Damas deslumbrantes
Meninas espampanantes
Senhoras excitantes
Preliminares
A inscrição pertence à Pensão Amor, numa das suas velhas paredes com muitos segredos não confessados e bem guardados, o local escolhido para a peça de teatro “Alice no País dos Bordéis”, uma experiência imersiva, interativa, ousada, picante e saciante (ou não) que, e dado o sucesso que tem despertado, continuará em cena até 10 de setembro. Para maiores de 18 anos, da autoria de Roger Mor, jornalista que optou por ser contador de outras histórias. A peça de 25 minutos – ou “shot” de teatro, como a define o próprio, remonta aos anos de 1960, mais precisamente ao dia em que António Salazar, “esse maroto que quer fechar os nossos bordéis”, emite a ordem de proibição da prostituição. Mas como o fruto proibido é sempre o mais apetecido, Alice, ousada e insinuante, não deixa por terra as maravilhas que sempre foram providas na Pensão Amor e decide continuar a servi-las.
Este é o mote para o monólogo rico e hilariante de Alice, a meretriz e nova madame da Pensão Amor, brilhantemente interpretado pela atriz Sofia de Portugal e, alternadamente, por Francisco Beatriz. Porque Alice, a Louca, “tem um comportamento imprevisível e nunca sabemos qual a personalidade que se vai manifestar nesse dia, se o seu lado mais feminino, se o seu lado mais masculino”, o autor optou e como conta ao 24, oferecer ao público as suas duas facetas. “Apesar de o texto ser muito semelhante, são duas peças diferentes” sublinha, e a boa notícia é que o público não se tem contentado em ver apenas uma das duas interpretações. É que, e tal como o sexo, quando é bom, repete-se e quer-se mais e, de preferência, diferente.
O “shot” custa seis euros, está ao alcance de todos os bolsos, mas não seríamos justos se não confessássemos que, sozinho, deixa alguma água na boca. E para os que não se deixam ficar pelos preliminares, a experiência continua, em modo de degustação, não fossem o sexo e a comida dois eternos amantes. Num ambiente exclusivo, construído à medida dos apetites de Alice e dos seus botõezinhos (o público), os comensais afortunados são convidados a provar, (por 69 euros no total), iguarias várias, numa mostra gastronómica cujo objetivo é matar qualquer que seja a fome e convidar a novos repastos.
Se “onde manda o amor, não há outro senhor”, o menu “Fecha as pernas e abre a boca”, de comer e chorar por mais, “é da inteira responsabilidade do Guilherme Spalk, o qual colaborou também na criação do storytelling”, diz Roger Mor.
O menu e a sua degustação constitui o Ato II da experiência. O Chef começa por convidar os comensais a “abrir a [sua] gaveta secreta”, em jeito de “entrada”, com um kit de maquilhagem comestível onde não falta um batom, blush, esponja e boião de creme, mas cujos ingredientes não vamos relatar ao detalhe (senão onde ficava a surpresa essencial à sedução?).
Mas, ainda que deixando entreabertas as cortinas de veludo que nos fazem querer espreitar, damos um cheirinho deste manjar exótico ou erótico, não só servido pelo Chef, mas também pela sua jovem e entusiasta equipa. Composta pelo tímido António, pelo circunspecto Miguel e pela doce Joana, o público-botãozinho é assim convidado a alternar sabores e experiências tão variados como um bom linguado – o french kiss obrigatório em qualquer história de amor e luxúria -, um revigorante sangue de touro e a confiar, depois de vendado, a pôr “Aquilo na mão”, isto depois de já ter colocado a “Boca naquilo”.
Os momentos de degustação são oito, e fica a promessa de um faisão que nos mata o “Desejo Carnal”, com o festim a terminar em sobremesa, como geralmente acontece no curso das refeições, com um inesquecível “Orgasmo”… Mas não nos alonguemos, pois melhor que imaginar é mesmo experimentar e não se mata a fome com letras. Queremos, apenas, abrir-lhe o apetite.
ATO I – Fecha a boca e abre as pernas
Cais do Sodré. Lisboa. 19 de setembro de 1962. Salazar proíbe a prática da prostituição.
Até então uma profissão praticada liberalmente pelas “matriculadas” - com “cédula de inspeção” que “eram obrigadas a ter para poderem exercer e que tinha de ser carimbada semanalmente no Desterro” – é na passagem à clandestinidade que conhecemos Alice. Mais um detalhe elucidativo do cuidado colocado na produção desta peça-experiência é a oferta de uma réplica destas cédulas de inspeção como bilhete de entrada a quem assiste a “Alice no País dos Bordéis”.
