A origem de «luva»

Comecemos pelas luvas. É uma palavra que partilhamos com os galegos e que tem uma curiosa origem pouco latina. Vem do gótico, a língua dos Visigodos. Nessa língua, «lofa» significava «palma da mão» — daí à nossa «luva» foi um saltinho.

Das actuais línguas germânicas (inglês, alemão, sueco, etc.), nenhuma descende da antiga língua dos Visigodos. Ao contrário do latim, que não morreu, mas transformou-se, o gótico é uma língua realmente morta. Morreu como? De várias maneiras. Uma delas foi a vontade que os Visigodos revelaram de aprender o latim que veio dar origem às nossas línguas. Curiosamente, depois de desaparecer por cá, o gótico sobreviveu muitos séculos no outro lado da Europa: na Crimeia.

Enfim, o gótico morreu, mas deixou vestígios: há textos escritos, que podemos traduzir, há palavras que ficaram nas línguas ibéricas, como a nossa «luva» — e, curiosamente, há quem goste tanto desta língua que até criou uma Wikipédia em gótico! Aqui está a página sobre os Visigodos na sua própria língua. Difícil seria explicar a um visigodo o que é a Wikipédia…

Ora, quando falamos da origem das palavras, convém sempre dizer: chegamos até determinado ponto no passado, mas quase sempre a palavra não começou aí. A palavra «luva» tem uma origem ainda mais remota em «*lōfô» (o asterisco indica que é uma palavra reconstruída, neste caso do proto-germânico), que significava «palma da mão», tal como em gótico. Ainda hoje encontramos palavras que dela descendem em línguas como o islandês, onde «lófi» significa, enfim, «palma da mão» — ou o inglês, em «glove», que significa (quem diria) «luva».

O português é composto de muitos ingredientes, misturados na massa latina. Quando usamos a palavra «luva», estamos a revelar vestígios de guerras e migrações que aconteceram há mais de 1000 anos — e encontramos velhas ligações perdidas com o islandês...

A origem de «máscara»

Ora, quanto às famosas máscaras… A palavra chegou ao português vinda de uma língua bem mais famosa que o desaparecido gótico: veio do italiano — mais concretamente, da palavra «maschera» (já agora, aquele «che» italiano lê-se como o nosso «quê»). A palavra italiana, a cavalo do francês, espalhou-se pela Europa e hoje aparece em muitas línguas, incluindo o inglês («mask»), o polaco («maska») — e muitas, muitas outras. 

Poderíamos continuar a tentar escavar a origem dessa palavra, mas não há grandes certezas: terá vindo do latim medieval ou mesmo do árabe. Como a viagem parece estar a chegar a um beco sem saída, dou um salto: como se dizia «máscara» em latim? 

Dizia-se «persona». Sim, a avó da nossa «pessoa» era a palavra latina que significava «máscara». As máscaras que os actores usavam no teatro davam identidade às personagens (repare bem na palavra) e daí até ao significado de «ser humano com identidade social» ou «ser com direitos e deveres» foi um saltinho. Enfim, um saltinho que ocupou filósofos e pensadores durante séculos.

Às vezes, as palavras mantêm o significado por milénios. Outras vezes, dão pequenos (ou grandes saltos) — a nossa «luva» não só passou da palma da mão para a peça de vestuário, como agora também quer dizer «suborno»; a «persona» latina saltou da máscara para a própria pessoa que a usa. Dão saltos e ainda viajam de língua em língua sem pedir autorização. E sempre nos ajudam a passear um pouco sem sair de casa.


Marco Neves | Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu último livro é o Almanaque da Língua Portuguesa