Face ao dilúvio de polémicas pelas quais passou e a um ambiente cada vez mais denso de descrença em relação às virtudes de estar numa rede social como o Facebook, os responsáveis da empresa começaram a delinear uma estratégia nova para o seu futuro.
Esta foi explicada num longo post de Mark Zuckerberg na sua própria conta de Facebook, onde descreve uma nova estratégia para a empresa, que vai passar por comunicações privadas, efémeras e encriptadas, significando uma alteração significativa face à premissa de partilha pública em que assentava e que a tornou uma das maiores tecnológicas do mundo.
Para explicar isto, o CEO usou uma metáfora. Se o Facebook sempre foi uma “praça pública”, onde as pessoas se podiam juntar para discutir e partilhar ideias, teria também de passar a ser “uma sala de estar”, propensa a conexões mais íntimas e privadas. “A privacidade dá às pessoas a liberdade para serem elas próprias e conectarem-se mais naturalmente, que é a razão pela qual construímos redes sociais”, defendeu na publicação.
O que está em causa não é uma completa alteração do Facebook: a principal característica que lhe dá o tal cariz de “praça pública”, o “feed de notícias”, vai manter-se inalterado. Ou seja, a grande viragem não está em reconverter o produto, mas em fazê-lo alargar-se às tais dimensões mais privadas da vida, caracterizadas por trocas imediatas. Em que é que consistem? Mensagens privadas, stories efémeras que duram menos de 24 horas e os pequenos grupos, aqueles que, segundo Zuckerberg, são “de longe os formatos de comunicação online que têm crescido mais rápido".
A grande mudança para concretizar esta visão passa por replicar o modelo de outro dos serviços detidos pela empresa, o Whatsapp, que tem um sistema de mensagens encriptadas. Zuckerberg garantiu que, não só vai usar o mesmo método nos serviços de mensagens Messenger do Facebook e Direct do Instagram (outra aplicação do grupo), como também pretende torná-los interoperáveis.
O que isso significa é que os utilizadores vão poder passar a trocar mensagens entre si através de diferentes serviços. Para tal, o CEO diz ser necessário unificar os três serviços de forma técnica - fazendo-os ter o mesmo “back-end” de servidores - mas sem fundi-los, mantendo-se marcas e aplicações independentes entre si, uma estratégia que já tinha sido revelada pelo The New York Times em janeiro.
De acordo com Zuckerberg, garantindo que se torna o sistema de mensagens “o mais seguro possível”, a empresa vai poder “começar a construir novas formas para as pessoas interagirem, incluindo chamadas, vídeochamadas, grupos, stories, negócios, pagamentos, comércio e, em última análise, uma plataforma para muitos outros tipos de serviços”. É, portanto, sob o signo da privacidade que o CEO do Facebook acredita que a empresa vai florescer.
Para além disso, a estratégia também vai passar por tornar o conteúdo gerado pelos utilizadores mais efémero, se estes assim o quiserem. Posts vão poder ter prazos de validade (de um mês a um ano), vai finalmente haver um botão para limpar o histórico e a própria empresa vai deixar de guardar os metadados dos seus utilizadores a termo indefinido. "Eu acredito que o futuro da comunicação vai mudar cada vez mais para serviços privados e encriptados, onde as pessoas vão poder ter a confiança de que aquilo que dizem se mantém seguro e que as suas mensagens e conteúdo não vão manter-se para sempre”, defendeu.
Outra meta anunciada por Zuckerberg pretende trazer mais confiança para junto do Facebook. De pouco serve adotar medidas mais cuidadosas quanto à gestão de dados dos seus utilizadores se estes forem guardados em locais de risco. A este respeito, o CEO disse que o Facebook vai “deixar de guardar dados sensíveis em países com más práticas no que toca a direitos humanos como a privacidade ou a liberdade de expressão”. Admite Zuckerberg que “manter este princípio pode significar que os nossos serviços sejam bloqueados em alguns países, ou que tão cedo possamos entrar noutros”, mas que esse é um “tradeoff que estamos dispostos a fazer”.
