Enquanto durante grande parte da História – e da pré-História – os homens se preocupavam sobretudo em ter o que comer, nesta época final da Civilização Ocidental o problema já não é obter alimentos suficientes, mas sim os alimentos certos – isto é, aqueles que proporcionam bem estar e prolongam a vida saudável. Paralelamente, há a preocupação de praticar uma agricultura que não esgote os solos, permitindo a manutenção permanente de boas colheitas.
Tudo isto é relativamente novo; foi em 1911 que o agrónomo norte-americano F. H. King estudou as culturas milenares orientais, isentas de produtos químicos – tanto fertilizantes como pesticidas artificiais – e as comparou com a agricultura ocidental. Nos países industrializados, as necessidades alimentares duma população crescente tinham obrigado a recorrer a uns e outros para obter alimento abundante e barato: matava-lhes a fome mas fazia-lhes mal.
É preciso notar que a alimentação de grande parte do século XX, que hoje em dia os defensores dos produtos orgânicos criticam como sendo “impura”, era bastante natural para os padrões actuais. As galinhas, por exemplo, eram cultivadas ao ar livre, os porcos alimentados com os restos domésticos e o gado em geral comia o que se encontra na natureza. Foi a intensa industrialização alimentar – agora chamada “agro-indústria” como sinónimo de ganância empresarial, assassinato em massa, alimentos transgénicos e outros crimes horrendos – foi essa industrialização que criou o movimento contrário, dos pequenos agricultores, dos galinheiros e das vacas soltas no prado.
Não adianta os cientistas cépticos, certamente comprados pelas multinacionais gananciosas, afirmarem que todos os cereais e a maioria dos vegetais que comemos foram geneticamente modificados ao longo dos séculos
A alimentação dita orgânica começou a surgir em Portugal na década de 1990 e acabou por se tornar ela própria uma indústria, já neste século. Como aliás aconteceu um pouco por toda a Europa, que vai buscar muitos alimentos a África e à Ásia, mas mantém um controlo contínuo junto dos produtores, para garantir que eles não se deixam tentar pelos demónios do aceleramento e protecção químicos ou, pior ainda, vá de retro Satanás, dos horríveis transgénicos.
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Não adianta os cientistas cépticos, certamente comprados pelas multinacionais gananciosas, afirmarem que todos os cereais e a maioria dos vegetais que comemos foram geneticamente modificados ao longo dos séculos, para se tornarem mais nutritivos, resistentes às pragas e abundantes; a desconfiança está lançada. E também não é segredo que os animais são criados em barracões ao modelo de Dachau, alimentados por sucedâneos do petróleo cheios de antibióticos, ansiolíticos e esteróides. Temos alimentos baratos e abundantes e vamos viver mais dez ou vinte anos que os nossos avós, mas entupidos de toxinas industriais e higienizados por detergentes químicos. Ou seja, morreremos mais tarde, mas muito menos saudáveis que os nossos antepassados, que se lavavam com mijo uma vez por ano e comiam carne podre durante o inverno – daí o sucesso da pimenta da Idade Média, que encobria a putrefacção da carne.
Então, a alimentação orgânica é o que está a dar. Batatas que lembram alienígenas de filme de terror, tomates parecidos com o corcunda de Notre Dame, alfaces com o dobro do peso em terra, e frangos que parecem, esses sim, fugidos de Dachau – tudo ao triplo do preço pois, é claro, cultivar e criar sem ajudas artificiais rende menos e portanto custa muito mais.
compramos duas postas de pescada “capturada com anzóis e aparelhos de anzol”, que nos garantem ser “pesca artesanal e sustentável da região de Sesimbra” e embalada em plástico a vácuo, com rótulo autocolante impresso a quatro cores
Este sobre-preço dos alimentos naturais leva, evidentemente, a uma saudável selecção económica: só as famílias mais abonadas se podem dar ao luxo de comprar nos novos empórios onde os produtos tinham, até há pouco tempo, o desejável mau aspecto das coisas extraídas das entranhas da terra. E dizemos que tinham, e não que têm, porque entretanto a procura intensa por tanta natureza levou – adivinhe! – à necessidade de industrializá-la.
Graças a mais este avanço da civilização, que consiste na origem natural dos produtos combinada com a embalagem pós-industrial das doses, podemos comprar cereais de pequeno-almoço colhidos à mão por camponeses de rusticidade garantida e embalados em alumínio plastificado impresso por serigrafia a laser.
Por exemplo, no mais novo supermercado biológico de Lisboa, muito mais chique que o La Redoute de Paris ou as secções gourmet dos melhores supermercados nacionais, compramos duas postas de pescada “capturada com anzóis e aparelhos de anzol”, que nos garantem ser “pesca artesanal e sustentável da região de Sesimbra” e embalada em plástico a vácuo, com rótulo autocolante impresso a quatro cores. (A cola do autocolante é um químico altamente poluente, mas não vamos ingeri-la, não é verdade?) Aliás, o supermercado tem garagem própria na cave e um arrumador que nos leva e traz o carro, não vá uma caminhada com os produtos pela rua poluída estragar os efeitos benéficos de tanta natureza.
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Sim, nós merecemos comer do melhor – isto é, do industrialmente mais natural que é possível fazer passar pela longa cadeia de distribuição que leva um produto colhido à mão em Trás-os-Montes a chegar à Av. Duque d’Ávila, no coração da capital, possivelmente trazido em carroça de madeira natural puxada por burros alimentados a fava. Mas, se nós merecemos, o que dizer dos nossos queridos animais de estimação?
É preciso ver a estante dos produtos orgânicos para animais! É preciso ver porque, sinceramente, é um progresso impensável que, apenas 100 anos depois de se dar os restos das refeições aos bichos da casa, agora se gaste uma pipa de euros para lhes dar iguarias que os sem-abrigo nem saberiam identificar. Tudo embalado no tal alumínio multi-colorido selado contra bactérias.
A resposta está dada: não, a alimentação orgânica não é uma preciosidade da decadência, mas sim o retorno à glória do ditado sempre presente: “mente sã em corpo são”. Porque a sanidade mental é um bem cada vez mais escasso!
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