A noite estava fria, mas era suportável, tendo em conta a altura do ano. Após uma breve reflexão, decidiu que iria deambular pela cidade até de manhã. Era demasiado forreta para pagar o que os hotéis cobravam por um quarto. E, pensando bem, teria de aguentar apenas seis ou sete horas até conseguir recuperar as chaves de casa. Há coisas piores.

Foi andando, primeiro pelas avenidas e alamedas mais largas da cidade, mas logo abraçou as outras mais estreitas e sombrias que, por terem menos gente e menos decorações luminosas, lhe agradavam mais.

Àquela hora da noite, as ruas adquiriam um aspeto diferente, surpreendente para ele. Era raro estar fora de casa até tão tarde. Era como se visse a cidade pela primeira vez.

Ao fim de um bocado, desembocou numa praça sem saída que não se lembrava de ter visto antes, mas talvez fosse o efeito de estranheza causado pela luz reflexa e pela escuridão.

A arquitetura vitoriana das casas fê-lo aproximar-se. Gostava daquele tipo de mansões senhoriais, apesar de aquelas parecerem estar, há muito, votadas ao abandono. Uma após a outra, todas emanavam o charme e altivez de outras eras. Não compreendia como podiam ter sido deixadas assim a apodrecer.

Foi avançando, observando as fachadas, muros e portões trabalhados, como se estivesse num museu, até se aperceber de que na última casa, ao fundo, havia luz e movimento.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Não se podia dizer que Jaime fosse um homem curioso, mas, por algum motivo, não pôde deixar de se aproximar.

À entrada de um palacete com ar decrépito, um grupo de mascarados fazia fila para entrar. Foi atraído pelo facto de os trajes que usavam serem de luxo, bem como as máscaras, adornadas com pedras preciosas, pérolas, arabescos cor de ouro ou prata e penas de pavão. Nunca tinha visto nada semelhante.

Uma mulher com uma sumptuosa máscara veneziana virou-se para trás, deitando-lhe um olhar de surpresa.

— Não o tinha visto — desculpou-se, atrapalhada. — Entre, a festa não começa sem si.

Não se atreveu a responder. As palavras dela encerravam um tom enigmático que tinha tanto de submisso como de tirano. Era óbvio que o estava a confundir com outra pessoa, mas não se sentiu capaz de desobedecer. Apesar da máscara, podia ver que se tratava de uma mulher extraordinariamente bela.

Entrou sem ser capaz de a encarar novamente.

Para sua surpresa, o interior do palacete em nada se assemelhava ao exterior. Um salão sumptuoso, capaz de fazer corar de vergonha muitos palácios parisienses, estendia-se por uma área com mais de trezentos metros quadrados. As paredes eram forradas por um tecido aveludado cor de vinho com desenhos delicados em tons marfim. Sobre os móveis, dezenas de candelabros iluminavam o espaço com a luz bruxuleante e bailarina de centenas de velas.

Avançou, levado pelo deslumbramento dos incautos, que como Ícaro se arriscam a ficar queimados, atraídos pela perigosa imagem de um sol que não conhecem.

Estava tão absorto na admiração da sala que demorou a perceber que todos os mascarados o fitavam.

Primeiro pensou que era natural, afinal ele era o único que tinha o rosto descoberto, e também a roupa o denunciava: jeans pretos e sobretudo preto (Jaime só vestia preto), em vez de um traje fantasioso ou de época. Mas depois teve a estranha sensação de que baixavam ligeiramente os olhos e a cabeça quando ele passava, como se o fizessem em sinal de respeito.

Um homem com um fabuloso traje e máscara de corvo esticou-se na sua direção e, com um sorriso indecifrável, sussurrou-lhe ao ouvido:

— Obrigado.

Jaime sentiu-lhe a respiração quente e húmida por baixo do bico e penas negro-azulados, e isso incomodou-o terrivelmente.

Preparava-se para sair quando pôs os olhos numa máscara de arlequim dourada, abandonada num canapé de veludo azul.

Instintivamente, sem saber por que raio o fazia, precipitou-se para ela e, assim que a colocou, sentiu um súbito conforto, como se até àquele instante tivesse estado nu e só agora se cobrisse.

— Está tudo do seu agrado? — a voz sedutora pertencia à mulher da máscara veneziana.

