Com mais de 500 anos, a mais icónica pintura antiga portuguesa – um retrato coletivo muito simbólico da História e cultura portuguesas – está a ser alvo de restauro desde 2020, quando foi criada uma “casa” dentro do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, para que os visitantes pudessem acompanhar o seu progresso.
Nesta fase do projeto de restauro, os especialistas estão a retirar os vernizes antigos e sujidade, num “trabalho muito demorado, porque a área é grande, e é feito a cotonete”, disse à agência Lusa o diretor do MNAA, Joaquim Caetano, sobre o ponto da situação do processo, acrescentando que “começam a aparecer as cores mais próximas do original” do mítico políptico.
Descoberto no Mosteiro de São Vicente de Fora, em Alfama, Lisboa, em 1882, tem sido, desde essa altura, alvo de curiosidade pública e debate no meio académico, sobre a autoria, e quem eram ou representavam as 60 figuras da época dispostas em redor da dupla figuração de São Vicente.
Alvo de um grande restauro pela mão do pintor Luciano Freire, em 1909 e 1910, e outro, já nos anos 1950, por um seu aprendiz, Fernando Mardel, o políptico volta a ser intervencionado, desta vez com tecnologia mais avançada, depois da obtenção de um apoio mecenático obtido pelo museu e pelo grupo de amigos do museu junto da Fundação Millennium bcp.
“Vamos ficar a saber com mais clareza o que é o original e o que não é” nesta obra, e “obter uma visibilidade melhor da pintura”, quando foram totalmente retirados “os vernizes escurecidos ou sujos, porque, basta remover essa camada, para obter uma perceção mais nítida, com cores mais próximas do original”, vincou o historiador à Lusa.
A retirada desses vernizes envelhecidos e escurecidos pela oxidação é um processo muito técnico e lento, e acontece depois de os especialistas terem realizado experiências para definir precisamente quais os materiais de limpeza mais adequados para o tipo de vernizes que encontravam.
De acordo com o diretor do MNAA, depois desta fase, que deverá continuar até ao final do ano, seguir-se-á outra de “retirada de retoques mais danificados, repintes mais grosseiros que existam, e fazer a recolocação dos vernizes finais e retoque”, que deixarão as cores originais descobertas.
Os passos seguintes serão a estabilização do suporte do políptico, “ver se é precisa alguma fixação acessória do suporte, fazer uma desinfestação total das madeiras das molduras, e ver se haverá ou não um novo sistema de emulduramento”, que o diretor estima que aconteça em 2023.
Embora o restauro esteja a progredir, não ficou imune ao impacto negativo da pandemia. Sofreu vários atrasos motivados por paragens, porque os restauradores não podiam reunir-se devido às restrições sanitárias, como aconteceu em janeiro de 2021, numa fase pandémica crítica.
Questionado pela Lusa sobre a dimensão da equipa envolvida no projeto – que também recebeu a intervenção de especialistas internacionais -, Joaquim Caetano indicou: “Nesta fase estão cinco pessoas a trabalhar, mas só durante dois dias por semana, mais um terceiro dia de organização de informação, porque tudo tem de ser fotografado, criada e organizada toda a documentação”, à medida que se continuam a receber dados de exames e das análises que foram feitas inicialmente.
Os especialistas têm-se dedicado em permanência a reunir documentação fotográfica de todo o processo, com vários tipos de recolha de imagem, usando luz normal, luz rasante, ultravioleta, radiografia, refletografia de infravermelhos, entre outras técnicas avançadas.
Outra dificuldade é a escassez de recursos humanos técnicos: “O museu está a ficar praticamente sem conservadores. Neste momento ainda estão duas conservadoras do museu, mas uma vai sair em breve, e as outras irão sendo contratadas enquanto temos o mecenato da Fundação Millennium bcp que está a sustentar, na íntegra este projeto”, salientou, com um apoio de 225 mil euros.
“É esse que está a permitir [este restauro], e depois teremos de ver qual é o apoio que a tutela está disposta a dar”, apontou, acrescentando que desconhece o que irá acontecer no futuro, já que o mecenato disponível deverá acabar no final do ano.
O apoio mecenático “foi negociado até ao final deste presente ano [2022], mas, com o surgimento da pandemia, muita coisa ficou por fazer”, alertou o diretor do museu, recordando que as restrições exigidas também tiveram impacto nas deslocações dos especialistas estrangeiros que estão a acompanhar o projeto, e — espera – regressem em março.
Quando os painéis foram descobertos em finais do século XIX, no Paço Patriarcal de São Vicente de Fora, em Lisboa, por não terem assinatura e datação visíveis e inequívocas, suscitaram um enorme mistério e fascínio por parte de várias gerações de estudiosos e académicos.
A autoria dos painéis foi descoberta por José de Figueiredo, e atribuída a Nuno Gonçalves, através da interpretação de um monograma revelado durante o primeiro restauro da pintura na década de 1930, localizado na bota da figura ajoelhada no Painel do Infante, que se presume ser D. Duarte, e que é coincidente com outras assinaturas utilizadas pelo autor em documentos e obras contemporâneas.
Questionado sobre se o restauro – além da revelação das cores originais – trará alguma luz sobre as 60 personagens ali pintadas, Joaquim Caetano rejeitou essa possibilidade: “As figuras só podem ser identificadas se houver uma base documental, o que não existe, ou, em alternativa, em comparação com outros retratos que existam”.
“Daquelas personagens todas, retratos físicos que indiquem isso, o único caso que existe é a do Infante D. Henrique, porque aquela figura é muito semelhante à que aparece na Crónica da Guiné. Se não há retratos para comparar, o restauro não vai resolver esse problema”, sustentou.
O historiador de arte fez questão de sublinhar que “o restauro é feito para resolver problemas de integridade e conservação material da peça que estava em degradação. Não é feito para responder, facilitar, confirmar ou negar os milhares de teorias que existem sobre os painéis”, considerados peça por excelência da pintura portuguesa.
Quando terminar, o restauro dos Painéis de São Vicente poderá não desvendar todos os seus enigmas, mas a equipa de especialistas continua a trabalhar para recuperar, o mais possível, o original que o artista fez, mantendo a estabilidade e a conservação da obra, para que perdure no tempo.
Criado em 1884, o MNAA acolhe a mais relevante coleção pública de arte antiga do país, em pintura, escultura, artes decorativas portuguesas, europeias e da Expansão Marítima Portuguesa, desde a Idade Média até ao século XIX.
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