A ideia de escrever esta peça-shot surgiu “na sequência da investigação que estava a desenvolver para a criação do Museu Erótico de Lisboa, que deverá instalar-se no edifício da Pensão Amor e que será um conceito altamente inovador”, e com “novidades para breve”, revela Roger Mor. “A pesquisa, que foi assente em bibliografia e em muitos testemunhos pessoais de quem habitava o Cais do Sodré, trouxe-me tantas histórias reais que me inspiraram a escrever um texto que retratasse o lado erótico-sexual da profissão das ‘matriculadas’, mas que explorasse, sobretudo, o lado sociológico desta realidade”, acrescenta.
Dada a enorme riqueza histórica e social deste fenómeno, e aproveitando o longo e recheado pretérito da Pensão Amor, que ao longo de décadas albergou as meretrizes e muitos ávidos clientes, em particular os marinheiros que atracavam no Cais do Sodré vindos dos quatro cantos do planeta, Roger Mor escreveu de propósito para o espaço em causa e “com base em histórias de vida que por lá passaram ou que marcaram a vida do Cais do Sodré”, numa homenagem “ao passado e às mulheres que ali representaram autênticas histórias de sobrevivência”.
Alice é assim uma sobrevivente, com um decote tão ousado quanto as suas vontades, que resolve ir contra as ordens do Estado Novo e que está a recrutar ‘botõezinhos’ para alimentar a herança deixada pela Madame, desta vez em modo clandestino, como se querem muitos amores. Para tal, os seus ‘botõezinhos’ têm de saber a sua história – desde o primeiro livro que leu – o próprio “Alice no Pais das Maravilhas” que a inspira a “falar com coelhos”, a “comer cogumelos”, a ficar “gigante” e a ser “amiga da Dama de Espadas” – e também conhecer os motivos que justificam o facto de serem elas “as verdadeiras embaixatrizes desta cidade”.
Ao contar histórias íntimas, recheadas de humor e condimentadas com linguagem explícita, Alice é uma mulher carregada de sensualidade, que acaricia, com ar maroto, o “querido António”, bate com o seu leque nos “botõezinhos” espalhados pela sala, seduzindo-os com uma enorme e contagiante descontração e naturalidade. Para a atriz Sofia de Portugal, esta é uma “experiência de libertação”, um “alçapão que se abre” e que pode ir, em alguns casos, do choque ao desbragamento.
E a verdade é que não é difícil atingir essa libertação num cenário que não só aproveitou a decoração original da Pensão Amor, que preserva muitos artefactos e objetos da época, a par de camas, armários, cadeiras e espelhos dos tempos em que o prédio era uma casa de prostituição, mas também onde o público circula entre as duas assoalhadas que compõem o “bordel” de Alice. Todavia, a peça exigiu também que o espaço “fosse temperado com objetos escolhidos em função da pesquisa”, como afirma.
Roger Mor conta ainda que “quando o prédio da Pensão Amor foi comprado pela Mainside, empresa responsável pela criação da Lx Factory ou Rio Maravilha, entre outros, a antiga pensão de prostitutas continuava repleta de peças ‘originais’ da altura, as quais abriram a oportunidade de contar histórias também sobre elas mesmas”.
Assim, entre os perfumes de Alice, a fotografia de António Salazar (com a marca de uns lábios a batom nos seus próprios), o retrato da anterior Madame, do seu marido Alfredo, o proprietário da pensão, ou de Marilyn Monroe, somos ainda convidados a espreitar o “armário dos perdidos e achados” – com luvas, gravatas ou camisas –, o guarda-roupa da meretriz e uma panóplia de objetos variados que não poderiam faltar em tão lascivo cenário. Uma chamada de atenção também para o solene quadro que ostenta a famosa portaria número 69035, destinada a aumentar o policiamento em zonas então consideradas “quentes” e que estabelecia multas para os “maus costumes” que iam desde 15$00 para quem fosse apanhado com a “mão naquilo” até 150$00 para os tinham a ousadia de colocar a “língua naquilo”, para além de estes últimos serem presos e fotografados.
E é com muito mais para contar que nos aproximamos do Ato II. Afinal, em “Fecha a boca e abre as pernas”, o “momento para ouvir os segredos escabrosos do passado de Alice e das personagens que a rodearam” é, para os que têm a sorte de poder seguir com a experiência, apenas um verdadeiro preliminar para o império dos sentidos que se segue. Já com alguma fome.
ATO II – Fecha as pernas e abre a boca
Não pense (ou então pense) o leitor que o segundo ato - que corresponde ao nome dado ao menu criado pelo Chef Guilherme Spalk -, é apenas uma questão de matar a fome depois de despertado o apetite. Na verdade, e como explica Roger Mor, este segundo momento “retrata o cuidado que as meretrizes, até à década de 60, tinham em saber-se comportar”. A par das inspeções de saúde que periodicamente eram obrigadas a cumprir, a verdade é que “a imagem de decadência da prostituição que é comum termos hoje está longe da realidade que muitas das meretrizes viviam em finais do Século XIX, inícios do século XX”, assegura.
