas férias num momento em que a Espanha passava por uma crise profunda; por outro lado, andava a matar elefantes, o que não é propriamente uma actividade muito aceite nos tempos que correm; para mais sendo à altura representante do World Wild Fund em Espanha, e finalmente, ia acompanhado da amante, Corinna zu Sayn-Wittgenstein-Sayn - uma aventureira de alto coturno que posteriormente teria um papel avassalador na perda de prestígio do rei.
Até que começaram a aparecer na imprensa espanhola várias histórias – processos judiciais de criminosos de colarinho branco em que acabava sempre por aparecer Juan Carlos como um facilitador e comissionista.
Segundo algumas dessas histórias, terá recebido comissões nas importações de petróleo, desde o início do reinado. Outras histórias, não confirmadas, mas também nunca completamente esclarecidas, ligam-no a vários escândalos.
Havia quem dissesse, sem provas, de facto, que não se fazia um grande negócio em Espanha em que ele não recebesse uma comissãozinha. Tanto que o “The New York Times” e a “Forbes” calculam a sua fortuna em 1700 milhões de dólares.
Como disse alguém, muito deve ter um homem, para oferecer 65 milhões à amante – no caso, Corinna a tal que resolveu dizer “tudo”, meter processos, dar entrevistas quando as coisas deram para o torto. Uma história que inclui malas com cinco milhões trazidas do Bahrein e que vinham de avião militar para a base aérea de Torrejon de Ardoz.
E há, evidentemente, os imbróglios judiciais de Corina, que lhe estão directamente ligados, uma vez que a presença da amante em Espanha só faz sentido pela proximidade com o rei.
Em 2014, ainda esta procissão ia no adro, Juan Carlos resolveu abdicar a favor do filho, Felipe VI, para ver se saía dos holofotes. Aliás, se resolveu ou se foi o filho que o impôs, numa tentativa de salvar o prestígio da família, é assunto discutível. Certamente que o Governo da altura terá dado opinião, assim como os inúmeros circuitos palacianos.
Felipe foi ao ponto de anunciar publicamente que não queria receber nada da herança pessoal do pai – ficando assim oficializado que o pai teria bens pessoais de valor significativo e origem duvidosa, uma vez que a família vive às custas do Estado.
O rei teve responsabilidades especiais – a restauração da instituição em Espanha a partir duma legitimidade duvidosa – e desempenhou o seu papel político com brilhantismo, quando foi preciso ser brilhante. Era apreciado pelo povo e mesmo os republicanos respeitavam-no. O que o levou a ser tão sôfrego de dinheiro, quando de dinheiro realmente não precisava? O desprezo que tinha pelos sofrimentos da plebe, que considerava como seus súbditos, é uma atitude só comparável a ditadores do tipo de Alexander Lukashenko, na Bielorrússia, ou de Kim Jong-un, na Coreia do Norte, para citar dois exemplos exemplares.
Não se sabe como irá acabar este filme policial. Em princípio, Juan Carlos pode ser condenado, mas haverá vontade política e necessidade institucional para tanto? Felipe VI tem uma batata quente entre mãos – porque, por mais que se diga que as instituições democráticas funcionarão, caberá a ele, em última instância, decidir o futuro do pai. Sabendo que é também o futuro da monarquia que está em jogo.
Uma condenação será um estigma indelével. Um perdão será uma fraqueza imperdoável.
Neste momento em que se fala tanto de Juan Carlos, é em Felipe que é preciso prestar atenção.
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