Há traços em Jack Donaghy – republicano, narcisista, mulherengo, com trejeitos caricaturais de milionário, homem poderoso numa torre (literal) – que podiam fazer crer que o personagem da série “30 Rock” cumpria, em Baldwin, um prelúdio à imitação de Trump que aí vinha. A verdade é que, apesar dessas características comuns a Jack e Donald, no contexto político apercebemo-nos do quão distantes estão: Donaghy acaba por representar o establishment e os preceitos ordeiros daquela considerável fatia do Partido Republicano que não se revê em Trump. Pelas primeiras expectativas de parecença, acabam por se agudizar todas as diferenças, restando pouco do presidente eleito no personagem cómico e vice-versa.
O ponto é que nada fazia prever a imitação perfeita que Alec Baldwin fez de Donald Trump no famoso programa de sketches paródicos “Saturday Night Live”. Imitação e perfeição – ambos imprevistos; não que as capacidades artísticas e cómicas de Baldwin andassem mal cotadas. A surpresa vem pela escolha particular deste actor, sobretudo tendo em conta que no elenco habitual do “SNL” há imitadores mais experimentados, e até de maior proximidade física com Trump. Depois surpreende a imitação, porque não é fácil dar um tom exagerado e caricatural a uma personagem que na vida real já é exagerada e caricatura. Pode ser fácil reproduzir, mas não é fácil acrescentar, e aí Alec fez o impensável, que foi o não dosear a imitação, antes transbordá-la nas quantidades necessárias, chegando àquele raro patamar num imitador que é poder inventar tiques que o imitado nunca teve, mas que todos juramos sempre lá terem estado.
Esta capacidade de transformar trejeitos apócrifos em canónicos tornou-se bem conhecida por cá. É frequente vermos um bom imitador ser mais mimetizado do que o seu alvo original. Exemplo paradigmático disso é José Hermano Saraiva, que viu uma multidão de gente a afiançar que o imitava, enquanto nada mais fazia do que reproduzir a inesquecível imitação original criada pelo Herman José. Desconfio mesmo que já assisti a pessoas a fazer de José Hermano Saraiva sem nunca terem visto ou ouvido José Hermano Saraiva, só a sua caricatura, coberta de expressões e gestos que o historiador possivelmente nunca disse ou fez. E, fazendo lembrar o tempo das cassetes musicais que se iam gravando duns amigos para os outros, perdendo qualidade e ganhando ruídos pelo caminho, também nas imitações muitas vezes o que se ouve e aprende já é uma cópia duma cópia duma cópia: só isso explica, por exemplo, os costumeiros (e terríveis) avanços para sotaques portuenses, que não passam do José ‘Estebes’ com a fita magnética carcomida; ou, noutro exemplo, que o comum imaginário fonético provinciano soe a um primo afastado e sem talento do Ricardo Araújo Pereira.
Regressando às rábulas trumpianas do “SNL”, é assinalável a proporção que a última ganhou. Já após os resultados eleitorais houve novo sketch com o Trump de Alec, mas desta vez o Trump de Donald acusou o toque. A discussão foi parar ao Twitter, com o futuro presidente a queixar-se da falta de piada do programa e, sobretudo, do facciosismo. Terminava o tweet com um “equal time for us?”, uma súplica por igualdade no tratamento mediático ou, no fundo, um pedido de mais borlas para ele e mais ferroadas cómicas para os seus opositores. A resposta de Baldwin não se fez esperar. “Equal time?” – imagino o tom como se respondesse escandalizado a um insulto. “Igualdade? As eleições acabaram. Acabou-se a igualdade. Agora é você a tentar ser presidente e o povo a responder. É basicamente assim que funciona”. Entre várias respostas de Alec Baldwin acabei de parafrasear a que me parece tocar no ponto mais interessante.
