No dia em que testei positivo (poucos dias depois de ter chegado aos Açores com um teste negativo na mão), dois homens plastificados da cabeça aos pés trouxeram-nos numa ambulância para o Cantinho das Buganvílias, onde iniciámos uma quarentena obrigatória que chega hoje a metade do seu prazo mínimo de 14 dias.

Vínhamos no ferry das 7 horas da manhã, que liga o Faial a São Jorge. Estávamos semiadormecidos, a meio do percurso atlântico, quando alguém nas Flores me ligou a anunciar o fim das férias e o início dos protocolos de segurança com que desembarcámos, sob o olhar da polícia marítima e das delegadas de saúde locais, no pequeno porto de Velas.

O local que tínhamos reservado já não nos podia receber. Fomos informados de que o Governo Regional nos mandaria para um outro sítio. Que daí a 14 dias logo se via, mas que antes disso não íamos a lado nenhum. O que só acontece aos outros aconteceu-nos a nós.

Tivemos medo. A incerteza deixou-nos ansiosos. Imaginámos um quarto de hotel com uma janela, três batidelas por dia numa porta fechada e tabuleiros com comida deixados no chão, para que os levantássemos e cumpríssemos a formalidade de nos alimentarmos. Pensámos nos sintomas que nos aguardariam, antecipámos essas dores e essas febres e essas tosses, tememos as complicações e os problemas respiratórios.

Enquanto aguardávamos uma decisão superior, pedi para usar a casa de banho do terminal marítimo e apercebi-me no olhar de todos que não sabiam muito bem se eu podia usar a casa de banho. As facilidades com que vivemos de máscara, mas livres, tinham terminado. Cada momento era agora enquadrado por um protocolo, por uma hesitação permanente, por um receio palpável.

As pessoas olhavam-nos ao longe. Quase tudo passou a ser ao longe. Quem se aproximava, protegido dos pés à cabeça, tratava-nos com compreensão, com amizade. Esse tratamento reassegurava-nos de que não tínhamos feito nada de mal, que ainda estávamos ali enquanto pessoas inteiras, de direitos plenos, e não como os forasteiros infetados que nos sentíamos.

Meteram-nos numa ambulância e depositaram-nos à porta de um apartamento, onde conhecemos o Senhor Bráulio. Com um sorriso que foi como um abraço, deu-nos as boas-vindas e mostrou-nos o espaço que a sorte nos encomendou, confortável, espaçoso, com cheiro a casa. Prometeu-nos assistência, comida e conforto e a sua voz confirmou-me que não teríamos nunca menos que isso. O peso no meu peito aligeirou e eu pedi-lhe desculpa por lhe termos vindo cair no colo, nós, o nosso vírus e os seus protocolos, que restringem circulações, acessos, contactos, que colocam entraves, que impedem arrependimentos: estávamos ali para ficar. Sorriu-me e disse-me simplesmente que temos de ser uns para os outros.

Só no dia seguinte vi verdadeiramente a vista da minha janela. Do lado direito, a bela enseada de Velas, com as casas brancas no sopé de uma arriba verde. Em frente, aparece-nos desenhado o Faial. À esquerda, quando as nuvens permitem, vemos o Pico. Da minha quarentena vejo três ilhas e o oceano atlântico. O Cantinho das Buganvílias tem mais vista para o mundo que a janela do meu quarto em Londres. Nessa manhã, tive a certeza de que ia correr tudo bem.

Uns dias depois, recebemos a visita do Principal Oliveira, da polícia de Velas. Com um sorriso, garantiu-nos que o distanciamento era apenas físico, não social, e que veio só ver se estávamos bem e conversar um bocadinho.

O Senhor Bráulio liga-nos todos os dias pela manhã para saber como estamos, ainda antes da delegada de saúde nos telefonar para saber da temperatura diária.

Vem, impreterivelmente, ao almoço e ao jantar, brindar-nos com o conforto da sua comida quente e com dois dedos de conversa que nos fazem esquecer por momentos que não podemos sair de onde estamos, que podemos ser um perigo para os outros e que no fim destes 14 dias a quarentena pode ter de continuar.

Agradeço-lhe todos os dias aquilo a que ele chama “o trabalho dele”, porque sei bem que existe uma diferença entre o que ele faz e o seu trabalho. O que lhe agradeço não é a cortesia de cumprir bem com a obrigação que lhe coube, mas a amabilidade de se demorar em conversas, de perguntar o que gostamos, de partilhar algumas histórias, de nos fazer sentir que somos seus convidados, e de se preocupar connosco.

Essa dignidade que nos reconhece, essa empatia com que nos trata, transforma as nossas ansiedades e medos em coisas suportáveis, faz-nos sentir, afinal de contas, uns sortudos e acreditar que dure o tempo que durar, somos capazes de levar este isolamento até ao fim.

Parece uma receita simples, mas exige uma disponibilidade grande para os outros: uma disponibilidade que falta tantas vezes, porque é mais fácil estarmos disponíveis só para nós.

Há mais de 25 mil casos ativos em Portugal. Não sei quantas destas pessoas dependem de terceiros como nós dependemos do Senhor Bráulio, e acredito que não caberá à maioria a sorte que nos coube a nós.

Temos ouvido falar deste vírus há meses de forma ininterrupta. Enchem-nos de histórias dos hospitais a abarrotar, mostram-nos os números crescentes de mortos, falam-nos dos casos excecionais dos jovens saudáveis que não resistiram, alvitram efeitos indesejáveis de longo prazo. É uma nuvem negra que paira sobre todos nós, fazendo sombra a cada interação com o outro.

Mesmo jovem, saudável e sem sintomas, estar positivo deixa uma pegada psicológica, que imagino ainda maior nos outros casos. Quer porque a ausência de sintomas se torna numa espera pelos sintomas, quer porque podemos permanecer positivos por muito tempo, quer porque passamos a ser tratados como fonte de perigo e internalizamos essa realidade, quer porque imaginamos que podemos ter infetado alguém, a senhora que nos atendeu no restaurante, o senhor que nos limpou o quarto, a amiga que nos deu uma boleia. Tudo isso marca, mói, sufoca.

Dizem que esta experiência nos vai calhar a todos. Desde que testei positivo que descobri ter calhado a várias pessoas, que não partilharam as suas experiências, mas que as viveram com angústias semelhantes. Essa eventualidade, a de este ser o novo normal, transformará esta crónica numa banalidade, mais uma, com que entretemos os dias.

Enquanto assim não é, contudo, a mensagem que quero passar fica.

Está ao alcance de todos um estender de mão (metafórico, naturalmente) como as boas gentes de São Jorge, com o Senhor Bráulio à cabeça, nos têm estendido nos últimos dias, e que agradecerei sempre. Não é fácil, nem é sem riscos, mas é essencial.

A empatia é o verdadeiro medicamento a dar a quem caminha, todos os dias, pela linha fina que separa a esperança do medo, a boa disposição da ansiedade.