O Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte (até 1921, simplesmente Irlanda), sempre se considerou especial, ou com direitos especiais, no quadro da União Europeia (UE). Aderiu ao tratado da ainda Comunidade Europeia em 1973, por decisão do Parlamento, sem referendo, e depois transitou para a União Europeia como membro de pleno direito. Mas, desde sempre, exigiu, ou negociou, um tratamento especial em várias vertentes, como, por exemplo, manter a sua moeda quando foi instituído o euro.
Os ingleses sempre se consideraram especiais, como todos os não ingleses sabem. Insistem em ser diferentes, alegando as suas tradições e subentendendo a sua superioridade pragmática. Durante todos os anos que participaram nas decisões de Bruxelas, agiram sempre de pé atrás em relação ao que pudesse diluir as diferenças com o “Continente”, enquanto a opinião pública, alimentada por uma imprensa reacionária e nacionalista (os famigerados tabloides) olhava desconfiada para as “manias” europeias.
Em 2010, depois de um período de governos trabalhistas, as eleições gerais foram ganhas pelos conservadores, em geral muito mais eurocépticos. O novo primeiro-ministro, David Cameron, apesar de pró-europeu, continuou a negociar denodadamente o estatuto especial das ilhas, em frentes tão diversas como as pescas, a imigração e o sistema de medidas (libras, polegadas, etc.) Finalmente, em 2016, convocou um referendo para decidir se o país continuava na UE, convencido de que ganharia, isto é, continuava. A campanha para o referendo foi das mais desonestas que se têm visto no mundo ocidental. A população foi constantemente bombardeada com promessas nacionalistas líricas - “voltarmos a controlar o nosso país” - e mentiras declaradas - “o dinheiro que damos à Europa vai passar a ser gasto num melhor serviço de saúde”.
Vendo a situação à distância, talvez se possa inferir que a classe superior, os “chams”, não estava satisfeita por ver parte do seu poder diluído nas decisões colectivas europeias, embora soubesse dos riscos inevitáveis com a perda de massa crítica ao nível mundial, pois um pequeno Reino Unido, já sem império, com 67 milhões de habitantes, não tem o peso duma união com 500 milhões e uma produção muito mais diversificada.
Enfim, não vale a pena estar a elaborar agora no que aconteceu; o facto é que os que votaram pela saída ganharam com quase 52%, o Reino Unido fez o seu Brexit e Cameron, vexado com a derrota, demitiu-se. Segundo o sistema britânico, os conservadores continuaram no poder; e não deixa de ser sintomático que os grandes defensores do Brexit, maioritariamente conservadores, não se chegassem à frente para executar a saída, inevitavelmente tumultuosa. O cargo de primeiro-ministro foi parar (por eleição interna no partido) a uma senhora muito bem intencionada, Theresa May, que se mostrou incapaz de levar a cabo o divórcio com a Europa. Os problemas, como todos nós assistimos, não se podiam resolver expeditamente, mas o pior, realmente irresolúvel, era a fronteira terrestre entre a Irlanda do Norte, que ficava no Reino Unido, e a Irlanda do Sul, que permanecia na UE.
Depois de Theresa May, que não fica para a História pela competência, subiu ao pódio o grande “joker” (no sentido de palhaço maléfico), Boris Johnson, um oportunista que, veio-se a perceber, tinha articulado todas as manobras, inclusive sabotar May, para ser Primeiro Ministro. O seu slogan “vamos fazer o Brexit!” levou-o a mais uma série de manobras, inclusive mentir aos europeus e aos seus concidadãos, faltar à palavra e outras manobras por demais conhecidas.
A situação chegou a um ponto tal de descrédito que o partido conservador viu-se obrigado a substitui-lo - por outra senhora bem intencionada, mas ainda mais mal preparada para a responsabilidade, Liz Truss, em Outubro de 2022. Durou 49 dias, o tempo necessário para o seu chanceler (Ministro das Finanças) apresentar um orçamento surreal, que desagradou a toda a gente e provocou uma crise nos mercados. Ora, os mercados é que mandam, como toda a gente sabe. Truss apresentou-se ao público como a nova Margaret Tatcher, a mais poderosa e determinada primeira-ministra que o país já teve (1979-1990), mas acabou com o recorde do tempo mais curto no posto - recorde detido por um primeiro-ministro do início do século XIX, que durou pouco porque morreu.
