Quem leva Putin a sério?
Esta quarta-feira começou com a transmissão da mensagem de Vladimir Putin à população da Federação da Rússia, que era aguardada desde a noite de ontem.
No discurso, o presidente russo anunciou uma "mobilização parcial" dos cidadãos do país, quando a guerra na Ucrânia está quase a chegar ao sétimo mês do conflito.
A medida, que entra imediatamente em vigor, obedece à necessidade de defender a soberania e a integridade territorial do país, sublinhou o chefe de Estado russo. Assim, a Rússia, que invadiu a Ucrânia em 24 de fevereiro, está pronta a utilizar "todos os meios" ao seu dispor para "se proteger", declarou Putin, que acusou o Ocidente de procurar destruir o país.
"Considero necessário apoiar a proposta [do Ministério da Defesa] de mobilização parcial dos cidadãos na reserva, aqueles que já serviram (...) e com uma experiência pertinente", declarou.
Perante "a ameaça" que representa, para o Presidente russo, "o regime nazi de Kiev", apoiado financeira e militarmente pelo Ocidente, Moscovo vai utilizar "todos os meios ao seu dispor para proteger a Rússia" e o seu povo, advertiu Putin, numa alusão às armas nucleares.
"Isto não é um 'bluff'", avisou.
"O objetivo do Ocidente é enfraquecer, dividir e destruir a Rússia", garantiu, através da supressão "dos centros de desenvolvimento soberanos e independentes" no mundo.
"Eles [os ocidentais] dizem abertamente que em 1991 conseguiram desmembrar a União Soviética e que agora chegou a vez da Rússia", acusou.
O discurso gerou várias reações, entre as que levaram a sério a posição ofensiva da Rússia e os que enquadraram o discurso num contexto de ameaças sem o efeito real anunciado, típico de um quadro de Guerra Fria, como aconteceu no final do século XX, período em que a divisão entre o ocidente e oriente se fazia com base num constante clima de ameaça.
A embaixadora norte-americana na Ucrânia, Bridget Brink, considerou, ainda de manhã, que o anúncio, aliado aos referendos para a anexação de territórios ucranianos, são um "sinal de fraqueza das autoridades russas.
"Referendos e mobilização semelhantes são sinais de fraqueza, do fracasso russo", afirmou Brink na rede social Twitter, garantindo que o seu país continuará "a apoiar a Ucrânia o tempo que for preciso".
À tarde, no debate geral da 77.ª sessão da Assembleia-Geral da ONU, Joe Biden, presidente dos EUA, disse que "esta guerra [na Ucrânia] tem o objetivo de extinguir o direito de a Ucrânia existir enquanto Estado", e acusou Putin de violar "descaradamente" os princípios fundadores da Carta das Nações Unidas.
O Presidente dos Estados Unidos defendeu que "se as nações podem perseguir sem consequências as suas ambições imperiais", a ordem do pós-Segunda Guerra Mundial desmorona-se.
Visando as ameaças veladas de Vladimir Putin no seu mais recente discurso à nação, anunciando uma mobilização parcial de tropas na reserva e avisando o Ocidente que usará todas as armas à sua disposição para defender a Rússia, Biden lembrou que "uma guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser travada".
O conselheiro do Presidente ucraniano afirmou hoje que a mobilização de reservistas anunciada hoje pela Rússia contraria todos os planos iniciais de Moscovo, que esperava que a agressão demorasse apenas três dias até a Ucrânia sucumbir.
“Estamos no dia 210 da 'guerra de três dias'. Os russos, que exigiam a destruição da Ucrânia, acabaram por ser mobilizados, por ver fronteiras encerradas, por enfrentar um bloqueio das suas contas bancárias, por ser presos por deserção”, escreveu Mijailo Podolyak numa mensagem divulgada na rede social Twitter.
Mais tarde, o próprio Zelensky disse que "não acredita" que a Rússia vá usar armas nucleares na guerra na Ucrânia.
"Não acho que essas armas serão usadas. Não acho que o mundo deixará isso acontecer", afirmou o chefe de Estado ucraniano, em entrevista ao canal alemão Bild TV.
Zelensky alertou ainda para o risco de se ceder perante as ameaças do líder russo: "amanhã Putin pode dizer que, tal como a Ucrânia, quer parte da Polónia, caso contrário vai usar armas nucleares. Não podemos fazer esse tipo de compromissos".
O secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, acusou o Presidente russo, Vladimir Putin, de usar "retórica nuclear perigosa " ao afirmar que está disposto a usar contra o Ocidente "todos os meios" do seu arsenal.
"Esta é uma retórica nuclear perigosa", disse à margem da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, mas pedindo calma porque "isto não é novo, ele já o fez muitas vezes".
"Vamos permanecer calmos e continuar a apoiar a Ucrânia", declarou Stoltenberg num colóquio organizado pela agência de noticias Reuters, sublinhando que a Aliança não detetou qualquer alteração na postura nuclear da Rússia.
"Mas estamos a acompanhar de perto e continuamos vigilantes", disse.
Da China, Wang Wenbin, porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros, apelou ao diálogo e a que se apoie “qualquer esforço” que permita um cessar-fogo na Ucrânia.
“Todos os esforços que levem a uma solução pacífica desta crise devem ser apoiados”, afirmou.
