O cancro infantil é considerado uma doença rara. Em Portugal são diagnosticados cerca de 400 novos casos por ano, sendo a taxa de sobrevivência de 80%. Estima-se que um em cada 600 adultos seja sobrevivente de cancro infantil.
Era muito pequeno quando fui confrontado com a doença oncológica e, desde aí, a minha ligação com a Acreditar tem-se fortalecido. Passei a ser um Barnabé e conheci pessoas fantásticas com quem construí amizades que vão acompanhar-me para a vida. São uma segunda família.
Como todos os grupos, os Barnabés foram-se adaptando e crescendo ao longo do tempo, fruto também do trabalho que a Acreditar tem vindo a desenvolver nestes 25 anos de existência.
Lembro-me de quase todos os campos de férias, teatros e passeios que fiz com os Barnabés - não dá para esquecer esses momentos. Para além de atividades lúdicas, começou-se a pensar em que medida os Barnabés poderiam estar mais envolvidos na associação. Os primeiros passos foram a ida a escolas partilhar testemunhos, voluntariado, participação em ações de sensibilização, etc.
Sobrevivemos e agora?
Pois é, os sobreviventes cresceram. 2/3 sofrem de um efeito tardio, sendo que 25% destes têm uma limitação séria. Após vários momentos de partilha e reflexão, com a colaboração de profissionais da área, começou a delinear-se um plano para ultrapassar alguns dos desafios do nosso dia-a-dia.
Imagine o leitor que o seu filho tinha ultrapassado a doença oncológica e, no seu regresso à escola, os colegas praticam bullying pelo facto de estar diferente devido aos efeitos dos tratamentos. Esta e outras histórias são partilhadas entre sobreviventes. Muitas das escolas, professores e pais, não estão, ainda, preparados para lidar com uma criança que está em tratamento ou que acaba de o terminar. Em resposta a este desafio, há muitos anos que a Acreditar tenta combater este estigma com ações de sensibilização nos estabelecimentos de ensino. Neste momento, está a desenvolver um jogo de cartas sobre oncologia pediátrica para as escolas e, assim, minimizar os impactos negativos desta reintegração.
Não é só a criança que sofre com a doença. Procure, por momentos, colocar-se no lugar de um pai, mãe, tio ou avó que, por ter de ficar a acompanhar a criança no hospital, vê o seu posto de trabalho colocado em dúvida, ou é mesmo despedido.
Ficou espantado com algumas das situações? Idealize agora um jovem que teve a infelicidade de dar de caras com a doença nos seus primeiros anos de vida e que hoje, com uma vida tranquila, se depara com a impossibilidade de dispor de um seguro de saúde ou de vida e, por isso, não terá acesso a um crédito para a compra de habitação ou, na melhor das hipóteses, é-lhe apresentado o valor mais alto praticado pela agência, banco, etc. Terá este jovem de ficar marcado, para o resto da sua vida, por algo que lhe aconteceu quando ainda nem conseguia andar ou falar? Ou poderá ter o seu registo esquecido, depois de longos anos de alta médica?
Como última situação, falo-vos de uma ferramenta, ainda em fase de discussão ou já de implementação em alguns países europeus — o passaporte do doente oncológico. Os Barnabés defendem a necessidade de os sobreviventes de cancro infantil disporem de um resumo do seu registo de tratamentos, assim como informação personalizada sobre os possíveis efeitos tardios. Para além de possibilitar um acompanhamento adequado na transição para os cuidados prestados a adultos, o passaporte tem um enorme potencial na área da investigação sobre os efeitos tardios e constitui também um grande benefício ao nível da mobilidade dos sobreviventes pois têm consigo registo do seu historial clínico.
Em Portugal existem várias barreiras à implementação do passaporte. Destacamos o facto de não existir, ainda, uma base de dados nacional atualizada de pediatria oncológica e apenas um centro hospitalar disponibilizar, oficialmente, uma consulta de acompanhamento para sobreviventes de cancro infantil.
Naturalmente que o grupo de Barnabés defende a expansão deste tipo de consulta de acompanhamento para as restantes instituições de saúde. Para além do devido acompanhamento médico, seria possível, a partir dessas consultas, elaborar-se um documento padrão com várias recomendações sobre os efeitos tardios, com vista à criação de um futuro passaporte do doente oncológico.
Estes são alguns dos desafios dos Barnabés que afetam, principalmente, os sobreviventes mais velhos, demonstrando assim que a cura não é a etapa final.
Nós, sobreviventes, estamos envolvidos ativamente no trabalho da Acreditar e, através dos nossos projetos, procuramos uma melhor qualidade de vida para todas estas crianças, adolescentes, jovens adultos, homens e mulheres que, um dia, sem que nada os avisasse, tiveram que ir para o campo de batalha enfrentar este bicho papão, que ainda nos dias de hoje assusta muita gente. O futuro passa por continuar este trabalho de defesa dos direitos. Os sobreviventes cresceram.
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