Não tens opinião?! Que triste. Como és digno da tua existência?
A vida pública transforma-se assustadoramente num derby contínuo e em ambiente de rivalidade primitiva. Todo e qualquer tema é passível de se tornar numa enorme questão fracturante da nação e todos aqueles que não tomem partido por um dos extremos são vistos como xoninhas.
A futebolização da vida pública está a assumir traços francamente assustadores, em Portugal, como no Brasil, nos Estados Unidos ou em tantos outros sítios.
Há quem veja nesta radicalização da "conversa pública" um efeito directo da facebookização das nossas vidas. Ou, sendo mais precisa, da permanente "socialização" das nossas vidas. Estamos sempre em contacto, sentimos necessidade de ter coisas para dizer e o enorme espaço online é propício à emergência dos egos dos valentaços. Depois, é o efeito liceu. Cada valentaço ergue a sua corte e as cortes de vários valentaços confrontam-se como modo de afirmação. Da discussão de temas políticos à adopção de animais, tudo é terreno fértil para que imploda a grande cisão.
Na realidade, desconfio que somos todos pessoas muito mais sensatas, equilibradas e até interessantes ao vivo.
Há uns meses, Salvador Martinha contava em conversa com Rui Unas no podcast Maluco Beleza um episódio sintomático disto tudo. Segundo o Salvador, "uma pessoa muito conhecida, um colega nosso" recebeu, a certa altura, uma mensagem privada de alguém que lhe dizia que devia morrer e outras coisas suaves como esta. A pessoa visada ficou incomodada com a agressividade e foi ver ao perfil da pessoa que enviou a mensagem como o podia contactar. Ligou para a empresa onde trabalhava, pediu para falar com ele e quando foi atendido explicou quem era e porque ligava. Do outro lado, já não estava um valentaço indignado. Era só um tipo normal que pedia desculpas e dizia que era tudo um mal-entendido. "Era a brincar".
A intolerância perante opiniões contrárias – pior que isso, a indisponibilidade sequer para ouvir outras opiniões – está a transformar o mundo num sítio mais e mais perigoso. Como se Putins, Assads, Kim Jong-uns e, como não?, Trumps se multiplicassem no meio de nós, as pessoas comuns, os cidadãos que votam. Ou o inverso – como se eles só existissem porque, por alguma razão do foro psicológico, precisamos de líderes extremados, desequilibrados, que sejam a frente visível da humanidade mais animal e mais primitiva.
Há uns dias, alguém me falava do valor incrível da conversa. De como é importante conseguir conversar e não apenas discutir. Conversar é coisa humana. Conversar é cada vez mais coisa de humanos evoluídos e não trogloditas num tempo em que o recuo civilizacional é diário.
Os idiotas perderam a modéstia. Li esta expressão num artigo publicado pelo jornal online brasileiro de nome muito próximo a este onde escrevo, o 247. A autoria é de um jornalista, escritor e dramaturgo brasileiro, Nelson Rodrigues. O artigo que a menciona tem um ano e meio e relata a agressão verbal e quase física a Gregório Duvivier, humorista da Porta dos Fundos, por ter declarado apoio à reeleição, à época, de Dilma Roussef.
Duvivier não estava num comício. Não estava em palco a fazer piadas. Não estava a discutir com ninguém. Estava num restaurante, no Rio de janeiro, simplesmente, a almoçar.
Tenham um bom fim de semana.
Outras sugestões
Já que falamos de Gregório Duvivier, de radicalização, de Brasil, e da opinião forte sobre tudo e nada, aqui fica uma crónica assinada pelo próprio.
Sobre extremismos e afins, aqui fica outra visão. A vitória de Donald Trump nas eleições americanas é tão perigosa quanto o avanço do jihadismo, considera o Economist Intelligence Unit no estudo sobre os dez maiores riscos para o mundo.
Versão corrigida a 21 de março às 12h15:
Na primeira versão deste texto, o parágrafo sobre o Salvador Martinha tinha uma redacção diferente. Mediante o alerta de um leitor, fica feita a correcção e a explicação aos leitores. O episódio em causa tinha sido relatado desta forma por alguém que conhece bem os vários interlocutores. O que não dispensa a validação dos detalhes exactos, sobretudo quando a história nos chega oralmente e lá diz o ditado que quem conta um conto, acrescenta um ponto.
Feita a correcção à história - é o Salvador Martinha que a conta, mas não ele quem a protagoniza- mantém-se a moral que fez com que a escolhesse para ilustrar o tema da crónica: os indignados e os valentaços que todos os dias encontramos online.
Há uns meses, Salvador Martinha contava em conversa com Rui Unas no podcast Maluco Beleza um episódio sintomático disto tudo. O Salvador escreveu um texto e um determinado senhor que ele não conhecia não gostou. Para expressar o seu desagrado escreveu na página de Facebook do humorista que ele devia morrer e outras coisas suaves como esta. O Salvador ficou incomodado com a agressividade e foi ver ao perfil da pessoa que fez o comentário como o podia contactar. Ligou para a empresa onde trabalhava, pediu para falar com ele e quando foi atendido explicou quem era e porque ligava. Do outro lado, já não estava um valentaço indignado. Era só um tipo normal que pedia desculpas e dizia que era tudo um mal-entendido. "Nada disso, senhor Salvador, eu até gosto muito do seu trabalho".
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