Como uma serpente na areia, tinha-se aproximado sem ele dar por nada.

— Penso que sim — respondeu, abalado. — Não sei bem dizer.

— Vejo que há alguma coisa a preocupá-lo — continuou ela na sua voz melosa.

— Coisas de trabalho. Nada que não se resolva.

A mulher foi-se chegando mais, até estar a um palmo da cara dele.

— Incomoda-o. Essa coisa do trabalho. Está a incomodá-lo como um espinho na planta de um pé.

— Não diria tanto. Tenho a situação sob controlo.

— Acha que está a fazer tudo o que pode para eliminar esse seu problema?

— Não é um problema meu. É um assunto de trabalho.

— Inquieta-o. Domina os seus pensamentos.

— Não. Já lhe disse que não — retorquiu, agressivo. — Porque é que está a insistir?

Ouvia-se uma música ao estilo piano bar, com a bizarra característica, que Jaime só nesse instante reparou, de as notas serem repetidas e marteladas, tirando toda a fluidez à melodia.

— Não devias ter segredos comigo, Jaime. Eu estou aqui por ti — soprou-lhe a mulher, tratando-o subitamente por tu, numa tonalidade de voz mais profunda.

— O que é suposto isso querer dizer? Não a conheço de lado nenhum.

— Mas eu conheço-o. E isso é o mais importante, não lhe parece?

Livro: "Aquilo que o Sono Esconde"

Autor: Mafalda Santos

Editora: Suma de Letras

Data de Lançamento: fevereiro de 2025

Preço: € 16,95

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— Quem é a senhora? Não me lembro…

— Devia concentrar-se no futuro. O passado está fora do seu alcance e mesmo o presente pode verificar-se bastante duvidoso.

— Não percebo…

— O poder que tem nas mãos vem com uma responsabilidade. Vai descobrir.

— Vou-me embora — anunciou, nervoso.

— Espere — a mulher agarrou-o pelo pulso. — A festa ainda mal começou. Fique comigo. Não tem onde dormir esta noite.

— Como é que sabe disso? — inquiriu.

— Não se assuste, foi você mesmo que mo disse.

— Não lhe disse nada — contestou, irritado.

A mulher sorriu. Tinha os lábios pintados de vermelho e uns dentes perfeitos.

— Há coisas que se dizem sem falar.

A música do estranho piano-bar começou a evoluir para uma sonoridade diferente, uma orgia de instrumentos que produziam uma espécie de jazz descontrolado e psicótico.

Um empregado, de smoking e máscara de cavalo, aproximou-se com uma bandeja e a mulher retirou duas bebidas.

— Beba — ofereceu-lhe. — Vai ajudá-lo a descontrair. Num gesto que pretendia ser de afronta, Jaime engoliu, de um só trago, a bebida de aspeto sofisticado. Vodka. Não era a sua preferida, mas conhecia-a bem. Antes que o empregado se afastasse, retirou outra taça da bandeja.

A música estava cada vez mais alta.

— Não me vai dizer de onde é que nos conhecemos? — perguntou.

— Não nos conhecemos. Essa é a beleza de tudo isto. Nesse momento, como um murro, sentiu o primeiro golpe.

Uma dor aguda no estômago, um calor a subir-lhe pelo peito.

Como uma serpente na areia, viu a mulher da máscara veneziana ao fundo da sala. Era incrível a rapidez com que se tinha movido de um ponto para o outro. Quis ir ao encontro dela, mas uma tontura fê-lo ficar onde estava.

A música estava cada vez mais alta e absurda, com ritmos tribais, selvagens, insuportáveis.

As ondas de dor iam e vinham, com espaçamentos cada vez menores, queria sair, mas não conseguia mover-se. Transpirava profusamente e sentia a cabeça prestes a explodir. Quis gritar, mas da boca aberta não saiu um único som.

Do outro lado da sala, a mulher da máscara veneziana acenou-lhe, balançado pausadamente os dedos separados. O ar era quente e saturado, seria uma questão de tempo até deixar de respirar.

Sentia o chão mover-se debaixo dos pés, desenhando círculos e espirais, e, por muito que tentasse manter-se à tona, havia uma força centrípeta e inflexível que o sugava para aquele exato lugar. Os restantes convidados pareciam não sofrer com este tumulto, dançando energicamente no centro da sala, num meneio libertador que mais parecia uma luta para entrar ou sair de um transe, ou um ritual primitivo de convocação dos elementos.

