Albano Jerónimo: “O tempo que estamos em cena é pouquíssimo. É uma espécie de coito interrompido, queríamos mais”
Foi com João Fernandes (“um homem maior que a vida”) em “A Herdade”, filme de Tiago Guedes, que continuou a somar distinções, a mais recente (tem dias) no Panorama of European Cinema. Encarnou depois Álvaro de Campos na longa-metragem de Edgar Pêra, que deverá estrear no próximo ano. Altura em que finalmente o veremos na Netflix como ‘match’ perfeito na série de ficção científica “The One” (estava prevista para setembro deste ano).
Isto a jeito de biografia muito breve, que em rigor teria início muito antes, em Alhandra, num grupo de teatro com o nome da obra maior de Soeiro Pereira Gomes. E é de teatro, sobretudo, que falámos hoje com Albano Jerónimo. Uma conversa interrompida pelo quase obrigatório tema da pandemia, que hoje parece ser o início ou fim de todas as frases.
Pandemia esta que lhe “veio complicar as contas” na soma dos trabalhos internacionais; que “trouxe à superfície o caráter das pessoas”.
A mesma pandemia que o obrigou, e à sua companhia, a Teatro Nacional 21 (TN21), a “otimizar” as escolhas para continuar a chegar às pessoas; que fez cair “muitas máscaras que existem nas nossas vidas”. É o caso de a “Festa de 15 anos”, peça que hoje estreia-se no Teatro Carlos Alberto (TeCA), no Porto, e que retrata a história de uma família portuguesa, rica e com poder político que, por necessidade, decide adotar um jovem brasileiro indígena para ser dador da filha mais nova e herdeira do património.
Com texto e encenação de Mickaël de Oliveira e do dramaturgo brasileiro Diego Bagagal, “Festa de 15 anos” cruza o privado e o público, interroga as heranças da colonização, o seu património moral e o fetichismo face às minorias. Trazendo um ritual comum para assinalar a transformação de uma jovem rapariga em mulher, a peça explora ainda a sexualidade e a identidade de género.
"Festa de 15 Anos" sobe ao palco do TeCA esta quinta e sexta-feira, às 19h00; e sábado e domingo, às 10h30. Pouco tempo em cena, lamenta. Pouco tempo para o ator, para o investimento, "mas sobretudo para aquilo que o público merece".
Segue-se Loulé (19 de fevereiro), Guimarães (27 de março) e (7 de maio) em 2021.
Que festa é esta que é pretexto desta conversa?
Uma festa de 15 anos, repleta de tragédia, de horror. Um texto da nova dramaturgia contemporânea, desenvolvida pelo Mickaël de Oliveira em parceria com o Diego Bagagal. É a festa de uma família rica portuguesa que decide adotar um jovem brasileiro indígena e tirar proveito dessa adoção para outros fins. Numa espécie de baile de debutante, este novo membro é apresentado à sociedade. Durante esta festa, as coisas começam a correr mal, vêm à superfície tiques da família abastada. Tiques neocolonialistas, tiques deste património moral que todos nós, de certa forma, temos. Tudo isto se vai desenvolvendo até chegar a um clímax de tragédia.
Ainda vestimos o uniforme do Ultramar, temos o exemplo do Bruno Candé. Mas acredito no futuro, sou uma espécie de otimista cético.
A narrativa é inspirada no cinema gore e vem na senda do trabalho que o Mickaël de Oliveira já havia feito em "A morte de Sócrates", e onde o Albano reinventava a figura de Sócrates. Como é que se traz o terror para o teatro?
Um bocado como no humor, através de mecanismos e de referências extremadas, sejam visuais ou pela linguagem. E criando um universo que estimule o público a olhar de uma outra forma, e com um certo distanciamento, para determinados acontecimentos ou problemáticas.
A peça propõe-se repensar as dinâmicas neocolonialistas na sociedade do hoje. Onde é que elas se manifestam e qual o papel do teatro nesse exercício?
Ainda vestimos o uniforme do Ultramar, temos o exemplo do Bruno Candé [ator assassinado em julho]. Mas acredito no futuro, sou uma espécie de otimista cético. Acredito num mundo melhor através da cultura, através da arte. Acredito que uma educação pela arte nos irá libertar dessas amarras que ainda estão presas aos nossos cabelos. Vivemos num país saudável, mais ainda estamos presos a uma história.
Vivemos num país que é racista, que é homofóbico. Não comparando com outros países que são muito mais agressivos que o nosso, mas sim, infelizmente acho que ainda vivemos essa realidade. Contudo, a nossa geração, a tua geração, deve ser responsável por um amanhã plural, híbrido e diverso. E o foco deve estar educação e na cultura. Não percebo como nunca se articulou uma estratégia entre o Ministério da Cultura e o da Educação. O melhor sítio para atacar é nas escolas, temos de formar seres universais na perspetiva do respeito, universais na perspetiva da diversidade e da pluralidade. A solução, se há alguma, é pela educação e pela cultura.