Apesar de nunca referi-los pelos nomes, a imprensa internacional não teve dúvidas em inferir que Zuckerberg se refere à Rússia e à China, sendo que o segundo foi um mercado longamente desejado pela empresa. Como escreve a Fortune, ambos os países têm apertadas leis de localização de dados com um suposto intuito de proteger a privacidade dos seus cidadãos, mas permitem uma recolha generalizada para alimentar os seus aparelhos securitários.
Encriptação, privacidade, segurança: "Nos próximos anos, planeamos reconstruir os nossos serviços em torno destas ideias", disse Zuckerberg, consciente do desgaste que a imagem do Facebook sofreu pelos casos de manipulação de dados. Mas as medidas do CEO não convenceram toda a gente, mantendo-se as dúvidas mais do que muitas.
Os senãos: de um modelo de negócio em cheque à ameaça dum monopólio
“Eu compreendo que muitas pessoas não consideram que Facebook possa ou sequer queira criar este tipo de plataforma focada em privacidade - porque, francamente, neste momento não temos uma boa reputação quanto a criar serviços protetores de privacidade, e estivemos historicamente focados em ferramentas para partilhas mais abertas”, admitiu o CEO no seu post.
A franqueza tem razão de ser: desde há dois anos que a adolescência do Facebook passou a ser problemática, seguindo-se um fluxo quase ininterrupto de escândalos e de revelações acerca dos métodos utilizados pela rede social. A lista de críticas é longa: utilizadores inquietos com a desinformação que circula pela plataforma, defensores da vida privada que se insurgem contra a recolha cada vez mais massiva de dados pessoais para deles se retirar proveito financeiro e até mesmo ativistas que alertam para o potencial de instrumentação da plataforma para violar direitos humanos.
Uma das maiores dúvidas é onde irá parar o modelo de negócio do Facebook. Tendo criado um modelo à volta da recolha de dados dos seus utilizadores para otimizar anúncios na plataforma, Zuckerberg não se adianta em detalhe quanto às repercussões de adotar um modelo mais focado em privacidade. A obtenção de 55,8 mil milhões de dólares em receitas em 2018 deve-se largamente à publicidade, a principal fonte de lucro da empresa.
O CEO não parece preocupado. Em entrevista à Wired, Zuckerberg disse que será mais difícil rentabilizar a publicidade, mas que, se se “criar a experiência de consumidor que as pessoas realmente querem”, estas passarão a “interagir organicamente com negócios” podendo passar a haver um maior foco em “formas pagas com que os negócios possam crescer e ter mais distribuição". Uma das soluções embrionárias poderá passar por monetizar pagamentos privados, algo que Zuckerberg menciona no post e que o The New York Times já tinha avançado enquanto projeto de criptomoeda que permitiria aos utilizadores transferir dinheiro entre si.
Mas, apesar da aparente benevolência de todas as medidas apresentadas, o “elefante na sala” mantém-se. Afinal de contas, grande parte da controvérsia à volta da empresa não se pauta apenas pelas falhas de segurança - incluindo uma que revelou os dados de 29 milhões de utilizadores -, mas também pela forma como o Facebook vendeu informação a terceiros, desde empresas com propósitos supostamente mais benignos, como a Netflix, ou até mais malignos, como a Cambridge Analytica. Dado o historial desastroso da empresa no que toca a gerir os dados dos utilizadores, passar a obter informação unificada de três plataformas aumenta a escala, e, consequentemente o risco, se for mal utilizada ou instrumentalizada de novo.
Tanto no post como numa entrevista à Wired, Zuckerberg defende que, mesmo no momento atual, o Facebook não se serve dos “conteúdos das mensagens para direcionar publicidade”, pelo que a encriptação garantiria a segurança dos utilizadores. Mas as coisas não são bem assim. A revista Fortune recorda que, apesar de não poder aceder aos conteúdos das mensagens, o Facebook continua a obter metadados das mesmas, conseguindo saber quem fala com quem e quando é que isso ocorre. Ou seja, como escreve Alex Hern para o The Guardian, Zuckerberg “está a oferecer privacidade no Facebook, mas não necessariamente privacidade do Facebook”.
