
Por agora, Trump barra quaisquer operações militares, sejam ataques aéreos ou ações de comandos israelitas sobre o Irão. É alguma surpresa, mas não tanta se tivermos em conta que Trump tem o modo de funcionamento de um negociante. É assim que o melhor amigo de Netanyahu está a negociar com o maior inimigo de Netanyahu, perante a desilusão ou mesmo desespero deste.
Não está excluído esse ataque militar ao Irão nuclear, mas por agora o poder instalado em Washington está a dar oportunidade à janela temporal de sábados de negociação. Há duas semanas, em Muscat, o sultanato de Omã acolheu a surpreendente primeira mediação entre delegações de elevado nível dos EUA e o Irão. A representar Washington, o negociador-mor de Trump, Steve Witkoff: não é diplomata mas, amigo há décadas de Trump e parceiro em negociações imobiliárias, é o enviado especial da Casa Branca para todas a principais negociações, seja Gaza, Ucrânia ou agora o Irão. Por parte de Teerão está o ministro dos estrangeiros, Seyyed Abbas Araghchi, um reconhecido moderado no sistema teocrático fundamentalista iraniano. Há décadas que não há diálogo direto entre o topo político de Washingon e Teerão – admite-se que haja entre gente de serviços secretos. Continua a não haver diálogo político. É o representante do sultão de Omã, o ministro dos estrangeiros Badr bin Hamad Al Busaidi, quem dita os tempos e o modo da discussão. Fala com um lado, fala com o outro, repete a série e faz a síntese. Todas as partes reconheceram “avanços positivos” naquele primeiro sábado de negociações em Muscat. Daí terem decidido continuar, numa segunda ronda.
Foi neste sábado, desta vez em Roma. A capital italiana foi uma exigência dos EUA. É uma escolha com significado político: Trump quer mostrar que, para ele, a Itália de Meloni é (para além da Hungria de Órban) a interlocutora escolhida – em vez da Bruxelas de Ursula van der Leyen e António Costa, e em vez de Paris ou Berlim. Logo pela manhã deste sábado cada uma das delegações foi recebida, em separado, pelo ministro Antonio Tajani, o chefe da diplomacia italiana no governo de Meloni. Mas foi um encontro apenas de cortesia. A negociação EUA-Irão aconteceu a seguir, ainda em modo indireto, na moradia onde reside em Roma o embaixador do sultão de Omã, e a mediação continuou a ser do ministro Badr bin Hamad Al Busaidi. Nemhum dos emissários quis passar para o exterior detalhes sobre o que discutiram em Roma, mas uma fonte do sultanato pronunciou uma expressão que contem esperança: “O que se julgava improvável parece possível”.
Não é segredo que a moldura para esta negociação tem três quadros fixos:
1) os Estados Unidos querem garantia absoluta de que o Irão não terá armas nucleares e, portanto, não enriquecerá urânio a nível suficiente para construir a bomba nuclear;
2) os EUA, em princípio, não se opõem totalmente à utilização civil da energia nuclear por Teerão – mas Israel pressiona fortemente para que o Irão fique afastado de qualquer aproximação nuclear;
3) O Irão está disponível para acordo com os EUA (sem ceder à vontade israelita), desde que as duras sanções económicas ao regime de Teerão sejam removidas, especialmente as relativas ao petróleo. O Irão recisa desesperadamente do fôlego económico, até para conter a contestação interna ao regime.
O ministro mediador saiu de Roma, lacónico como é boa prática de negociador, mas a declarar estarem todos a trabalhar para “um acordo justo, duradouro e vinculativo”.
A negociação continua no próximo sábado, agora outra vez em Muscat. A etapa romana tem o mérito de ter mostrado que o acordo que parecia impossível entre Washington e Teerão, afinal, pode vir a acontecer – talvez como peça da aspiração de Trump de vir a reivindicar ser premiado com o Nobel da Paz.
Em Israel, a gente de Netanyahu não esconde nervosismo. Para eles, depois de demolirem a Hezbollah libanesa, depois de arrasarem em Gaza tudo o que é Palestina seja ou não Hamas, o objetivo supremo é o de eliminar a teocracia iraniana.
