Quem trabalha com sobreviventes de violência sexual sabe que a cultura de responsabilização das vítimas não só agrava o seu sofrimento como contribui para o silenciamento das suas vozes. Esta realidade é visível nas redes sociais e nas caixas de comentários de notícias sobre crimes sexuais. Nestes espaços, a mensagem parece ser sempre a mesma: as vítimas não devem partilhar as suas histórias.
Ler comentários nas redes sociais pode parecer masoquismo, mas ajuda-nos a compreender e monitorizar as narrativas. Quando as vítimas são homens, o tema torna-se motivo de piada e escárnio. Há sempre quem escreva:
“Uma violação das boas!”
“Eu já passei muito por isso e gosto.”
“Espero que estas abusadoras nunca descubram que moro na Rua [que decidi não reproduzir].”
“Já não se fazem HOMENS como antigamente. ?”
“Desculpem lá! Mas como pode um homem ser abusado??!”
“Homens???? Ou meninos? ???”
“É tudo mariquinhas.”
Face a esta torrente de comentários, há quem subscreva e alinhe na “piada”, e há quem conteste a possibilidade dos homens serem vítimas de violência sexual. Rejeitam os números, os relatórios e as estatísticas. E, claro, há sempre quem se sinta legitimado a revogar o estatuto de vítima aos sobreviventes, rebatendo as suas narrativas e descredibilizando os factos.
Os comentários empáticos também existem, mas são uma minoria e perdem-se no meio das observações malsãs.
Denunciar, contar ou ficar calado?
Nada do que escrevi acima é novo e, infelizmente, faz parte do silenciamento histórico das mulheres sobreviventes que, contra a maré, ousam falar. Na Quebrar o Silêncio, trazemos este tema para os grupos de apoio dirigidos a homens que foram vítimas de abuso sexual, e o que nos dizem vai no mesmo sentido. Além da certeza de que serão alvo de troça, estes homens receiam partilhar as suas histórias por medo de escrutínio, descrença e ódio. Veem-no acontecer às mulheres sobreviventes e sabem que com eles não será diferente.
Se queremos que mais vítimas – homens e mulheres – partilhem as suas histórias, precisamos de lhes dar a segurança para o fazer. Por isso, é urgente mudar esta cultura de ridicularização e descrença. Caso contrário, há que dizê-lo com clareza: quem contribui para a troça e para o silenciamento das vítimas está do lado dos abusadores, perpetuando a sua impunidade. Às vezes, é tão simples quanto isso.
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Ângelo Fernandes é o fundador da Quebrar o Silêncio — a primeira associação portuguesa de apoio especializado para homens e rapazes vítimas e sobreviventes de violência sexual — e autor de “De Que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças?”, um livro dirigido a pais, mães e pessoas cuidadoras com orientações para a prevenção do abuso sexual de crianças.
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