Isto é só a ponta do iceberg de uma série de questões que se levantam, principalmente com a decisão de unificar as três plataformas a nível técnico. Refere a Fortune, que quem optou por inscrever-se no Instagram e no Whatsapp não o fez querendo ou sabendo que os seus dados seriam integrados na rede do Facebook. Mas a controvérsia assume proporções ainda maiores quando se verifica que o Facebook está sob intenso escrutínio por parte das autoridades norte-americanas e europeias quanto a questões de direito da concorrência, já que estas são três das mais populares aplicações do mundo, havendo cada vez mais vozes a clamar contra esta concentração.
A Alemanha, por exemplo, decidiu proibir recentemente o Facebook de usar dados colhidos pelas filiais Whatsapp e Instagram, sendo que as autoridades alemãs para a concorrências já avisaram a empresa que tais procedimentos serão ilegais na União Europeia se não houver claro consentimento dos utilizadores. De resto, a UE já vem sendo uma pedra no sapato para Zuckerberg há vários anos, bastando recordar que em 2017 a tecnológica foi multada em 110 milhões de euros por ter mentido aquando à compra do Whatsapp.
A estratégia de encriptar mensagens de todos os seus serviços assume-se como um dois-em-um para a empresa: por um lado, diz a Verge, ao admitir que nem os seus próprios funcionários vão conseguir ter acesso aos dados encriptados, procura dar garantias de privacidade aos seus utilizadores; por outro, ao unificar o “back-end” das três plataformas, blinda-as e torna-as impossíveis de dissolver, impedindo as autoridades de obrigar o Facebook a vender alguma das suas filiais sem pôr em causa todo o produto.
É por isso que, como cita o The Guardian, Ashkan Soltani, antigo diretor de tecnologia para a Comissão Federal de Comércio dos EUA, escreveu num tweet que a decisão “é inteiramente uma jogada estratégica para utilizar privacidade como uma vantagem competitiva e cimentar o Facebook como a plataforma dominante de mensagens”. Soltani diz ainda que o timing parece “sugerir uma jogada para afastar quaisquer potenciais esforços regulatórios para limitar a partilha de dados entre os serviços”.
Outra situação incómoda prende-se com a própria natureza da encriptação. Uma rede de mensagens totalmente encriptada, na verdade, traz tantos benefícios quanto incómodas incertezas. É que, se por um lado o CEO do Facebook disse que passaria a ser mais seguro para dissidentes governamentais comunicar com outras pessoas, por outro deixou omissa a possibilidade dessa mesma encriptação criar espaços não monitorizados, havendo o risco de replicar-se o fenómeno que afetou o Brasil durante as campanha eleitoral de 2018, em que o Whatsapp (por ter um sistema encriptado) permitiu passar mensagens de desinformação e propaganda política.
Relativamente a este problema, o CEO vincou saber que “encriptação é uma poderosa ferramenta para a privacidade, mas que isso inclui a privacidade de pessoas a fazer coisas más”. No entanto, apesar de saber dos riscos de poder encobrir atos de manipulação política ou até mesmo esquemas ilegais e terrorismo, Zuckerberg disse apenas que os seus técnicos irão procurar melhorar “a capacidade para identificar e parar maus atores nas nossas apps ao detetar padrões de atividade ou outros meios, mesmo que não consigamos ver o conteúdo das mensagens”. Ou seja, tão vago quanto uma mensagem encriptada.
Essa indefinição estende-se às metas temporais quanto a projeto. Zuckerberg também não menciona quando tempo irá levar esta mudança ou quando é que as pessoas notarão alterações. No seu post disse apenas que esta visão tomará forma “nos próximos anos”, prometendo à Wired que a empresa se comprometeu a "levar todo o ano de 2019 para construir os sistemas de segurança para que corram o melhor possível dentro do quadro de um sistema encriptado antes de passarmos para a encriptação total".
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