Quando comecei a ter consciência de mim, na década de 70, o conceito era outro: qualquer um (em rigor, qualquer família…) podia ter o seu automóvel, “devia” ter o seu automóvel, porque havia modelos para todas as bolsas, e a mobilidade individual estava em plena expansão. Era o tempo do Fiat 127, do Opel Corsa, do Citroen AX, do Renault 5 - e a publicidade, que adoro rever (obrigado, You Tube, por existires!), exaltava o lado democrático da acessibilidade, o que me ajudou a crescer sem manias: ter carro era, em si, uma mais-valia - mas a diferença entre um FIAT e um BMW não me impressionava excessivamente…
Só voltei a preocupar-me com a questão no começo dos anos 80, quando tirei a carta e me confrontei com o preço dos carros, os seguros, os pneus, as revisões. O automóvel entrou na minha vida como na de toda a geração a que pertenço: indispensável para o trabalho e o namoro, mas uma despesa permanente. Quanto mais pobres, pior: o carro em segunda mão (sempre uma espécie de ovo kinder, nunca se sabia o que lá estava dentro…), os modelos novos baratos (porém cheios de defeitos, que se revelavam ao fim de poucos meses), os seguros muito caros para quem estava em começo de vida. Uma chatice. Quando estava à beira de decidir deixar de ter carro, a década mudou. Chegaram os anos 90.
Com eles vieram as modernices nos motores e tabliers, os créditos fáceis, as auto-estradas, e a falsa ideia de que qualquer pessoa, desde que trabalhasse e tivesse um rendimento acima do salário mínimo, podia ter o automóvel dos seus sonhos - desde que os sonhos não subissem a um Aston Martin ou a um Ferrari. Assim se modernizou um parque automóvel (parte boa) de uma população sem dinheiro para o pagar (parte má).
A crise, que na década passada decidiu tomar conta das nossas vidas, fez do sonho um tormento. Não foi apenas a impossibilidade repentina de cumprir as prestações e os leasings - foi o Estado a ver no universo automóvel mais um meio de sugar dinheiro para pagar a sua obesidade mórbida: imposto automóvel, portagens, impostos sobre gasolina, circulação, estacionamento pago na via publica. Vale tudo. E esta semana, perante a vergonhaça do Orçamento que chegou a Bruxelas, a resposta não se fez esperar: quem tem automóvel vai pagar mais 19% de impostos (rico ou pobre, tanto faz - coisa de esquerda, não é?!…), a ver se se conseguem arrecadar mais 580 milhões de euros de receita. Parece que vai nascer uma taxa para pagar a circulação entre a garagem do prédio e a rua…
Perante mais este atentado a quem vive do trabalho - e usa o carro maioritariamente para esse efeito -, voltei a ponderar deixar de o ter. Estudei percursos, alternativas, transportes públicos disponíveis. Consegui animar-me com a ideia - até me lembrar do pesadelo que vivi no Verão passado, quando achei “genial” a ideia de ir, sempre em transportes públicos, à Praia Grande (a 35 quilómetros de Lisboa), ver o meu filho trabalhar como nadador-salvador. É verdade que cheguei lá. Mas foi às 17:00, depois de três horas de comboios e camionetas. Porquê?
Porque o Estado, que decide agora aumentar em 19% os impostos sobre o universo automóvel, é o mesmo que privatiza - e ao fazê-lo, obriga a rentabilizar a quem comprou (isto é, reduzir horários e percursos) - o que era de todos: o transporte público. Com isso, mata as alternativas ao automóvel. Imobiliza os mais pobres, deixa via aberta aos mais ricos.
Dispensava com gosto o automóvel, cujo custo mensal é francamente superior ao beneficio que me dá - mas tinha alguma esperança de que uma “maioria de esquerda” cumprisse os desígnios que tradicionalmente lhe reconhecemos, e compensasse esse brutal ataque à classe média com medidas sociais: benefícios e melhorias na rede de transportes públicos. Nem isso sucede.
Parecem cheios de vontade de ir de carrinho. Não vai demorar muito tempo.
COISAS QUE ME DEIXARAM A PENSAR ESTA SEMANA
Confesso: tenho conta de Twitter, mas não uso nem consulto. De vez em quando recebo uns mails de sedução da plataforma, uma vez por outra leio citações na imprensa de pessoas importantes que publicaram coisas no Twitter. Sempre achei que escrever em cima da hora era o mesmo que escrever mal. Mantenho-me distante. Agora, saltam-me matérias, nos jornais e newsletters, pouco simpáticas sobre o Twitter. E até mesmo sobre alternativas como o Telegram. O que se passa?
Na segunda-feira que vem há festa no Cais do Sodré, em Lisboa. Festejam-se três anos de poesia dita, cantada, gritada, sussurrada, no bar O Povo. Já uma vez chamei a este encontro semanal “O milagre das segundas-feiras”: “Num país deprimido e triste, onde parece nada acontecer, e só ter sucesso o mínimo denominador comum, o milagres das segundas-feiras d’O Povo é o sinal mais animador da cidade e uma espécie de prova de vida regular da nossa existência”. A ideia mantém-se. E a vitalidade cresce. Um brinde à poesia n’O Povo e a festa mais do que merecida.
Para um americano, talvez não seja a mais clara e interessante das fontes - mas para um europeu, para mais pouco ligado a um processo eleitoral intrincado, confuso, e onde muitas vezes se confundem sondagens com eleições primárias, estados representativos com outros marcadamente democratas ou republicanos, e todo o processo eleitoral parece uma roleta de Las Vegas, a cobertura do britânico The Guardian é talvez a mais completa, transparente e esclarecedora, para a eleição deste ano. É a que leio, é o meu conselho.
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