Ir para morrer
Perdi o meu avô paterno aos oito anos. Lembro-me de ele ter saído da casa onde morava, onde o meu pai e o meu tio cresceram, e onde ainda hoje visito a minha avó, uma casa recente, adaptada a um rés do chão para que, na sua cadeira de rodas, os impedimentos fossem os menos possíveis. Mas mesmo com todos os esforços do mundo, o corpo que nunca se deu bem com o tempo, fizeram com que o meu avô também acabasse por deixar de caber naquela casa.
Foi colocado num lar e lembro-me de o ter ido visitar, se calhar, um par de vezes. Uma primeira tal como sempre o conheci, uma segunda já com a saúde bastante deteriorada. Tinha oito anos e não via ali nada, muito menos um bom sítio para aguardar pela morte inevitável.
Dir-me-ão que há casos e casos, necessidades e necessidades e eu respondo que compreendo tudo isso. Compreendi quando o meu avô foi para o lar, compreendi o que lá poderia ter, compreendi os anos de vida que a minha avó ganhou. Compreendo que os maus exemplos não se sobrepõe a tantos casos onde pessoas de corações do tamanho do mundo dão tudo ao ponto de tantas vezes se tornarem família para os últimos anos de vida de um estranho. Mas há memórias de infância difíceis de contrariar e esta viveu sempre comigo, a de um lar como um sítio para morrer. Eu tenho para mim que ninguém está preparado para ir para um lugar morrer, nem mesmo no tabuleiro quando o peão dá lugar a uma dama.
Viria a ver a figura "lar" com outros olhos quando me encontrei com o romance "A Máquina de Fazer Espanhóis", de Valter Hugo Mãe. Consegui ver ali uma casa, outra que não tinha visto com os meus olhos de menino nas distantes memórias do meu avô, dos últimos meses de vida do meu avô, onde todos cabemos, em histórias, limitações, amor, saudade e solidão. Onde ainda realmente existimos.
“precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de companhia. este resto de vida, américo, que eu julguei já ser um excesso, uma aberração, deu-me estes amigos. e eu que nunca percebi a amizade, nunca esperei nada da solidariedade, apenas da contingência da coabitação, um certo ir obedecendo, ser carneiro. eu precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de amizade.” - "A Máquina de Fazer Espanhóis, Valter Hugo Mãe.
Os lares entrariam mais tarde pelas nossas casas aquando da pandemia provocada pelo novo coronavírus, ilhas isoladas de solidão, cemitérios distantes em tantos infelizes casos de surtos incontroláveis, quando o Covid-19 ceifava cegamente vidas dentro daquelas paredes. E mais uma vez, mesmo com noção do período excecional que vivíamos enquanto mundo, voltei a ser abalado por aquela ideia: "ir para morrer". Ninguém podia adivinhar assim os últimos tempos da sua vida. Ninguém os merecia.
A maneira como olhamos para um lar, como pensamos a nossa velhice, como equacionamos aquela dos que nos são próximos, depende muito desta experiência pessoal. Do que vimos, do que soubemos, do que vamos sabendo.
Hoje, a notícia de um caso de um lar no Algarve, em Boliqueime, onde se mostra uma idosa de 86 anos deitada numa cama, com uma ferida aberta e dezenas de formigas a cobrirem-lhe várias partes do corpo, farão parte do pensamento de alguém que equaciona ir para um lar ou confiar naquela instituição parte dos últimos anos de vida de um familiar ou de um ente querido.
No caso, revelado hoje pelo diário Correio da Manhã, a idosa acabou por morrer um mês depois deste episódio, que terá ocorrido em julho passado.
A Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime, anunciou na quarta-feira, através da rede social Facebook, ter aberto um inquérito para apurar responsabilidades ao alegado caso, que classificou de “negligência grave”.
A instituição particular de solidariedade social precisou que o “inquérito de natureza disciplinar” foi determinado depois de ter tido conhecimento do vídeo partilhado nas redes sociais a denunciar o caso.
“Tendo tido conhecimento a semana passada, que algum ou alguns dos seus colaboradores não garantiram o cuidado adequado a uma utente, (…) determinou a instauração de um inquérito (…) para apurar quem é ou são os responsáveis por esta situação inadmissível e será implacável na punição”, lê-se no documento.
No texto, a Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime adianta ter apresentado uma queixa-crime contra a autora da publicação do vídeo, face aos termos “insultuosos e acusações infundadas”.
A agência Lusa tentou contactar a provedora da Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime, tendo sido informada que a mesma estava indisponível por se “encontrar em reunião da direção”.
Por seu turno, o Ministério Público anunciou que está a investigar o caso.
“O Ministério Público está a investigar os factos em apreço, tendo determinado a realização de autópsia médico-legal no âmbito de inquérito oportunamente instaurado”, confirmou a Procuradoria-Geral da República, após questionada pela Lusa.
O caso levou inclusive a uma reação da ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social que defendeu que o caso de alegada negligência no tratamento de uma idosa num lar de Boliqueime deve ser "averiguado até às últimas circunstâncias" e apelou à denúncia de situações semelhantes.
Questionada sobre o caso, a ministra afirmou que "é um caso de uma gravidade" em que se tem de "tirar todas as averiguações que é preciso".
A governante salientou que a Segurança Social tinha tido uma denúncia "no início deste mês e, logo após a denúncia, desencadeou as averiguações que está a fazer", sendo que também existe uma "participação por parte do Ministério Público".
"Tem de se tirar todas as consequências, apurar todos os factos" para saber o que aconteceu, reforçou Ana Mendes Godinho.
A ministra fez ainda um apelo para que casos semelhantes sejam denunciados.
"Se alguém tiver informações sobre situações dessas naturalmente que denunciem e informem para que possa haver intervenção, a Segurança Social, sempre que há uma denúncia, atua", reforçou.
"O que eu apelo aqui é que, sempre que haja informação, peço mesmo que haja essas participações e denúncias porque a preocupação de todos nós, como sociedade, é também garantirmos exatamente que há esta capacidade de proteção dos idosos como regra, temos é que garantir que situações que aconteçam deste estilo têm de ser averiguadas até às ultimas circunstâncias para garantir que não acontece", insistiu Ana Mendes Godinho.
A ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social disse aos jornalistas que quando tomou conhecimento do caso pediu esclarecimentos à Segurança Social, tendo sido informada que a situação tinha sido comunicada no início do mês e que se tinha avançado para averiguações logo que houve esse conhecimento.
Por mais que uma vez, a governante sublinhou que é preciso investigar este caso "até às últimas circunstâncias".
Neste momento estão "a ser avaliadas as circunstâncias, é isso que tem de ser feito imediatamente e para ter a garantia de que todos os factos são apurados", reforçou.
"Acima de tudo, temos de salvaguardar a garantia de proteção das pessoas idosas, nomeadamente as que estão em instituições", por isso é preciso que se identifique o que aconteceu, "para se adotarem os procedimentos necessários em função do que foi apurado", acrescentou a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social.
Num país onde os idosos são mais de 20% da população, mais de dois milhões e 400 mil pessoas, ainda não há paz e tranquilidade para que muitas pessoas saibam que estes também podem ser alguns dos melhores anos da sua vida.
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