Eles estavam confinados há 30 anos. E é por isso que todos sabiam que não iam ficar em casa

Tomás Albino Gomes
Tomás Albino Gomes

Se o futebol fosse algo racional, não existia. Pouco ou nada é lógico num adepto de futebol, o dinheiro e tempo investidos, a quantidade de asneiras como comentário à ação de um indivíduo que lhe é completamente alheio e em que 99,9% dos casos nem sabe que aquela pessoa existe. Nem o clube é escolhido dessa forma. Aqueles que ousam dizer a frase “sou de quem ganha” não são adeptos de futebol, são pessoas que num determinado momento se encontraram rodeadas por verdadeiros adeptos de futebol e, se pudessem, nem estariam a falar daquilo. Ninguém é de quem ganha, por ventura o amor a um emblema que nos é passado por alguém pode coincidir com períodos desportivos fortuitos, mas nada mais.

Se o futebol fosse algo racional, os regressos dos campeonatos poderiam fazer-se em dois ou três jogos, entre as melhores equipas porque, logicamente, seriam esses os resultados que poderiam mudar alguma coisa na tabela classificativa, todos os outros se decidiriam numa lógica básica de oposição de forças.

Mas o futebol é uma das construções mais humanas que a vida em comunidade criou. É só e puramente humano. Jürgen Klopp sabe-o, sabe-o como poucos.

"Quando cheguei, ninguém gostava da equipa. Nem sequer a equipa gostava da equipa! Eles não o diziam mas nem precisavam, porque eu conseguia ver. Achavam que não eram bons o suficiente para estar no Liverpool porque toda a gente lhes dava essa sensação. A única pessoa que estava contente com a equipa era eu. Era uma boa equipa, especialmente porque era a nossa equipa. Quando não a podemos mudar naquele momento, porque é que vamos pensar sobre isso? Não conseguia perceber”.

As palavras do alemão, acima descritas, na chegada a Anfield Road são as de um homem capaz de tirar o melhor dos que o rodeiam, tática e emocionalmente. É por isso que quando ontem, Klopp, após o apito final do Chelsea Vs. Manchester City (2-1), que deu o título ao Liverpool trinta anos após a última conquista do clube no campeonato, pediu aos adeptos que celebrassem o título em casa, no máximo, à porta de casa, que isso não ia acontecer.

No Reino Unido já morreram mais de 43 mil pessoas devido à pandemia provocada pelo novo coronavírus, o total de casos confirmados já é quase de 310 mil. Todas as pessoas sabem que a forma de combater a transmissão deste vírus está assente em regras de etiqueta respiratória, distanciamento social e uso de máscara. O lógico é que a festa se fizesse em casa, o razoável era que as ruas não se pintassem de vermelho.

Mas se o futebol nunca foi assente na razão, para o bem e para o mal, como é que poderíamos achar que os adeptos de um clube, conhecidos pelo seu apoio incansável, iriam ficar em casa depois do título mais ambicionado do clube no século XXI? Não há Liga dos Campeões que chegasse, foram demasiados os anos do ‘quase’, a frase ‘para o ano é que é’ tinha sido dita demasiadas vezes.

Quando este ano o Liverpool começou uma caminhada gloriosa - é campeão com apenas um derrota e dois empates em 31 jogos (e ainda faltam jogar sete jornadas) -, a interrupção do campeonato devido à pandemia congelou o coração de milhares de adeptos. O medo de um campeonato interrompido pairava no ar como a escorregadela de Steven Gerrard há seis anos, diante do Chelsea, quando Brenda Rodger deixou fugir o campeonato para o City.

Quando a Premier League regressou toda a gente sabia que os Reds iam ser campeões, só isso era motivo para o regresso da competição. A injustiça de adeptos e equipa não poderem celebrar este feito juntos é dolorosa, assim como seria impedir alguém, após um confinamento de 30 anos de não chorar e celebrar abraçado ao outro.

Klopp, um homem que domina bem o impossível, sabia o que a festa do Liverpool devia ser e o que ia ser. Todos o sabíamos, mas quando deixámos o futebol voltar aos relvados, fosse em que condições fosse, sabíamos que este não ia passar a ser um desporto baseado na lógica. Há coisas impossíveis de controlar.

Para quem está fora das paixões clubísticas, e mesmo para quem não estando consegue superar os estados de alma, é claro que tudo o que tanta gente passou nestes meses é motivo mais que suficiente para endireitar a euforia de um adepto que não ganha ha 30 anos. Houve pais que não assistiram ao nascimento dos filhos, houve filhos que não se puderam despedir dos pais, houve e há milhões de pessoas no mundo com a vida suspensa ou virada por causa do vírus. E, na verdade, pouco mais nos é pedido do que ficar em casa, manter distanciamento, cumprir regras de higiene. É simples, sobretudo se pensarmos em tantos danos maiores. Mas a pergunta honesta face à festa dos adeptos do Liverpool é se quem conhece esse intangível tribal de que é feito o futebol, acreditou mesmo que tudo correria em modo asséptico, que todas as normas seriam cumpridas, se nada fugiria ao controlo (e auto-controlo).

Se esta temporada, em Portugal, o Sporting CP fosse campeão, como poderia o país não se pintar de verde? Como poderiam adeptos que há 18 anos que nunca deixaram de apoiar a equipa, depois de várias desilusões e de vários ‘quase’, ficar em casa?

Muitos dirão que é simples, que se pode festejar em casa, que não é preciso beber e abraçarmos outros para celebrar os títulos, que vão haver mais, que é irresponsável. Mas toda a gente sabe que quem diz isto são as mesmas pessoas que dizem que são da equipa que ganha.

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