Fechou os olhos para tentar controlar-se. Pensou no processo da paralisada e no milhão que precisava evitar que recebesse. Esse pensamento fê-lo recuperar a confiança. Era a sua função no mundo, a sua palavra a dizer. Sentiu o coração a regressar ao seu compasso normal de adágio, e seguro de se conseguir libertar, abriu os olhos.

Os joelhos perderam força e as pernas tiveram de invocar músculos inesperados para evitarem que Jaime desabasse.

No centro da sala, dançando em frenesim, os convidados tinham-se transformado em coisas metade humanas, metade bichos, como criaturas condenadas à danação eterna.

Mulheres com cabeça de tigre, de cobra ou de raposa, homens-javali, com ramos cascudos no lugar de braços, repletos de folhagem e pontas aguçadas.

Algumas destas criaturas fornicavam ao ritmo frenético da música, outras lutavam como feras que eram, usando dentes e garras.

Duas mulheres com tronco e cabeça de hiena vieram buscá-lo, fazendo com que o barulho dos seus sapatos de salto alto e o da barra de seda dos seus vestidos a arrastar pelo chão se sobrepusessem a todos os outros.

Jaime tentou debater-se, mas já nem os olhos conseguia fechar. Vão devorar-me, pensou. Viu-se deslizar para o centro da sala e subitamente todos os olhos se viraram para si.

A música parou sem se fazer notar. Quando Jaime deu por isso, já não se ouvia, como se nunca tivesse de facto tocado.

À medida que se aproximavam, as criaturas olhavam-no com curiosidade e espanto. Formavam agora um muro bizarro, com- posto por hastes, presas e orelhas, pelagens de diferentes cores e padrões, que se fechava em seu redor.

Olhou para cima. No teto, um enorme lustre de cristal com centenas de peças, cintilava todas as cores do universo. Concentrou-se numa delas que, em forma de pera, oscilava como um pêndulo de Foucault, capaz de medir, e, quem sabe até, talvez inverter a rotação da terra.

2

A primeira coisa que sentiu foi frio nos pés, se bem que chamar frio àquilo era um eufemismo inaceitável. Tinha os pés gelados, rígidos como pedra, o que lhe causava uma dor horrível. A segunda coisa que sentiu foi vento a fazer a gola do sobretudo bater-lhe no pescoço como um chicote.

Abriu os olhos. Reconheceu imediatamente o lugar. Tinha amanhecido e havia cerca de duas dezenas de pessoas a deambular por ali. Essencialmente famílias com crianças pequenas, que invariavelmente o olhavam com receio, ou apenas com o desdém que sobra dele, quando passavam e viam os seus pés sujos e descalços.

Estava sentado num banco de jardim do parque mais movimentado da cidade. Não fazia ideia de como tinha ido ali parar, ou como raios tinha acabado sem sapatos e meias.

Olhou para o relógio: nove horas e dezassete minutos. O sol já ia alto. Lembrava-se da festa, do palacete e dos mascarados, e de como tudo aquilo tinha perdido o controlo, mas estas memórias figuravam-se-lhe difusas e distantes. Era óbvio que lhe tinham metido alguma coisa na bebida. Lembrou-se da mulher da máscara veneziana, do seu batom vermelho e dentes perfeitos, e de como se aproximava e se afastava como uma serpente na areia. Pensou no processo da mulher paralisada. Irene, ela chamava-se Irene.

Sentia-se confuso. Imagens da noite passada assaltavam-no numa sucessão de flashes, planos apertados de pormenores, reta- lhos do intangível.

Um miudito, parado a uma dezena de metros, apontou para ele e segredou alguma coisa ao pai. O homem, que vestia um fato de treino de marca, deitou-lhe um olhar destemido e segredou alguma coisa à mulher, que, ato contínuo, brindou Jaime com a mesma expressão de desconfiança. O miúdo não parava de apontar.

Jaime detestava que o olhassem assim, e sem sapatos e meias sentia-se completamente nu.

Levantou-se e lançou-se pelo parque abaixo, sem olhar para trás. A primeira coisa que tinha de fazer era parar numa sapataria. Não podia entrar no edifício da seguradora de pés descalços.