Pegando na formação pela arte. É o que têm feito com a companhia Teatro Nacional 21?
Acreditamos que o nosso trabalho só fica completo quando fazemos um trabalho paralelo àquilo que é apresentado em espetáculo. Nesse sentido, temos desenvolvido várias atividades, masterclasses, workshops, onde desenvolvemos vários temas. Relacionados diretamente com os espetáculos, ou não. Recentemente dei uma formação relacionada com o erro e o com o defeito. Até que ponto é que o erro nos define enquanto indivíduos numa sociedade? Temos procurado poluir novas cabeças com novas atitudes. Falamos de jovens com 16-19 anos a adultos com trintas. Em todos há uma enorme curiosidade e uma vontade genuína de querer aprender. Digo-o com um misto de comoção e orgulho. Percebemos a necessidade do nosso trabalho e a responsabilidade que é ter uma companhia de teatro.
Esta pandemia serviu para peneirar muita coisa e trouxe à superfície o caráter das pessoas
Conseguiram dar continuidade a esse trabalho nos últimos meses ou a pandemia veio colocar um travão no que estavam a fazer?
A nossa estrutura adaptou-se muito bem e conseguimos dar continuidade a este trabalho paralelo. Desenvolvemos três bolsas de apoio à criação para jovens que saíram do Conservatório no último ano. Porque acreditamos que se não não temos trabalho, nós atores profissionais que já estamos no mercado de trabalho há algum tempo, quem acabou de se formar muito menos terá uma oportunidade.
Tivemos algumas digressões, ora com o "Amante", de Harold Pinter, ora com o "Veneno", um espetáculo escrito pela Cláudia Lucas Chéu e encenado por mim. Sempre que vamos em digressão preocupamo-nos em desenvolver este nosso trabalho. A pandemia não nos bloqueou esse desejo ou a vontade das pessoas nos procurarem. Em vez de o fazermos numa sala mais pequena, fizemos num auditório. Neste caso em Famalicão, com alunos da ACE — Escola de Artes, que aproveito para dizer que fazem um trabalho fantástico. Digamos que a pandemia veio otimizar um instrumento, fomos confrontados com as nossas escolhas e tivemos de nos otimizar para continuar a chegar às pessoas.
Também posso falar do "Corpo de Helena", um texto do Paulo José Miranda. Fizemos questão de desenvolver um projeto de raiz, como se fosse para cena, mas online. Contratámos atores que estavam em Braga, Porto, Lisboa... Fomos buscar o nosso cenógrafo, o nosso desenhador de luz... Fizemos questão de manter a nossa equipa original como se fosse um trabalho para cena. Tentámos não cristalizar com esta pandemia, aproveitar as dificuldades e torná-las mais valiosas para o nosso trabalho. E o resultado foi brutal. Falar sobre isto orgulha-me imenso.
2019 foi um ano bom, com a estreia de “A Herdade" e com tudo o que o filme conquistou. As primeiras entrevistas de 2020 sinalizavam um ano cheio de novos projetos. Estamos em dezembro e pelo caminho ficou a estreia de “The One”, uma série na Netflix. E o que mais?
Ui, tanta coisa. Projetos de teatro, séries de televisão, cinema. Ficou tudo adiado. Ainda tive a sorte de fazer um filme com o Edgar Pêra, quase em modo guerrilha. Saíamos do hotel para o platô, e do platô para o hotel. Mais nada. "The Nothingness Club" é o nome do filme a partir da obra do Fernando Pessoa; eu faço o Álvaro de Campos. Foi incrível trabalhar com o Edgar Pêra.
Como é que se cria um Álvaro de Campo neste contexto de quarentena?
Com uma avidez e uma voracidade incrível. Este Álvaro de Campos é um animal. Estava mortinho por trabalhar e foi perfeito. Foi uma purga, quase. Apesar da atividade com a TN21, que foi incrível e deu muito trabalho... Queria meter o meu corpo em movimento e assim foi. Foi como ligar uma máquina, uma máquina pessoana. Estou muito curioso com o resultado.
O tempo que estamos em cena é pouquíssimo. É uma espécie de coito interrompido, queríamos mais. Quando sentimos que a dinâmica de público começa a solidificar-se, perde-se o elo.
Já há data para a estreia?
Acredito que neste ano que vem, mas vamos ver. Um bocado à imagem da Netflix, foi tudo protelado. Na Netflix estão à espera de uma melhor janela para poder estrear “The One”. À partida será para março, é o que está agora no papel. Vamos ver se se vai concretizar.
