Pelo contrário, a opção por Kristalina Georgieva, se vier a impor-se, traduz aquilo que tem gerado desapego geral pela prática dos líderes políticos: é o triunfo do arranjismo político combinado atrás da cortina, planeado para colocar no topo alguém fiel na família política, desprezando o notável transparente processo de escolha desenvolvido na ONU ao longo de seis meses. Haja esperança de que a grandeza leve a melhor.
A Rússia, ao alinhar na manobra a favor da candidata de última hora, vai vetar, e portanto excluir imediatamente, Guterres? É uma opção decisiva. É de esperar que França e Reino Unido, os outros países europeus com poder de veto, recusem subverter as linhas de meio ano de audições e votações de seleção. É um teste nesta votação. Mas parece evidente que há uma máquina poderosa, liderada pela Alemanha à cabeça do PPE, a puxar por Georgieva. Talvez a boa opção fosse a de o Conselho de Segurança transferir a escolha final para os 193 estados-membros com assento na Assembleia Geral. É no entanto improvável que os P5 (os cinco países com poder de veto na ONU, os já referidos mais os Estados Unidos e a China) abdiquem do trunfo de que dispõem. Assim estejam dispostos a agir – passando por cima de preferências patrióticas - com sentido do interesse global e não do particular. Sendo que a Europa, lastimavelmente, já se mostrou desunida ao não ter sido capaz de fazer uma escolha de todo o seu conjunto de países e ao admitir que dentro da União haja várias uniões, como fica evidente quando se fala na vez para uma candidata da Europa de Leste.
Vivemos tempos em que quase tudo parece nivelado pelo mais baixo. Três acontecimentos dos últimos dias ilustram a escorregadela para o pior: o referendo colombiano que surpreendeu com um não ao acordo de paz; o referendo húngaro que mostrou quase unanimidade, embora sem quórum, pela linha dura do nacionalismo-conservador; o discurso do presidente das Filipinas, país com 100 milhões de pessoas, em que o grosseiro Duterte tem o desplante de se comparar com Hitler, agora para exterminar os toxicodependentes.
Na Colômbia, após meio século de uma guerra que matou 250 mil pessoas e fez deslocar seis milhões, esperava-se que o primeiro domingo deste outubro fosse um dia histórico com, conforme as previsões, pelo menos dois de cada três colombianos a votar pela paz negociada nos últimos quatro anos. Aconteceu a surpresa: os colombianos recusaram o acordo de reconciliação, embora por escassa margem de 61 mil votos entre os 13 milhões que entraram nas urnas.
O governo e a ex-guerrilha prometeram imediatamente continuar a lutar em diálogo pela paz. Mas as décadas de desconfianças, medo e revolta deixaram feridas que a esperança prometida nos últimos tempos não deixou fechar. O resultado do referendo mostra que metade da população colombiana não aceita que os guerrilheiros beneficiem de uma espécie de amnistia que lhes permite a integração na vida social e política do país sem passarem pela prisão pelos crimes de sangue cometidos. Muita gente teme que os líderes das FARC continuem a ser financiados pelo que é conhecido como cartel de narcotráfico de Medellin. Também terá contado muito o voto ideológico, com o apelo do ex-presidente Álvaro Uribe, um radical de direita com aspirações a condicionar as presidenciais de 2018, que fez campanha contra o acordo com gente que define “terrorista, usurpadora e assassina”. Para Uribe a única paz aceitável é a rendição das FARC com bandeira branca. Ele rejeita a integração política da gente das FARC e amedrontou os colombianos com uma ativa campanha em que alertava para entrega do país aos comunistas, seguindo-se expropriações e até fuzilamentos.