Os israelitas já testaram as defesas da República Islâmica do Irão e estão desejosos de voltar à carga. Com o ataque desencadeado em 26 de Outubro passado, Israel eliminou muito das defesas aéreas iranianas. Netanyahu considera a República Islâmica do Irão uma ameaça existencial ao Estado de Israel e quer, até para a propaganda interna, pôr fim a essa pressão, ainda que se duvide da real capacidade destrutiva iraniana.
Trump, segundo o NYT, terá interrompido o ataque ao Irão que Netanyahu planeava para as próximas semanas. Netanyahu pretendera arrastar os EUA para a guerra, Trump travou-o e mandou que avançasse a negociação.
É facto que foi ele mesmo, Trump, quem em 2018 retirou os EUA do acordo nuclear de 2015 assinado pela presidência Obama. Este acordo estava então encravado, não porque fosse “mau”, como Trump continua a repetir, baralhando as cartas pela enésima vez, mas simplesmente porque não foi aplicado por Washington, então na primeira temporada presidencial de Trump: os americanos nunca levantaram as sanções financeiras a Teerão, a economia iraniana ficou cada vez mais asfixiada. Um memorando de financiamento ao Irão, de 30 mil milhões de euros, assinado em Roma pelo então presidente iraniano Rohani não foi cumprido. Os bancos internacionais vieram a congelar empréstimos entretanto negociados com o Irão, por temerem retaliações americanas (congelamento de contas e operações em dólares).
É assim que o poder político-religioso iraniano, apesar precisar muito do acordo, entrou em finca-pé: só poderia chegar a acordo sobre o enriquecimento de urânio se tivesse garantias concretas de alívio real das sanções.
As consequências do fracasso do acordo de 2015 tiveram implicações geopolíticas: o Irão foi empurrado ainda mais para os braços de Moscovo e Pequim. A Rússia é o primeiro beneficiário da indústria de drones do Irão, a China é o primeiro cliente do petróleo de Teerão. As manobras militares conjuntas do Irão com Moscovo e Pequim e a troca de visitas militares e diplomáticas são sucessivas.
É assim que o Irão está no epicentro de conflitos e interesses estratégicos que abrangem o Médio Oriente e a Ásia Central, ao mesmo tempo que ganha peso (como grande produtor de petróleo) na organização BRICS, um bloco económico dominado pela China, Índia, Brasil e África do Sul, também com a Rússia e uma vintena de países associados) que representa mais de 30% do PIB mundial.
China e Rússia, os dois aliados do Irão que são membros do Conselho de Segurança da ONU, não têm qualquer interesse em que o Irão se torne uma potência nuclear — ao lado de dois países nucleares, Israel e Paquistão — mas também não querem que o Estado judaico e os EUA ataquem Teerão, muito menos querem mudança de regime no Irão. Além disso, um ataque ao programa nuclear do Irão também pode sair pela culatra no futuro: estados poderosos na região, como a Turquia e a Arábia Saudita iriam sentir-se empurrados para a corrida nuclear, vista como garantia para limitar as ameaças externas.
É sabido que há forte oposição entre a linha sunita da Arábia Saudita e a xiita do Irão. Mas o pragmatismo está a impor-se entre os rivais, muito encorajado pelo poder e pela influência de Pequim. Isto é demonstrado pela evolução das relações entre Riade e Teerão. Estas duas potências regionais aparecem cada vez mais empurradas para a coexistência no Golfo, como numa espécie de casamento forçado e conveniente: a geografia não deve ser alterada e os seus destinos cruzam-se. Os recentes exercícios navais conjuntos iraniano-sauditas no Golfo de Omã, juntamente com trocas de visitas militares, não são gestos simbólicos, mas um sinal de um novo pragmatismo face aos desafios de segurança que se estendem do Mar Vermelho ao Estreito de Ormuz. Esta atitude colaborativa foi alcançada em grande parte através da normalização das relações bilaterais mediada pela China há dois anos.
É assim que, na questão iraniana, Trump pode estar a preferir a negociação à força brutal das armas que Netanyahu quer usar. É assim que o acordo nuclear com o Irão passa de altamente improvável a possibilidade.
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