A par disto, [pelo caminho em 2020] ficaram espetáculos de teatro. Projetos que estavam falados, agendados, que pura e simplesmente deixaram de existir ou as pessoas que fizeram o convite nunca mais disseram nada. No fundo, esta pandemia serviu para peneirar muita coisa e trouxe à superfície o caráter das pessoas. Acredito que aquilo que ficou foi o que era importante, e aquilo que é importante para mim é este grupo de trabalho da "Festa de 15 Anos”. A amizade que tenho com o Mickaël de Oliveira há anos, este amor inacreditável e esta comoção que existe quando estamos em cena a ensaiar. Porque é um luxo incrível estar sem máscara em cima de um palco, a fazer aquilo que mais gostamos e a desenvolver o teatro e a escrita em português. É uma alegria quase infantil ir todos os dias trabalhar.
Por falar em máscara, ela é tradição em algumas festas de debutante e está também presente nesta peça. Dado o contexto atual, ganha algum simbolismo?
Ganha o peso que tem nessas festas, é um dos momentos altos da festa.
Como dizia antes, com a pandemia muitas máscaras caíram ou percebemos que muitas máscaras que existem nas nossas vidas são made in China. São fake, são de plástico. Este espetáculo traz à superfície essas máscaras, como um jogo com as personas sociais.
A peça estreia esta quinta-feira no Teatro Carlos Alberto, no Porto, onde está em cena até domingo, 13 de dezembro. Segue-se Loulé (19 de fevereiro), Guimarães (27 de março) e (7 de maio). Quatro dias em cena são suficientes para a vida de uma peça? Mais, o espaçamento entre datas não a pode prejudicar?
Como ator, acho pouco. Mas obedece, obviamente, a pensamentos programáticos sobre o teatro. Estamos a falar de uma programação desenvolvida pelos diretores dos teatros, que acreditam que este barbecue de espetáculos é interessante por se criar uma oferta múltipla para a comunidade. Estou em total desacordo com isso, mas vários teatros usam essa bitola. Para quê ter uma oferta múltipla todos os fins de semana ou semanalmente, com dois e três espetáculos diferentes? Vendo pelo ponto de vista do poder de compra dos espetadores, onde está aí o sentido de comunidade? Joga contra nós e contra o investimento que é feito. O tempo que estamos em cena é pouquíssimo. É uma espécie de coito interrompido, queríamos mais. Quando sentimos que a dinâmica de público começa a solidificar-se, perde-se o elo... e agora temos mais uma digressão daqui a um mês e meio.
Em relação ao tempo entre espetáculos. Eu gosto. No sentido em que há uma maturação daquilo que foi feito. Do espetáculo, das temáticas ou mesmo da própria realidade do objeto criado. Tudo fica muito mais sólido nos nossos corpos e nas nossas cabeças. Para nós e para os espetadores.
Ainda sobre o tempo em cena. Acho francamente escasso, para tudo. Para a relação com o público, para aquilo que tiramos daí, para o prazer. Mas sobretudo para aquilo que o público merece, que não são três ou quatro dias em cena. 'Epa, mas é o possível mediante as regras programáticas, orçamentais'. Pois, mas não é bom.
Os contactos que surgiram com "A Herdade", e foram alguns, mantêm-se. Estou neste momento a aguardar resposta para dois trabalhos muitos específicos, coisas bastante interessantes internacionalmente falando.
Sobretudo agora quando as salas estão a funcionar com capacidade reduzida.
Não só temos metade da lotação como a hora do espetáculo passa das 21h00 para as 19h00. Como ao fim de semana, dias fortes, a hora do espetáculo passa a ser às 10h30. Mediante isto tudo como é que não há uma alminha que pense: 'epa, vamos esticar o espetáculo mais duas semanas’?
Como é que se interpreta uma personagem como a deste pai às 10h30? Como é que se coloca esse 'chip'?
Ele já cá está. Pode ser às 10h30 como pode ser às 06h30. No sentido em que o que interessa é o que estamos a trabalhar. Como ator, tenho de estar preparado para fazer isto na rua, num cineatro, onde quer que seja. Não interessa, tenho de estar pronto. O público não tem culpa disso e enquanto profissional tenho de me adaptar. Essa tem sido a nossa atitude. Nossa, do meio. Dos agentes culturais deste país.
Voltando atrás no tema, à Netflix e a novos projetos internacionais. Depois de um interesse despertado pelo papel na “A Herdade", o timing perdeu-se com a pandemia?