Nem precisava de se desviar, o que não faltava eram lojas pelo caminho. Parou diante de uma montra que anunciava sal- dos até setenta por cento, em letras garrafais. Escolheu umas botas de couro, com sola de borracha. Era o tipo de coisa que nunca passava de moda e estavam a bom preço. Pensou que era uma compra inteligente, tinham ar de aguentar bem o rigor do inverno, iam durar bastante tempo. Seria a prenda que daria a si próprio neste Natal. Com o trabalho, ainda não tinha tido tempo para pensar nessas coisas.

Felizmente, não tinha deixado a carteira junto às chaves, nem a perdera na mansão dos horrores da noite passada. Que raio se tinha passado ali, afinal?

Chegou à seguradora faltavam poucos minutos para as dez da manhã. Foi uma sorte ainda encontrar alguém. Bem podia agradecer a imundice em que os colegas tinham deixado o quarto piso; as mulheres da limpeza tinham demorado mais duas horas do que o costume a limpar e a deixar as coisas arrumadas.

O conjunto de chaves lá estava onde o tinha deixado, entre a janela e o computador. Lembrou-se do pesadelo com o carro prateado.

Aquela tinha sido, de longe, a noite mais estranha de toda a sua vida.

Decidiu imprimir o processo da paralisada, Irene, de quarenta e cinco anos, e ainda o despacho do juiz e os e-mails do advogado. Assim como assim, não tinha planos para os feriados, teria mais que tempo para adiantar trabalho no computador de casa, ler cada linha calmamente, até encontrar uma brecha por onde pudesse entrar e destruir o caso.

Sim, isso ia fazer-lhe bem.

Sentia-se estranho. Poderia pensar-se que era o corpo a vingar-se pela noite de copos, afinal não estava habituado a beber assim, mas não era isso. Aquilo que sentia não era exatamente uma má disposição, nem tão pouco se podia dizer que fosse físico. Era mais uma sensação. Como uma hipersensibilidade a todas as coisas.

Havia de passar.

Meteu as folhas, ainda quentes, numa pasta de cartão com o logótipo da seguradora e saiu.

Lembrou-se de que não comia há mais de quinze horas e, em simultâneo com este pensamento, foi atingido por uma fome avassaladora e irrequieta. Na primeira pastelaria que encontrou, devorou três bolos, uma tosta mista e dois leites achocolatados, depois passou por uma churrascaria e pediu dois frangos, batatas e um pão rústico para levar. Sentia-se capaz de comer tudo o que lhe pusessem à frente. Nunca tinha sentido um apetite assim.

Finalmente em casa, despiu-se e entrou para o duche. Estranhou a necessidade de temperar a água. Por norma, gostava dela bem quente, quase a queimar, virava a torneira toda para o lado que tinha a marca vermelha e ficava ali até a pele ganhar o mesmo tom. Mas daquela vez não. Assim que o primeiro jato quente lhe tocou, desviou-se como se tivesse levado um choque elétrico. Foi virando a torneira para o lado da marca azul até a água estar apenas tépida, e só assim conseguiu tomar um duche minimamente satisfatório. Depois de limpar frango e meio, abriu a pasta e começou a ler.

Irene Saraiva, quarenta e cinco anos de idade, feitos dois dias antes do acidente. Conduzia um Opel Astra cinzento de 2009, eram vinte horas e sete minutos, chovia…

O telefone tocou. Jaime detestava ser interrompido quando estava a trabalhar.

— Sim? — atendeu, secamente.

— Olá. Estás bem? — perguntou Isabel, do outro lado da linha, com a sua voz de coelho assustado.

— Tudo bem, estou por aqui. O que é que queres?

— Já te tinha tentado ligar para o telemóvel. Porque é que não respondes às minhas mensagens?

O telemóvel, porra. Tinha-se esquecido completamente do telemóvel, e a verdade é que não lhe pegava desde ontem. Tinha-o usado para procurar hotéis baratos nas proximidades, missão que se tinha revelado impossível.

— Ligo-te mais tarde — disse, desligando o telefone.

Procurou nos bolsos do sobretudo, mas não havia sinal do aparelho. Tê-lo-ia perdido na confusão da festa? Se tivesse caído, o mais certo era alguém o ter encontrado e entregado à organização. Ninguém ia querer ficar com aquele telemóvel velho e ultrapassado, com o ecrã rachado de cima a baixo. Ainda para mais, para o desbloquear, era necessária a sua impressão digital e um código de seis números.