Há muitos medos em questão: há quem nas cidades tema a chegada dos guerrilheiros vindos da floresta e há os guerrilheiros que temem ser perseguidos para vinganças pelos esquadrões da morte e por vários gangues. O medo prevaleceu, o acordo caiu e a incerteza está instalada na renegociação muito complexa porque ninguém vai querer renunciar ao que já conseguiu inscrever no acordo – embora resista a esperança de que a Colômbia siga o seu caminho sem disparos de armas de guerra. A questão é: como conseguir a reconciliação entre todos, como conquistar o perdão após tanta dor e tanta perda? Mas a convivência em paz é uma ambição que vale todos os esforços. Esta paz colombiana estava na primeira linha para Nobel da Paz, ao lado do Papa e da população das ilhas gregas que acolhe os refugiados. Até ao domingo passado.
A Hungria é outra história de instrumentalização de medos, explorando o contexto dos refugiados. O primeiro-ministro Orban, muito eurocético, muito conservador e aspirante a líder da linha mais dura da direita nacionalista europeia, tentou usar o referendo para poder exibir peso político. Fez campanha radical, metendo no mesmo pacote refugiados e terroristas. Usou imagens dos atentados em Paris e Bruxelas para explorar essa assimilação estampada em inúmeros outdoors e em brochuras enviadas por correio para casa dos cidadãos. A retórica anti-estrangeiros, com linguagem agressiva, exageros e mentiras alimenta há muitos meses os medos e a xenofobia. Tudo é rematado com apelos à defesa da pátria húngara.
Assim, nem espanta que no referendo convocado por Orban tenha havido a quase unanimidade (98%) dos votantes contra a obrigação de acolhimento de refugiados. O chefe do governo de Budapeste contava usar a força destes números para dar mais peso à sua voz na União Europeia. Mais do que a questão dos refugiados, o que Orban pretendia era legitimar o desvio autoritário do seu sistema político. Mas fracassa nesta cruzada porque há outra verdade nos números: mais de 60% da população húngara com direito a voto não participou neste referendo, não houve quórum, o resultado não conta. A consulta de Orban fica assim com um valor político que acaba por se voltar contra ele. Mas persiste a questão da mal e rapidamente negociado alargamento da União Europeia a países do ex-bloco comunista no Leste da Europa: usufruem dos fundos da coesão mas recusam a solidariedade que é fundamento da União. Não é legítimo que possam colher os benefícios e escaparem às responsabilidades.
Nas Filipinas, o novo terror chama-se Duterte. Ele é presidente do país, eleito há três meses com 16 milhões de votos. Nos primeiros três meses de presidência 3600 pessoas foram mortas – média de 40 por dia - nas operações de esquadrões da morte, alimentados por polícias, contra pessoas que são suspeitas de venda ou consumo de drogas. A Comissão de Direitos Humanos da ONU levantou a voz para condenar esta violência sem sentido. Duterte, que gosta de se apresentar como “o castigador”, respondeu com a ameaça de retirar as Filipinas da ONU.
O mundo está em retrocesso, perigoso, nos níveis de liberdade, integração e abertura cultural e política. A eleição de António Guterres para secretário-geral da ONU, se acontecer, não traz a promessa de milagres mas é um sinal positivo de crédito ao mérito para a construção de pontes para mais amplos diálogos. Se a escolhida for Kristalina, não estando em causa as suas competências, fica a sombra de um processo manipulado que quebra a prometida transparência na seleção.
Também a ter em conta:
A vida está assim nas Filipinas de Duterte.
A vida está assim, como mostra esta primeira página, e também esta, em porções do México.
Uma boa ideia para uma prenda aos 18 anos: um passe interrail grátis para viajar por 30 países europeus. Com direito a usar todos os comboios no espaço de um mês.
Em Espanha, perante o estilhaçar do PSOE, será que agora é Mariano Rajoy quem está tentado pelo cenário de terceiras eleições gerais?
A paixão pelas armas, uma perdição americana: excelente documentário no The Guardian.
Uma primeira página escolhida hoje no SAPO JORNAIS: mostra como o PT encolhe no mapa do Brasil. Alckmin (PSDB), governador de S.Paulo, emerge como grande candidato para as presidenciais de 2018.
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