Embora o Tibete exista desde o século V AC, a sua existência só foi descoberta pelo mundo por volta do século XII DC. O primeiro europeu a lá chegar terá sido Benjamim de Tudela, que voltou a Navarra para contar o que viu em 1273. (Se quer saber tudo sobre a longa história da região, guerras, ocupações e dinastias, veja aqui).
Este isolamento deve-se em parte à difícil acessibilidade da região, nos píncaros do mundo e fora das rotas comerciais que se formaram e desfizeram ao longo dos séculos, e também ao pacifismo do tibetanos, que tradicionalmente não tiveram exércitos nem tentaram conquistar terreno à sua volta. Deve-se também à natureza única da sua religião: o budismo é uma filosofia humanista, que aspira ao aperfeiçoamento da pessoa, com vista a “subir” para uma melhor situação na encarnação seguinte.
Não escaparam aos mongóis, que nos séculos XIII-XIV conquistaram o maior império de que há memória. Mas com o fim da Orda Dourada ficaram entregues a si próprios. Converteram-se ao budismo, originário do norte da Índia, e criaram a sua própria adaptação, o Vajnaraimo, ou Gelug, cujo mestre espiritual, o Dalai Lama, foi instituido em 1447. Seguindo o princípio da reincarnação, os dalai lama seguintes passaram a ser escolhidos segundo um complexo sistema de sinais que indicam que uma criança é a volta à Terra do mestre anterior. O actual, Tenzin Gyatso (https://pt.wikipedia.org/wiki/Tenzin_Gyatso), nascido em 1935, é o décimo quarto.
O budismo, que tem basicamente três correntes não contraditórias, é actualmente seguido por cerva de 400 milhões de crentes espalhados pelo mundo. Para se ter uma ideia, há cerca de quatro milhões nos Estados Unidos da América, um milhão e trezentos mil na Europa e 420 mil na América do Sul. O Tibete tem 6,7 milhões de habitantes, mas actualmente 12% da população é chinesa, como veremos adiante.
Então, em 1950 a China invadiu o Tibete, a conquista fácil de um país que não tinha forças armadas nem qualquer tipo de defesa. A razão apresentada pelo Partido Comunista Chinês foi a “libertação” de uma população presa a uma religião primitiva e com níveis de vida medievais.
Os tibetanos não gostaram e, mesmo que só munidos de paus e pedras, revoltaram-se contra o Exército Popular. Os chineses trucidaram 1,2 milhões - um em cada seis. Destruiram ou fecharam os mosteiros, tornaram a religião ilegal, começaram a enviar para a região milhões dos seus e tornaram o currículo escolar e o idioma chinês obrigatórios.
Esta sanha anti-budista e pró-marxista não teve motivos exlusivamente ideológicos; o Tibete tem grandes reservas de ouro, bóro, radium, ferro, titânio, chumbo e arsénico. Posteriormente descobriram-se minas de cobre e grafite, crómio, lítio, zinco e manganês. Muitos minerais que a China precisa para a sua indústria.
Quanto a Tenzyn Gyatzo, não teve outro remédio senão fugir, para não cair na tutela dos chineses - sabe-se lá o que fariam com ele, mas nada de bom, com certeza. A Índia, que vive em permanente disputa fronteiriça com a China e é a terra onde nasceu
Siddhartha Gautama, o fundador do budismo, no século V AC (na altura fazia parte do Nepal) deu abrigo ao Dalai Lama e às centenas de tibetanos que conseguiram escapar. Desde 1960 vive em Dharamshala, mas costuma viajar pelo mundo. Inclusive já esteve nas Nações Unidas.
O 14º Dalai Lama representa bem o que o senso comum imagina ser a postura essencial dum budista; tem sentido de humor, uma sabedoria discreta e eficiente, e sabe irritar os chineses sem dizer nada que os irrite. Ganhou o Prémio Nobel da Paz pela forma pacifista como reagiu à agressão chinesa. Para toda a parte onde vai é recebido por fieis e simpatizantes e provoca protestos violentos de Pequim.
Acontece que Gyatzo tem 88 anos e portanto a sua passagem para o outro lado está próxima. Ele sabe-o e os chineses também. As reacções são opostas: Gyatzo goza com a situação, ora diz que já sabe quem será o próximo, ora diz que não sabe, ora afirma que talvez ele seja o último. Xi Jiping percebe muito bem que está aqui uma grande oportunidade de dominar de vez os recalcitrantes tibetanos e os budistas de todo o mundo. Para ele, o próximo Dalai Lama só pode ser escolhido por Pequim, e até já tem duas figuras alinhadas para a sucessão.
Os cenários prováveis são fáceis de calcular. Ou Gyatzo escolhe o seu sucessor, ou declara que é o último Dalai Lama. Em ambos os casos, Xi escolherá o seu, que evidentemente não será aceite por ninguém, budista ou não.
Não é possível haver dois dalai lamas, evidentemente; por um lado, uma pessoa não pode reincarnar em duas, por outro lado os princípios ideológicos do PC chinês não são compatíveis com o conceito de reincarnação. Só o interesse político pode levar Xi a meter-se numa disputa em cujos princípios não acredita.
O budismo pode sobreviver à existência dum Dalai Lama? Pode, evidentemente. 400 milhões de crentes, a crescer, continuarão a acreditar na filosofia maravilhosamente bela de Siddhartha Gautama. É uma escolha pessoal, com efeitos individuais, que não exige grandes cerimónias ou demonstrações exteriores, e que portanto passa por baixo do radar de qualquer regime, mesmo da distopia em tempo real que a China está a viver.
O Tibete, como país e como cultura, vai desaparecer. Não há nenhum cenário para o futuro que impeça esta barbaridade. Já aconteceu com outras nações e outras culturas. Mas o budismo, como princípio, ou melhor, como objectivo de vida, há-de reincarnar sempre.
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