Para outra pessoa, aquele telemóvel não apresentaria qualquer valor, mas, para ele, era da maior importância. Era lá que tinha os contactos pessoais das chefias, bem como de alguns clientes relevantes. Era imperativo recuperá-lo.

Calçou-se, vestiu o sobretudo e saiu em passo acelerado. Uma festa daquelas, um espaço assim com dezenas de convidados, era mais que certo que hoje lá estaria, em plena azáfama, uma qualquer empresa de limpezas, com várias mulheres a trabalhar por muitas horas. Ainda era cedo, não devia haver problema. Teriam certamente uma zona reservada aos perdidos e achados, não teria sido ele o único a esquecer-se de algo, no meio daquela confusão.

Virou para a praça sem saída. Era incrível como a luz do dia lhe retirava todo o charme. As moradias abandonadas, vistas

assim sem o filtro embelezador que a noite dá a todas as coisas, nada tinham de senhoriais, nem faziam ecoar a elegância de outras eras. Os jardins por detrás dos gradeamentos não passavam de um alto emaranhado de ervas daninhas, e as fachadas estavam cobertas de grafitis sem sentido, de palavras de ordem, de símbolos partidários e obscenidades.

Pensou em como lhe daria prazer castigar os idiotas que tinham feito aquilo. Era um tipo de gente que não conseguia suportar.

Desviou os olhos, incomodado, e avançou ao longo da praça em direção ao palacete.

Pensou nas palavras que ia dirigir à pessoa que o recebesse. Não queria que pensassem que era mais um imbecil que bebe demais e depois deixa tudo em qualquer lugar. Era incapaz de compreender aquele tipo de pessoas que perdiam a compostura e a noção do ridículo e se transformavam numa versão burlesca de si próprios. Não, diria com toda a calma que tinha estado na festa por breves momentos e que acreditava ter-se esquecido do telemóvel em cima do aparador. Isso chegaria para dissipar da imaginação da pessoa, qualquer imagem desprezível dele caído inconsciente num sofá, ou coisa pior.

Mas ainda não tinha chegado ao portão e já o coração lhe caíra aos pés. Um arrepio percorreu-o por dentro, agudo e penetrante como um relâmpago.

O palacete estava fechado. Correntes grossas e enferrujadas entrelaçavam-se nas grades do portão de ferro, as janelas estavam emparedadas com tijolos e cimento e nas escadas de granito branco que davam acesso à porta principal, rompiam ervas e abundavam dejetos de animais. Era impossível ter acontecido ali uma festa na noite anterior.

Recuou alguns passos e olhou em redor, para ter a certeza de que não se enganara na casa, mas não havia dúvida. Era aquele o palacete onde tinha estado, aquela a escada onde tinha visto pela primeira vez a mulher da máscara veneziana. Poderia descrever de memória cada recanto, cada móvel e cada objeto presentes no salão.

Preso à sacada da varanda principal, podia ler-se, por cima de um número de telefone, a palavra «Vende-se» em letras excessivas em tamanho e em cor.

Jaime sentiu as pernas fraquejarem. Seria possível ter sonhado tudo? Não. Era perfeitamente capaz de distinguir um sonho da vida real. Pensou na festa de Natal da seguradora. Talvez tivessem sido eles a drogá-lo, o que não faltava por ali era gente que não gostava dele, bem capazes de acharem divertida uma coisa assim. Se fosse o caso, e aí havia de se vingar, estavam explicados os devaneios.

Tinha ouvido falar de várias drogas capazes de provocarem reações daquelas.

Olhou novamente: o palacete não passava de uma ruína, um fantasma a aguardar a libertação. Quem comprasse aquele detrito arquitetónico, seria certamente com a intenção de o demolir para construir um prédio. Era o que fazia sentido, em termos de lucro. Veio-lhe ao pensamento o momento da festa em que não tinha conseguido mexer-se e isso fê-lo pensar em Irene. Irene Saraiva, de quarenta e cinco anos de idade, sem mobilidade do  pescoço para baixo.