Nos apoios a candidatos eleitorais, a parcialidade da imprensa e do entretenimento é uma questão complexa. Não pode ser complexo, contudo, o escrutínio que se faz aos candidatos eleitos – o escrutínio ao poder é uma obrigação, tanto dos opositores como dos apoiantes. Claro que existem comprometimentos ideológicos inultrapassáveis, nem sempre honestos, e que na mesma medida enriquecem e corrompem as exigências dos nossos escrutínios. Mas Baldwin tem razão - ganhar uma corrida presidencial não elimina a crítica, pelo contrário: generaliza-a, institucionaliza-a. Se Trump acha que venceu eleições para que toda a América lhe dê um desconto, enganou-se. Até a frase “Go Trump” nos cartazes dos seus apoiantes vai ter de passar de um incentivo para uma exigência. “Vamos, Trump. Faz coisas bem feitas. Temos-te debaixo de olho”.
Não querendo conceder qualquer razão a Donald Trump, confesso que toca num ponto sensível quando alude facciosismo. O milionário não se pode queixar da falta de escrutínio que vários órgãos de comunicação social fizeram a Obama, seguramente até de formas mais ferozes e desonestas do que aquelas que alguma vez sentirá. Mas é inegável que existe um (perdoem o paradoxo) elitismo mainstream que, com maior ou menor razão, será sempre mais afecto ao Partido Democrata, e que muitas vezes justifica essa afeição usando o pior dos argumentos: “somos uma elite, somos mainstream, so shut up”. Esta predominância gerou anticorpos que podem muito bem explicar a vitória esmagadora do Partido Republicano nas últimas eleições, mas também (e bem mais chocante) a ascensão dos radicais auto-designados de Alt-Right.
Longe vai o desencantamento dos neocons contra o autismo intelectual dos democratas. A Alt-Right representa uma situação mais grave, pois percebemos que abominações como a xenofobia, o anti-semitismo ou a supremacia branca já não se motivam só com base na ignorância – quem agora liga a ignição é sobretudo o despeito pelos virtuosos, despeito pelos snobs que só sabem apontar a ignorância dos outros. Se a cultura mediática (o tal elitismo mainstream) é cada vez mais facciosa, mais autocrata e parcial nos escrutínios, então a contra-cultura vai ser sempre uma saída apetecível. Quando nos tentam adormecer com uma tendência, alguém se vai sentir justificado para acordar tudo à estalada.
Já não são só os robôs nazis, os hillbillies desdentados ou saudosistas sulistas. São homens como Steve Bannon - com um currículo académico invejável e passagens por Hollywood - ou absolutas estrela pop da internet como Milo Yiannopoulos, as caras do movimento Alt-Right. Onde é que esta gente andou a extremar-se? Onde é que estes estilosos andaram a aprimorar a estética? Onde é que estes académicos andaram a blindar a retórica? Fácil: debaixo das barbas dos telejornais, e dos artistas, e dos programas de comédia. Debaixo da sobranceria facciosa das nossas barbas. Meio mundo preocupado com o populismo de Trump e acabámos por ignorar a dormência dos que se julgavam informados. Não foi no cabelo estúpido de Donald que este sono fez ninho, foi no capachinho loiro de Alec, foi nas nossas barbas. Não há populismo mais perigoso do que este, instituído e despercebido.
Por cá temo que a cassete seja cópia de cópia de cópia. Uma má imitação com piores repercussões. Não se compreende o afrouxamento do escrutínio aos governantes; se calhar é porque são dessa massa do elitismo mainstream. Não se compreende que “saída limpa” seja um manancial de piadas escatológicas, mas que números de crescimento revistos em alta não alteie nenhum sobrolho revisor. Não se compreende que o optimismo seja o novo patriotismo salazarento. Não se compreende que a denúncia de truques de imprensa seja a mais flagrante das propagandas. Não há ninguém que vá ao Twitter avisar que “Acabou-se a igualdade. Agora são vocês a governar e o povo a responder. É basicamente assim que funciona”? Por favor, esquerda moderada, dêem-me lá uma mãozinha a manter a direita radical longe daqui. Não quero acordar com estaladas.
Sítios certos, lugares certos e o resto
A última encarnação trumpiana de Alec Baldwin, e que motivou a troca de palavras no Tweeter, pode ver-se aqui.
Um site absolutamente fascinante sobre o envolvimento de Portugal na Primeira Grande Guerra. Vale a gastar algum tempo a explorar todos os menus, sobretudo o das memórias.
Compensando o elevado serviço público da última recomendação, termino com o fascínio do inútil.
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