Olá N.,
Estamos em Setembro e devia escrever sobre este mês especial em, que por todo o mundo, se sensibiliza a sociedade para o Cancro Pediátrico e os seus problemas e só me lembro de ti, do teu sorriso doce, do teu corpinho frágil e da lágrima no canto do olho quando não tinhas força para abrir as portas da Casa Acreditar, que foi a tua durante um tempo longo na tua vida curtinha.
Devia falar dos direitos que não são garantidos aos pais. Aos pais como os teus que lutaram com todas as forças para conseguirem a tua cura, o teu bem-estar, sempre longe da tua casa, da tua terra, dos teus amigos e, no entanto, só me lembro de ti. Da tua vozinha sedutora que encantava todos os que contigo se cruzaram e de te queixares que te doíam as pernas, que te doía a barriga e de, apesar disso te levantares e ires brincar com os amigos de quem eras tão companheira.
Todos esperavam que escrevesse sobre os Hospitais que tratam meninos como tu e que podiam ter melhores condições, mais camas, mais profissionais — que se rendem também ao charme de meninas como tu, lutando desesperadamente para que vivam e sejam felizes.
Se eu tivesse a tua coragem e a tua determinação falaria dos meninos que estiveram doentes e não conseguem ter a atenção que deveriam, das consultas de seguimento que não têm e de como isso os deixa angustiados. De como deixa ansiosos os seus pais. Porém, não tendo a tua coragem e determinação, só consigo lembrar-me que com doçura conseguias sempre impor a tua vontade, a tua maneira serena de ser e de estar, tão adulta, tão crescida do alto dos teus 4 anos.
Entro na sala e vejo-te de costas ao lado dos teus amigos, todos juntinhos, sempre a brincar e sempre tranquilos.
Os teus amigos, todos eles doentes como tu e todos eles sábios como tu.
A força que vocês demonstravam assim juntos, a força que podia servir para tornar todos mais conscientes das obrigações que a cada um cabe para vos dar uma vida melhor.
Se os senhores ministros, os senhores deputados, os senhores administradores e todos os que influenciam as vidas de meninos como vocês vos pudessem ter visto assim, tão juntinhos , tão amigos , tão …. Tão….Ah! Aí ninguém ia poder dizer que não sabia, que nunca tinha sabido, que vocês eram apenas números e que já tinham feito tudo o que podiam.
Se quem decide, quem analisa e quem executa pudesse ter visto o teu desenho com um risco e uma bola e tu lhe explicasses que era um elefante, que ali estavam as patas, ali a tromba e ali a boca, então eles saberiam que com imaginação, com vontade, com determinação podemos sempre transformar a realidade.
A tua realidade de 4 anos era feita de hospital e tu desenhavas elefantes quase a voar.
Imagino o que seria se tivesses podido ir à escola, se tivesses podido crescer e decidir como seria a vida de meninos como tu.
Não te contei N., mas tu sabes que há hospitais que não querem que os meninos como tu tenham uma escola? Imaginas? Tu que ficavas tão triste quando os teus amiguinhos da Casa Acreditar iam para a escola e tu ainda não podias ir. Tu que achavas uma injustiça por não te levarem com eles. Já estou a ver o teu arzinho de censura doce se eu tivesse tido a oportunidade de te contar esta novidade.
Devia falar de tanta coisa e só me lembro de ti, de todos os meninos e meninas que conheci.
Apetece-me sentar na escada e dizer que não consigo abrir a porta, a porta que dará mais direitos de tratamento aos meninos como tu, a porta que dará mais direitos aos pais de meninos como tu.
Talvez, se eu fizer como tu, alguém me veja na escada e me venha ajudar a abri-la e, no próximo ano, quando for Setembro Dourado outra vez, eu só tenha de te escrever a agradecer por mais esta lição de vida que me deste.
Até já N.,
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