Sentia-se estranho. Uma brisa suave batia-lhe na cara, mas a sensação era a de ser tocado por milhares de minúsculas agulhas. Estava outra vez com uma fome tremenda, o que não fazia sentido nenhum, visto que ainda há menos de duas horas tinha devorado frango e meio e um pacote de batatas. Efeitos da maldita droga, pensou.

Quando voltasse ao trabalho, havia de descobrir os responsáveis pela partida, que aquilo era coisa para ter sido engendrada em grupo, podia até imaginar as gargalhadas que tinham sido dadas às suas custas, e não descansaria até conseguir que fossem todos postos na rua, sem direito a indemnização, que uma coisa daquelas era matéria para uma ação de despedimento com justa causa. E depois havia de apresentar queixa na polícia, levá-los a tribunal, arrastar aquilo até às últimas consequências.

Drogar um colega era um crime grave. Podia ter-se magoado seriamente, podia ter sofrido um acidente, ou ter sido roubado.

Pensou no telemóvel e em todos os contactos importantes que teria dificuldade em recuperar, e subitamente foi injetado por uma raiva brusca que não conhecia, que se materializou num violento e sonoro pontapé no portão. Os cabrões haviam de lhe pagar um novo.

De volta a casa, acabou com o meio frango que sobrara e despachou tudo o que encontrou no frigorífico. Já tinha comido mais nessa tarde do que numa semana de trabalho. Era uma coisa avassaladora.

Discou os números do apoio ao cliente da operadora com quem mantinha, há anos, contrato para a Internet de casa, para os canais de televisão e para o telemóvel. Tinha de os informar de que ficara sem ele e pedir uma nova via do cartão SIM.

Fazia questão de manter o número. Não é que muita gente o tivesse, muito menos que o utilizasse, avisar as pessoas dessa mudança seria uma tarefa que não lhe levaria mais do que uma meia dúzia de mensagens, mas nunca tinha tido outro e gostava dele. Principiava e terminava em nove, o que além de representar por si só uma coerência, algo que Jaime apreciava, era também o maior dos algarismos.

Jaime tinha com os números uma ligação mais estreita e íntima do que com qualquer ser humano. A ordem e a exatidão eram as características que mais apreciava no mundo, e ninguém as proporcionava com o rigor e a lisura dos algarismos.

Depois de, com a tecla três, ter selecionado ser atendido por um operador, ficou a ouvir, em loop, uma música clássica daquelas que já tinham sido usadas numa mão-cheia de anúncios televisivos.

Jaime detestava esperar. Ao fim de dez minutos estava pronto para desligar e estilhaçar o telefone contra a parede. Tentaria numa hora de menos tráfego, à noite, durante o jantar de Natal, altura em que não haveria tanta gente a ligar. Já não podia ouvir aquele moderato cantabile uma vez mais que fosse: Eis como destruir irremediavelmente um Chopin, quando subitamente, depois de uns instantes de silêncio, a música foi substituída por outra que lhe pareceu familiar.

A melodia era agradável e conciliava vários instrumentos numa sinfonia hipnótica. Quanto mais ouvia, mais certeza tinha de a conhecer.

A resposta demorou a chegar, e Jaime, inquieto, foi deixando crescer em si a bizarra sensação de o telefone estar a criar um campo magnético à sua volta. É apenas a ansiedade, pensou.

— Estou aqui — disse por fim, do outro lado da linha, uma voz fragilmente gutural cuja tessitura tornava impossível perceber se se tratava de um homem ou de uma mulher, mas que a Jaime soou estranhamente como o eco de uma memória longínqua.

— Boa noite. Perdi o telemóvel e duvido muito que o consiga recuperar. Quero ficar com o mesmo número — disse, animado por terem finalmente atendido.

— Estou aqui — repetiu a voz.

— Desculpe? O que é que isso…

Do outro lado da linha, uma espécie de choro abafado despontou daquela respiração pesada. As palavras pareciam obrigadas a romper camadas de nevoeiro denso para ali chegarem.

— Lembra-te de mim. Eu estou aqui por ti.

— Quero manter o número de telemóvel, é só isso.

— Não tenho mais tempo — continuou, no mesmo tom, a voz do outro lado da linha.

— Quem fala? — perguntou Jaime, inquieto e acometido por um vestígio de alguma memória insondável.

— Tu sabes. Lembra-te de mim — repetiu.