O que aconteceu neste domingo nos céus da Bielorrússia é pirataria aérea promovida por um Estado. O que deveria ser um tranquilo voo de duas horas e meia, de Atenas para Vilnius, está a mostrar-nos como mesmo dentro do continente europeu já não se está livre de um assalto no ar, promovido por um reles autocrata, ex-dirigente do Partido Comunista da extinta URSS e há 26 anos no posto de presidente de um país com localização estratégica como é a Bielorrússia.
Tudo neste episódio de abusos pelo ditador de Minsk aconteceu na manhã deste domingo.
O voo FR4978, num Boeing 737-800 da Ryanair, descolou do aeroporto internacional de Atenas às 7:29, em direção a Vilnius. A bordo, para além da tripulação, afeta à base da Ryanair na Polónia, seguiam 120 passageiros, entre eles Roman Protasevich, bielorrusso com 26 anos, fundador e ex-editor do NEXTA (pronuncia-se niek-ta, significa “alguém” em bielorrusso, um dos mais populares canais de informação no país). Este NEXTA tornou-se, após as muito contestadas eleições presidenciais de agosto de 2020, não apenas uma das principais fontes de informação sobre a revolta contra o sexto mandato consecutivo reivindicado por Lukashenko, mas também, de facto, a voz da coordenação dos protestos. Protasevich tinha passado ao exílio, na Lituânia, há já dois anos, e tinha viajado a Atenas, para acompanhar uma conferência económica em que a líder da oposição bielorrussa, Svetlana Tikhanovskaya foi figura principal.
Às 9:46, o Boeing da Ryanair estava a 10 minutos de deixar o espaço aéreo da Bielorrússia e entrar no do país de destino, quando um MIG-29 da Força Aérea da Bielorrússia se colocou ao lado do avião comercial, à mais curta distância possível, com os pilotos em contacto visual. O caça militar anunciou ao comandante da Ryanair que havia um alerta “para a bomba a bordo” e que por isso o avião deveria desviar a rota para Minsk. Há aqui uma primeira violação. As normas internacionais, com base na convenção de Chicago, aprovada em 1944, que funciona como pilar regulador da aviação comercial mundial, definem que em caso de emergência o avião deve dirigir-se ao aeroporto mais próximo. De facto, este era o do destino, Vilnius, a 20 minutos, mas o caça bielorrusso, entretanto apoiado por um helicóptero militar Mi-24, impôs o desvio para Minsk, a 31 minutos de voo.
Às 10:16, o Boeing aterrou em Minsk. Dois “gorilas” do KGB bielorrusso imediatamente entraram na cabina do avião, sabiam em que lugar estava Roman Protasevich (com a namorada ao lado), e cercaram-no.
Fizeram sair todos os outros passageiros, que foram mandados colocar-se na placa ao lado do avião, para reconhecimento de toda a bagagem entretanto colocada no chão.
Claro que não havia qualquer bomba nas bagagens, a bomba para o regime de Lukashenko é Roman, que nestes últimos seis meses passou a trabalhar para um outro site, também porta-voz da oposição, o Golovnogo Mozga.
Toda a operação desencadeada pelo MIG militar bielorrusso foi um ato de pirataria de Estado com o fim único de, em ação absolutamente ilegal, capturar Roman Protasevich. Este jornalista foi classificado de “terrorista” pelo KGB de Minsk e, obviamente, ficou detido, não se sabe em que condições.
Após sete horas de espera entre o nervoso e o revoltado, todos os outros passageiros e tripulação, menos Roman e a namorada, foram conduzidos de volta ao Boeing da Ryanair que às 17:47 descolou de Minsk e às 18:26 aterrou em Vilnius onde todos eram esperados por vasta comitiva, incluindo a indignada primeira-ministra da Lituânia.
O escândalo internacional praticado à descarada, em modo provocador, pela repressora ditadura bielorrussa estava desencadeado.
Obrigar pela força militar um avião comercial a desviar a rota vai diretamente contra as disposições de liberdade no ar determinadas pela Convenção de Chicago. Neste caso, é violada logo a primeira liberdade, que trata “o direito, com respeito aos serviços aéreos internacionais programados, outorgado por um estado a outro estado ou estados, para que aviões possam voar livremente sobre o seu território, sem aterrar”.
Já tem acontecido um avião militar aproximar-se de um avião civil, mas apenas em caso de falha ou desobediência nas comunicações ou perante o alerta para anomalias a bordo. Sempre em circunstâncias excecionais e, resolvidas as dúvidas, a formação civil/militar desfaz-se e cada avião segue para o seu destino.
O que aconteceu neste domingo nos céus da Bielorrússia abre um precedente no setor da aviação comercial: qualquer governo fora da lei poderia passar a usar expedientes como este de pirataria aérea para neutralizar uma qualquer personagem incómoda. Importa por isso que esta violação custe caro aos seus autores.
A Bielorrússia é um caso que requer ação determinada e corajosa das sociedades democráticas. O Conselho de Segurança da ONU, em setembro passado, teve noção da gravidade do caso bielorrusso e realizou um “debate informal sobre a situação de direitos humanos e liberdade de imprensa na Bielorrússia”. A sessão foi precipitada pela expulsão de Minsk de jornalistas de meios de comunicação estrangeiros. Os mais conhecidos e influentes jornalistas da Bielorrússia estão no exílio.
Há uma figura que representa o combate pela democracia e pela liberdade na Bielorrússia, é Svetlana Tikhanovskaya. Quando Serguéi, o marido, foi detido pelo regime do ditador Lukashenko, para evitar que ele pudesse concorrer às eleições presidenciais que, se livres, poderia vencer, Svetlana, 38 anos, deu o passo em frente e, com o marido preso, assumiu ela a condução da oposição ao regime. Necessariamente, a partir do exílio, com base na Lituânia, e com amplo reconhecimento internacional. O Parlamento europeu distinguiu-a com o Prémio Sakharov, de 2020, pelo corajoso combate pela liberdade.
Svetlana formou-se como professora de línguas, é mestre em língua inglesa. Usa essa aptidão para alertar o mundo para a atual emergência na Bielorrússia, onde Lukashenko mantem instituições repressivas de horrível memória do tempo soviético, como o KGB, que em Minsk mantém a velha identidade.
Nos últimos seis meses, a partir das grandes sucessivas manifestações contra Lukashenko, o KGB de Minsk criou uma base de dados com a ficha de cada participante nesses protestos. Um dirigente no ministério de Interior classificou esta medida como “de segurança interna”. Essa base, de facto, serve para a repressão: há relato de milhares de detenções.
A Bielorrússia teve eleições presidenciais em agosto passado. Lukashenko reivindica ter sido reeleito com 80% dos votos, conforme o anúncio da chefe, que ele nomeou, da comissão eleitoral central. Mas quem acompanhou estas eleições testemunhou que grande parte dos eleitores votou com, corajosamente, a pulseira ou o laço branco que é símbolo da oposição. A fraude eleitoral é evidente.
Svetlana, em março, esteve em Lisboa. Reuniu-se com António Costa. O presidente de turno do Conselho de Ministros da União Europeia assentou então no Twitter: “Recebi hoje Svetlana Tikhanovskaia. Assegurei-lhe que Portugal apoia o direito da população da Bielorrússia de manifestar-se de forma pacífica e de decidir o seu futuro em eleições livres e justas”.
É tempo de a União Europeia mostrar determinação e coragem perante uma ditadura como esta da Bielorrússia.
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