O porta-voz assegurou que a posição da China sobre o conflito “sempre foi clara e não mudou”. Esta passa por "respeitar a integridade territorial de todos os países", incluindo a Ucrânia e, ao mesmo tempo, atentar para as “legítimas preocupações de segurança” da Rússia.
De Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, questionado pelos jornalistas sobre se Vladimir Putin estava a “fazer 'bluff'”, Marcelo Rebelo de Sousa respondeu que “já não é a primeira vez” que o Presidente russo faz estas ameaças.
“Há momentos em que [Putin] sobe o tom vocal, o tom verbal, mas essa subida deve ser encarada com serenidade, é uma oportunidade, a Assembleia-Geral [das Nações Unidas] está reunida, uma forma é dizê-lo lá na Assembleia-Geral, outra é dizê-lo à distância”, completou.
Dentro da Rússia, Alexei Navalny, nome maior da oposição contra o poder instituído de Putin, previu uma "enorme tragédia" com a mobilização parcial dos cidadão.
"Tudo isso levará a uma enorme tragédia e a uma enorme quantidade de mortes", declarou o principal opositor russo, que atualmente se encontra preso, durante uma audiência de um dos vários processos que enfrenta na Rússia, num vídeo divulgado pelos meios de comunicação russos.
"É claro que a guerra criminosa que atualmente ocorre só se agrava e aumenta, e Putin tenta envolver o maior número possível de pessoas", lamentou Navalny, empregando uma palavra proibida pelo Kremlin [guerra], que classifica a invasão da Ucrânia como uma "operação militar especial".
Segundo Navalny, ao mobilizar 300.000 reservistas para fortalecer as tropas de Moscovo na Ucrânia, Vladimir Putin pretende "manchar as mãos [de sangue] de centenas de milhares de pessoas".
"Tudo é feito para que um único homem mantenha o seu poder (…) e o prolongue”, lamentou o opositor, preso desde janeiro de 2021.
Também na Rússia, segundo vários relatos, um elevado número de cidadãos apressou-se a comprar bilhetes de avião para fora da Rússia, depois do anúncio de Vladimir Putin.
Os voos ficaram rapidamente cheios e os preços dos bilhetes para as restantes ligações dispararam, aparentemente impulsionados pelo medo de que as fronteiras da Rússia possam ser em breve fechadas ou de uma convocação mais abrangente que obrigue muitos homens russos em idade de combate a ir para as linhas da frente do conflito.
Os bilhetes para os voos Moscovo-Belgrado operados pela Air Serbia, a única companhia aérea europeia, além da Turkish Airlines, que mantém voos para a Rússia apesar do embargo aéreo decretado pela União Europeia, estão esgotados para os próximos dias.
O preço dos voos de Moscovo para Istambul ou para o Dubai aumentou em minutos antes de registar um novo máximo, atingindo os 9.200 euros por um bilhete de só de ida em classe económica.
Relatos de pânico a espalhar-se entre os russos logo inundaram as redes sociais, e grupos antiguerra indicaram que o reduzido número de bilhetes de avião para fora da Rússia atingiu preços muito elevados devido ao aumento da procura e rapidamente se esgotou.
Alguns ‘posts’ nas redes sociais davam já conta de casos de pessoas que tinham sido mandadas para trás na fronteira terrestre da Rússia com a Geórgia e que o ‘site’ da internet da companhia ferroviária estatal russa foi abaixo, porque demasiadas pessoas estavam a tentar aceder-lhe, em busca de formas para sair do país.
As redes sociais em russo também registaram picos de atividade com conselhos sobre como evitar a mobilização ou abandonar a Rússia.
Numa aparente tentativa para reduzir o pânico, o dirigente da comissão de defesa da câmara baixa do parlamento russo, Andrei Kartapolov, indicou que as autoridades não imporiam mais restrições a reservistas que quisessem sair do país, de acordo com a comunicação social russa.
Um grupo sediado na Sérvia, chamado “Russos, Bielorrussos, Ucranianos e Sérvios Juntos Contra a Guerra”, escreveu na rede social Twitter que já não havia voos disponíveis para Belgrado com partida da Rússia até meados de outubro. Voos para a Turquia, a Geórgia ou a Arménia também esgotaram, segundo o mesmo grupo.
“Todos os russos que queriam ir para a guerra já foram”, declarou o grupo, acrescentando: “Mais ninguém quer ir para lá!”.
A capital da Sérvia, Belgrado, tornou-se um destino popular para cidadãos russos durante a guerra: quase 50.000 fugiram para a Sérvia desde que a Rússia invadiu a Ucrânia e muitos abriram negócios, especialmente no setor das tecnologias de informação.
Os cidadãos russos não precisam de visto para entrar na Sérvia, que é o único país europeu que não se juntou às sanções ocidentais impostas à Rússia pela sua agressão à Ucrânia.
Em várias cidades da Rússia, a reação ao anúncio de Putin foi o protesto que resultou, para já, várias dezenas de detidos.
A organização de defesa dos direitos civis OVD-Info iniciou já a sua própria contabilização das manifestações e confirmou pelo menos 44 detenções, embora seja previsível que o número venha a aumentar, devido às convocatórias para protestos hoje à tarde.
Cada protagonista terá as suas razões para temer ou desconfiar do presidente russo, tendo em conta tudo o que aconteceu nos últimos meses e à porta de um dos invernos mais temidos da Europa pelo risco da interrupção do fornecimento de gás.
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