Ainda e sempre no poder, os conservadores entraram em pânico. Embora os trabalhistas tenham um anódino candidato, Keir Starmer, têm subido vertiginosamente nas sondagens, mesmo evitando falar de questões difíceis, como um novo referendo, que parece estar fora de questão. (Pelos vistos os ingleses ainda vão ter de passar muita fome até admitirem que foram enganados; no entanto algumas sondagens já dão uma pequena maioria aos que querem voltar.)
A 25 de Outubro, nova votação interna no partido trouxe para o nº10 de Downing Street uma figura inédita em vários sentidos. Para já, é de etnia indiana e segue a religião hindu, uma coisa nunca vista naquelas bandas. Depois, com 42 anos, é o primeiro-ministro mais novo deste o princípio do século XIX. Estudou em Oxford, como todos os “chams”, claro, mas também tem um curso tirado nos Estados Unidos, em Stanford, o que lhe dá um selo de competência económico-financeira, reforçado por uma estadia na Goldman-Sachs (os mercados...) Por acaso é riquíssimo e, também por acaso, casado com a filha de um multimilionário indiano, o que faz dela uma das mulheres mais ricas da Grã-Bretanha.
Muito bem, temos um candidato que não faz palhaçadas, está habituado a trabalhar com grandes números e a tomar decisões.
A pergunta óbvia é: tem-nas tomado?
Parece que sim, até certo ponto - até ao ponto em que o estado lamentável da economia britânica permite. O custo de vida subiu estratosfericamente, as pessoas não têm dinheiro para se aquecer no inverno, os serviços de saúde e sociais estão a desfazer-se, há falta de alimentos básicos, porque os imigrantes que os plantavam já não são bem-vindos e a burocracia com a a União Europeia deixa os frescos apodrecer.... A lista de misérias é mais longa, mas estas já dão uma ideia.
Primeiro problema, o famigerado protocolo entre as Irlandas. Como se sabe, e facilmente se percebe, não tem solução. Ou há fronteira, ou não há fronteira. Mas Sunak consegiu,a 24 de Outubro passado, assinar uma nova não-solução com Ursula von der Leyen, que se deslocou expressamente a Londres e até teve o previlégio de uma troca de futilidades com Carlos III. O documento chama-se “Windsor framework”. Note-se que “framework” não quer dizer tratado, numa tradução livre seria “quadro de compromissos”. É complicado demais para resumir.
Haverá vias rápidas para negociantes acreditados passarem produtos perecíveis. Uma alínea chamada “Stormond brake” cria uma provisão em caso de disputas. Note-se que “Stormond” é o parlamento da Irlanda do Norte, profundamente avesso a qualquer fronteira, e “brake” é travão. Certos produtos, como medicamentos, podem passar à vontade. Contudo, as verificações e as burocracias continuam pesadas e agravam o custo de tudo - os papeis custam dinheiro, os homens que mexem nos papeis são pagos, e tempo também é dinheiro.
Não é um grande progresso, mas é melhor do que as falsas promessas de Boris Jonhson e as vacuidades de May. (Truss não teve tempo de pensar no assunto. Um ponto para o sahib Sunak.
Segundo problema, o orçamento de um país sem dinheiro. (Este é um tema que nós conhecemos muito bem...) Foi apresentado pelo chanceler, como é de praxe, agora, no dia 15. Que dizer dele? A esquerda diz mal, claro. A direita também não diz muito bem.
Resumindo tudo, é um orçamento de direita com preocupações sociais, perdoem a fantasia. Os ricos não vão ter mais encargos. Os pobres vão receber subsídios. Há uma garantia do preço da energia, mas é só por três meses (depois lá virá o Verão). O apoio a crianças entre os nove meses e os dois anos aumenta razoavelmente. Os escalões mais baixos do IRS beneficiam, os impostos sobre combustíveis são congelados no valor atual durante três anos.
No artigo que citei do “The Guardian”, que é de livre acesso, vários especialistas comentam em pormenor certos aspectos. Vale a pena ler, para quem tenciona ir viver nas ilhas.
O ponto a salientar é que se trata de um orçamento bem feito, dentro das realidades, por pessoas que pesaram os prós e contras. Desde 2010 que não se via uma coisa assim. O maior problema talvez seja que os efeitos deste documento só mostrarão resultados depois das próximas eleições. Os trabalhistas, se finalmente acordarem, têm aqui uma oportunidade.
O Sr. Sunak, que não é nenhuma instituição de caridade, talvez fique para a História como o mais coerente dos últimos tempos (consigo e com o país).
Gostaríamos de saber o que pensa o rei Carlos III, mas, como se sabe, o rei não pode dizer o que pensa. Talvez seja uma vantagem.
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