Pintado em 1964, o quadro “Cães de Barcelona” faz parte de um conjunto de obras que se encontram dadas como desaparecidas da coleção pessoal de arte de João Rendeiro, o ex-banqueiro encontrado morto numa prisão da África do Sul em 2022, no contexto da falência do Banco Privado Português (BPP), do qual foi fundador.
Com dimensões de 160 centímetros por 185 centímetros, o quadro teve como proprietário, em 1988, Francisco Pereira Coutinho, então diretor da Galeria São Mamede, e passou a estar identificado como pertencente à Coleção João Rendeiro quando foi exposto numa grande retrospetiva da obra da pintora no Museu Rainha Sofia, em Madrid, em 2007.
Foi exibida pela última vez no ano seguinte, numa exposição no National Museum of Women in Arts, em Washington, segundo as pesquisas das curadoras da exposição “Manifesto” que está a ser preparada para Cascais, Catarina Alfaro e Leonor Oliveira.
A pintura – inspirada num episódio sanguinário que levou à morte de centenas de pessoas sob o regime franquista em Espanha – era a primeira obra do catálogo da primeira exposição individual de Paula Rego, realizada em 1965, em Lisboa, também intitulada “Manifesto”.
Era intenção das curadoras contar com “Cães de Barcelona” na recriação dessa mostra, com inauguração prevista para 18 de abril, na Casa das Histórias, em Cascais, para celebrar os 50 anos da revolução em Portugal.
“Pode estar no estrangeiro ou numa cave escondida. Não sei o que aconteceu, e tenho pena. Era uma pintura muito querida da Paula Rego. Tentámos expô-la anteriormente, para a mostra ‘Ordem e Caos’, em 2014, mas João Rendeiro dizia sempre que não a podia emprestar”, recordou Catarina Alfaro, coordenadora do museu, em entrevista à agência Lusa.
As notícias eram uma das fontes de inspiração da artista, muitas delas políticas: “Este acontecimento, publicado nos jornais do Reino Unido, chocou Paula Rego, porque encontrou semelhanças com a situação politica ditatorial em Portugal”, disse Catarina Alfaro à agência Lusa, referindo-se ao episódio ocorrido em Barcelona, quando, para exterminar os cães vadios que andavam pela cidade, as autoridades espalharam carne envenenada nas ruas. Num contexto de fome generalizada, muitas pessoas comeram dessa carne e morreram.
Na altura, a pintora escreveu, a propósito deste episódio dramático: “Isto para mim refletia a situação política nessa época, em Espanha e Portugal, pois no meu país também havia uma ditadura igualmente brutal. Mas o quadro vem, no fundo, da minha própria experiência. A história inicial, de fora, permite-nos acordar histórias do nosso próprio mundo”. Paula Rego referia-se também à figura de uma mulher de lábios grossos representada na pintura, que a artista acreditava estar a ameaçar o seu casamento e família.
Emprestada por João Rendeiro para as exposições de 2007 e 2008, desde então, a pintura nunca mais foi vista em público.
Paula Rego chegou a ir a casa do banqueiro e colecionador, “manifestar interesse em comprá-la, mas ele recusou sempre a venda ou empréstimo”, indicou Catarina Alfaro.
Em “Os Cães de Barcelona”, a artista usou muitos materiais, nomeadamente tinta, papéis recortados e sobrepostos, “conferindo uma espessura material e complexa que tem a ver com a imagética pessoal, e também remete para a situação política em Portugal”, sublinhou a curadora.
Inicialmente intitulada “Cães vadios”, para não identificar diretamente a situação em Barcelona, por receio da censura em Portugal, a obra foi apresentada pela primeira vez em Londres em 1964 e, “um ano mais tarde, foi proposta para ser adquirida pela Fundação Calouste Gulbenkian, que acabou por comprar uma outra”, intitulada “Retrato de Grimau” (1965), revelou a investigação das curadoras.
A família de Paula Rego chegou a fazer, em 2022, através do filho, o realizador Nick Willing, um pedido ao Ministério da Cultura para que a pintura fosse classificada, por se tratar de uma peça “muito importante” para a pintora radicada no Reino Unido.
O pedido formal e fundamentado de classificação tinha já sido enviado à então Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), por iniciativa da historiadora de arte Raquel Henriques da Silva, com o apoio de Catarina Alfaro, coordenadora da Casa das Histórias Paula Rego.
Na altura, em resposta a questões enviadas pela Lusa, a DGPC confirmou o pedido para abertura de procedimento de classificação de “Cães de Barcelona”, mas “apesar do reconhecimento do inegável valor patrimonial” da obra, o seu paradeiro era desconhecido das autoridades, o que impedia a classificação.
A DGPC chegou a contactar a Polícia Judiciária questionando se a obra estava integrada na denominada “Coleção João Rendeiro” ou se fazia parte da lista das obras arrestadas ou a arrestar, no âmbito do processo judicial em curso contra o banqueiro, mas recebeu como resposta que “não foram identificadas na visita efetuada à residência” do colecionador, desconhecendo se estaria ainda na sua posse ou propriedade.
Do ponto de vista jurídico, o desconhecimento do paradeiro das obras impede que seja dado seguimento ao pedido de abertura dos procedimentos de classificação, porque impede a notificação e publicitação para iniciar o processo, como a DGPC informou então.
Na altura, Nick Willing – autor do documentário “Histórias e Segredos” (2017) sobre a vida da pintora radicada no Reino Unido e uma das mais importantes artistas portuguesas – disse à Lusa estar convicto de que “com a classificação, o quadro seria mais difícil de vender ou de sair do país”.
O quadro “Os Cães de Barcelona” foi exibido pela primeira vez em 1964, na exposição do London Group, uma associação que reunia na altura artistas como David Hockney, Frank Auerbach e Michael Andrews.
A obra foi apresentada em Portugal, no ano seguinte, na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, na exposição “Manifesto”, a primeira mostra individual de Paula Rego, que será agora recriada para assinalar os 50 anos do 25 de Abril.
Em novembro de 2010, cerca de 120 obras de arte da chamada “Coleção João Rendeiro” – que deixou uma dívida de 35 milhões de euros – foram arrestadas e a mulher do ex-banqueiro ficou como a sua fiel depositária, mas acabaria por renunciar à herança, avaliada globalmente em 15 milhões de euros.
Por seu turno, o Estado viria a adquirir a coleção de arte do BPP, constituída entre 1996 e 2008, com 385 obras de 153 autores, como Helena Almeida, Julião Sarmento e Lourdes Castro, para as incluir na Coleção de Arte Contemporânea do Estado (CACE).
Para a exposição “Manifesto”, que ficará em Cascais até 6 de outubro – “resultado de um grande esforço de investigação” – virão obras do Reino Unido, de França, de museus e instituições nacionais como a Fundação Calouste Gulbenkian e a Fundação de Serralves, de colecionadores e de galerias como a 111, que representou a artista em Portugal.
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