Imagine que um homem com 43 anos viola uma menina de 13 anos. Ele dá-lhe álcool e drogas para depois violá-la mais do que uma vez. Imagine ainda que, apesar de admitir o crime e ser condenado, este homem foge e continua com a sua vida como se nada fosse, acabando por se tornar uma pessoa premiada e reconhecida internacionalmente pelo seu sucesso profissional.

Esta é a história de Roman Polanski que, em 1977 violou, com recurso a substâncias e álcool, Samantha Gailey que tinha então 13 anos. Na altura, Polanski foi detido e julgado por violação e sodomia de menores. Sete anos depois, em 1984, publicou a autobiografia Roman, by Polanski, na qual refere que com 50 anos teve “relações sexuais” com jovens entre os 16 e 19 anos de idade e que «toda a gente quer f***r raparigas jovens».

Polanski nunca escondeu o seu interesse por raparigas muito novas, admitiu o crime de violação de Samantha Gailey, e desde então outras mulheres denunciaram terem sido vítimas de Polanski, algumas delas quando tinham 10 anos de idade. No entanto, nada disto parece importar. Polanski nunca acomodou os pedidos de extradição para regressar aos EUA e cumprir pena. Vive confortavelmente na Europa onde realiza os seus filmes e tem uma vida intocada pelos crimes que cometeu.

O violador com dezenas de prémios e distinções

Em 2003, Polanski venceu o Óscar de melhor filme com “O Pianista”. O prémio foi apresentado por Harrison Ford e da plateia recebeu uma ovação de pé. A aplaudir estavam nomes consagrados do cinema norte-americano como Adrien Brody (que protagonizou o filme em questão), Martin Scorsese ou Harvey Weinstein (produtor que foi denunciado por assédio e violência sexual por mais de 80 mulheres).

Polanski regista 97 nomeações e 98 distinções nos mais diversificados festivais de cinema como os referidos Oscars, Cannes, Globos de Ouro americanos ou os prémios Goya. Portugal não é exceção, e Polanski foi nomeado para melhor filme em 1995 no icónico Fantasporto e, em 2021, venceu o melhor filme europeu nos Prémios Sophia. Mesmo  ignorando o período antes de ter violado Samantha Gailey, a maioria destas distinções ocorreu nas duas últimas décadas quando o caso e a condenação eram amplamente conhecidos do grande público.

Uma coisa é certa: os crimes de violação que Polanski admitiu a culpa e pelos quais foi condenado não mancham o seu currículo. Continua em liberdade a realizar os filmes que deseja. Este caso demonstra como a violência sexual de crianças não é um impedimento para que um violador tenha uma vida de sucesso e de reconhecimento internacional.

Houve, contudo, momentos de questionamento e de reprovação. Em março de 2020, nos prémios franceses César, várias atrizes como a Adèle Haenel abandonaram o evento após Polanski ter vencido o prémio para melhor realizador. No entanto, mesmo quando há demonstrações públicas contra o prestígio de Polanski, estas continuam a não ter um efeito significativo. Por exemplo, Polanski foi expulso da Academia dos Oscars em 2018, mas o prémio de 2003 não lhe foi retirado. Insatisfeito, em 2019 o realizador contra-atacou abrindo um processo contra a decisão. Apesar de ter admitido ter violado uma menina, para ele isso não é motivo para ser banido.

Foram precisos 41 anos até a Academia tomar uma posição e tomar esta decisão. Foram precisas quatro décadas para que a Academia reconhecesse que, durante todo este tempo, a violação de uma menina de 13 anos foi tratada como um assunto menor e completamente alheio à arte de Polanski.

Qual é a nossa responsabilidade?

Numa altura em que é exigido à Igreja o afastamento preventivo dos padres que alegadamente abusaram de menores, pergunto: e os artistas que beneficiam de um estatuto de aparente imunidade? 

Polanski foi condenado e admite ter violado uma menina de 13 anos. No entanto, continua a realizar, é premiado por tal, e os seus filmes são inseridos nos circuitos comerciais. Que papel temos nós, enquanto espectadores? Quando pagamos para ver um dos seus filmes não estamos a financiar e a apoiar um violador de crianças? Qual é a extensão e a consequência das nossas ações? É possível apreciar um filme, independentemente da sua qualidade, quando sabemos que o realizador violou crianças? 

A discussão da separação do homem da obra é antiga, mas é, cada vez mais, inevitável e Roman Polanski não é um caso único nem isolado. Por exemplo, R. Kelly foi condenado a 30 anos de prisão por tráfico e abuso sexual de menores, produção de materiais com menores, entre outros crimes. No entanto, o Spotify contabiliza cerca de 4 milhões e meio de ouvintes mensais. As suas músicas também estão disponíveis noutros serviços de streaming como no Apple Music, YouTube Music, Tidal e Deezer. Apesar dos crimes de abuso sexual de menores, R. Kelly continua a gerar dinheiro e estas plataformas lucram com abusadores e violadores condenados. Quem ouve os seus álbuns ou compra a sua música contribui para a manutenção do estatuto de um homem que abusou sexualmente de crianças e raparigas, e contribui também para a impunidade destes homens. A mensagem é que podem violar crianças, mas isso não importa quando a sua arte chega a milhões de fãs. 

Outro exemplo é o de Bill Cosby que foi acusado por 60 mulheres de vários crimes de violência sexual. Cosby também tem o seu catálogo presente em várias das plataformas de streaming e planeia uma tour em 2023. Louis CK, que em 2017 foi acusado e reconheceu ter abusado da sua posição de poder e admitiu ter-se masturbado à frente de várias colegas, também manteve a presença em vários serviços de streaming e em 2018 regressou aos palcos de stand-up.

O que podemos fazer?

Devemos ou não deixar de admirar homens que violam menores e pessoas adultas? Devemos deixar de consumir a sua arte e parar de financiá-los? A decisão é naturalmente individual e a minha posição é de questionamento e de reflexão. É importante que reflitamos sobre esta dimensão da violência sexual e também no impacto que estas histórias têm na vidas das vítimas, nomeadamente quando subsistem numa cultura de contínua descrença relativamente às denuncias. A mensagem passada é que o abuso sexual de menores não têm importância e as vítimas muito menos. 

Face a estas questões, pergunto: o que podemos fazer? Se há indignação pública quando a Igreja não afasta os padres. Se há descontentamento quando os abusadores condenados têm pena suspensa, por que razão continuamos a dar lucro aos artistas que abusam de crianças?