É pertinente essa pergunta. Sim, e não. Quero acreditar que não. Os contactos que surgiram com "A Herdade", e foram alguns, mantêm-se. A título de curiosidade, estou neste momento a aguardar resposta para dois trabalhos muitos específicos, coisas bastante interessantes internacionalmente falando. Se já podiam ter acontecido este ano, sim. Mas por razões óbvias tiveram de ser adiados. A pandemia veio complicar as contas, mas o mais importante é que as pessoas não perderam o interesse. Acredito à mesma que sou um sortudo; trabalho muito, mas as oportunidades têm surgido. E quando elas surgem, trabalho ainda mais para as conseguir abraçar. A "A Herdade" potenciou, a pandemia afastou este lado mais imediato dos acontecimentos. Não acontecem agora, mas acontecem daqui a um ano. Há que saber esperar, não há grande hipótese.
Receia ficar preso ao papel do João Fernandes? Isto é, que outras personagens não se livrem de ser comparadas com ela?
Tive a sorte de fazer um Álvaro de Campos logo a seguir, a minha primeira grande personagem depois de "A Herdade". E sempre que tiver medo o único remédio é fazer outras coisas. Com trabalho as coisas vão-se esfumando. "A Herdade" foi uma oportunidade incrível, mas não passa disso. Não passa de um encontro feliz de pessoas, de timings, de vontades, e que resultou naquilo que resultou. Isso é maravilho, agora siga. Venham outras coisas.
O 'não' para mim está intimamente ligado ao saber o tamanho que o nosso corpo ocupa no espaço. A magia e a força do meu 'não' revela-se quando digo que sim
Numa entrevista antiga dizia que só faz televisão para poder fazer teatro. Nesta fase coloca como hipótese voltar a fazer novela? A pergunta não engaveta o género como um parente pobre da representação, mas como uma resposta a outro tipo de necessidades.
Nunca se sabe. Sou freelancer, e ser freelancer neste país... Não tenho nenhuma estrutura familiar rica que me possa descansar e estar em casa a coçar a barriga e a olhar para o ar.
Vamos por partes. A televisão não é, de facto, um parente pobre; é outro registo e uma outra forma de estar neste mercado de trabalho. Gosto de fazer televisão, nomeadamente o formato de novela, porque nos dá um ritmo alucinante, onde não há grande tempo para pensar. O que é interessante, a nível de trabalho puro e duro, de confronto com o texto. Dramaturgicamente falando é um confronto muito imediato. Não faço televisão há dois anos, e tendo em conta este momento de pandemia, de escassez de trabalho e de dinheiro, já me passou pela cabeça 'agora dava jeito fazer uma novela'. Porque isso significava ter uma almofada bem simpática no final do mês. Mas acredito que a vida me empurra sempre para coisas novas. E se isso não aconteceu até agora, é porque outra coisa está à minha espera. O fundamental para mim é não deixar de trabalhar e não perder o foco na capacidade de trabalho que tenho. Depois, acho que as coisas se desenvolvem a partir daí. Guardo um enorme carinho e um enorme respeito por todas as pessoas que fazem televisão neste país. Eu que sou um ator de teatro, com toda a minha educação baseada em teatro, de facto, fazer televisão permite-me estar uns meses sem pensar em dinheiro. Não há aqui nenhum sentimento mau ou mercantilista em relação às novelas. Ter um pé de meia que permita ter uma liberdade artística de escolha é um cenário absolutamente ideal.
Por falar em escolhas, quando é que aprendeu a dizer que não?
Foi tarde. Aprendi a dizer que não muito tarde. Nesta profissão desde muito cedo que fui um labrador; não tinha noção das minhas limitações. Um labrador quando vê uma saca de comida não consegue parar, e não tem noção que o estômago pode rebentar. O não para mim está intimamente ligado ao saber o tamanho que o nosso corpo ocupa no espaço. A magia e a força do meu não revela-se quando digo que sim. Hoje em dia, para estar longe das pessoas que amo, e para fazer outra coisa que gosto na vida, tem de ser algo que valha a pena. Para isso, tenho de dizer que não algumas vezes. É algo que se vai aprendendo ao longo da vida. Neste espírito de labrador, que se vai diluindo, e ainda bem, hoje em dia estou muito mais tranquilo. Até digo mais, já houve pessoas com quem me cruzei a quem já deveria ter dito que não e não disse. Hoje em dia faria as coisas de maneira diferente.
"Filho, tens de saber o lugar que ocupas". Repete muitas vezes esta frase da sua mãe. Que lugar é que hoje ocupa?
O lugar do tamanho do meu corpo, que não sei ainda qual é. Tenho 1,91m, mas todos os dias tento encaixar-me numa dinâmica de grupo, numa temática, naquilo que o realizador ou o encenador me pede. O lugar que ocupo é o lugar do outro, se calhar. Aquilo que eu faço não é sobre mim, sou um agente da comunicação. Gosto de pensar em mim como alguém que se revê no olhar e na cabeça do outro.
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