A ideia de se aliar a este “shot” uma experiência gastronómica completa e complexa levou também Roger Mor a ter o seu primeiro projeto com Guilherme Spalk. Com apenas 27 anos, mas com uma carreira já considerável, nacional e internacional, afirma o autor que trabalhar com este chefe lhe deu “um especial gozo devido à sua capacidade criativa para olhar para a peça e conseguir criar uma experiência que inúmeras vezes nos remete à história de Alice”. E é isso mesmo, pois a experiência gastronómica que aqui aparece como o Ato II da “Alice no País dos Bordéis”, oferece a cada um dos participantes o seu próprio protagonismo: “em vez de ser a Alice a protagonista, é cada um dos botõezinhos que procura uma vida de prazer”, acrescenta ainda o autor.
E que prazer gustativo. Nos oito momentos idealizados para matar a fome – ou para a estimular – aos botõezinhos de Alice, tudo foi pensado ao pormenor. Os preliminares incluem, entre outros ingredientes, mexilhão e queijo de Azeitão, despertam-se os sentidos com foie gras e ceviche, acende-se um fogo de paixão com atum e ruibarbo, até que se chega ao famoso beijo francês devidamente acompanhado pela afrodisíaca ostra. Depois da boca naquilo picante, que achamos por bem não revelar, é tempo de o desejo se tornar mais carnal, com faisão e amêndoa para trincar e saborear. De olhos vendados, é chegada a altura de se receber aquilo na mão, preparando-se terreno para um doce orgasmo de sobremesa.
Com spoilers supostamente demasiados, acredite o leitor que muito mais há para se deleitar. Todos os momentos são devidamente acompanhados pelo Chef Guilherme e pela sua equipa de três cozinheiros, que nos vão contando as histórias - e remetendo para momentos particulares da própria História - que levaram à escolha e à confeção de cada uma das iguarias. E a aprovação do público tem sido unânime.
Como assegura o autor - e nós comprovámos - “as reações estão a ser incríveis, sobretudo para quem vive a experiência completa, peça e degustação”.
Ao SAPO24 afirma também “que quem vai ver a peça adora, em particular porque quer a Sofia de Portugal, quer o Francisco Beatriz são dois atores absolutamente incríveis, e é impossível ficar indiferente à sua capacidade de representação, canto e improviso”. É que improvisar e ser diferente todos os dias é também a palavra de ordem neste “teatro imersivo”, pois é “o público que reescreve diariamente a história com a sua atitude e capacidade de interação”. (Ah, ainda não vos dissemos? Os ‘botõezinhos aqui somos nós, os espetadores que somos aqueles a quem a Madame se dirige).
Já para os que têm tido oportunidade de acompanhar as sessões especiais, que incluem o jantar, “é o efeito surpresa que deixa as pessoas a falar nesta experiência”, o que tem contribuído e muito para esgotar as reservas.
A viver um sucesso crescente, a peça "Alice no País dos Bordéis", inicialmente em cartaz até 6 de agosto, foi já prolongada até 10 de setembro.
Para o futuro, e sendo este apenas um dos vários projetos a que está ligado atualmente, o autor estreante tem já várias propostas “irrecusáveis” na manga, mas levanta apenas o véu sobre uma delas: o seu primeiro guião para cinema sobre A Preta Fernanda, “outra história verídica que encontrei da mais famosa prostituta de Lisboa em finais do século XIX, que acompanhava Eça de Queiroz ao Teatro da Trindade e que foi a única mulher a aplaudir Almada Negreiros no dia em que apresentou o manifesto futurista no São Carlos”. “Uma história genial com todos os ingredientes para um grande filme”, assegura o criador de Alice. Aguardemos. Roger faz atualmente parte do departamento de pesquisa e investigação da Bro Cinema, uma produtora de cinema que “está a atingir umas proporções incríveis em termos internacionais” e onde é basicamente responsável por procurar histórias para cinema ou documentários.
Até lá, pode ver Alice no País dos Bordeis, em várias sessões, de quarta-feira a domingo, até 6 de agosto e de domingo a terça-feira até 10 de setembro.de Terça a sábado até 10 de setembro
Até lá, pode ver Alice no País dos Bordeis, em várias sessões, de quarta-feira a domingo, até 6 de agosto e de terça a sábado até 10 de setembro.
Local: Pensão Amor
Morada: R. do Alecrim 19, 1200-014 Lisboa
Reservas: 962 650 101
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