Prólogo

24 de Dezembro

Meg não ia deixar que ele a visse a chorar. Já o tinha feito vezes de mais. Saiu da carruagem-bar a correr, ciente de que as câmaras dos telemóveis se viravam para ela. Com os olhos a arder, precipitou-se pelo corredor fora em direcção ao compartimento de casal. O comboio parecia estar a sussurrar-lhe: ele não te ama, ele não te ama, ele nunca te amou.

Olhou para trás enquanto procurava atabalhoadamente o cartão magnético. Grant não estava a segui-la. Parte dela queria que estivesse. Queria a discussão que lhe sabia a amor e a paz que se fazia sentir quanto ele voltava a ficar sóbrio e lhe implorava perdão. Mas, no fundo, Meg sabia o que poderia acontecer. O que estivera tão perto de acontecer no passado. E não iria morrer naquela noite.

No compartimento de casal, Meg trancou a porta e enroscou-se na cama em posição fetal. Abraçou uma almofada e embalou-se. Sentia que o coração tinha sido aberto como um presente de Natal às mãos de uma criança ansiosa, e a única coisa que sobrara fora o papel de embrulho rasgado e amarfanhado.

Pensou em visitar aquela mulher, Roz, a ex-inspectora que parecia a Kate Bush. Talvez ela pudesse ajudar.

Foi então que o telemóvel vibrou.

E depois voltou a vibrar.

Olhou para o ecrã: tinha sido identificada num vídeo e as notificações começavam a chegar às centenas. Tanto o comboio como o coração de Meg pareceram acelerar. O vídeo fora publicado um minuto antes. Alguém tinha filmado toda a discussão que ela tivera com Grant, das acusações sussurradas às negações vociferadas antes de Meg sair a correr.

Viu os comentários a aparecerem em tempo real. Como era habitual, não conseguiu resistir a lê-los:

Lindyhop2010: Estou com a Meg!
Meg4Eva: ♥♥:')
InkedAndPrimped: Ele é um pão – ela tem é de aguentar. Eu aguentaria! ;)
DinosaurSenior: DEIXA‐O, MEG! Anda mas é sentar‐te na minha cara!
TaintedProphets: Não confies nele, acredita no que te digo
Nastasha_Roberts: Ela é um caso perdido. Anda a tomar alguma coisa. Vê‐se logo.
ICD3adp30pl3: Notícias falsas. Tudo encenado. Andam a encobrir‐se um ao outro e os outros são figurantes.

Meg consultou o Twitter: #arrufodenamoradosmegrant estava em alta.

Sentia a rosácea inflamada a condizer com a humilhação que estava a sofrer.. Sabia o que Grant iria dizer: «Aproveita e faz dinheiro com isso.» Ele era como o Rumpelstiltskin: de tudo conseguia fazer ouro, sobretudo se isso a fizesse sentir frágil e inferior. Na noite seguinte, já teria vendido a história a uma revista cor-de-rosa e sairiam na capa, Meg com um sorriso que nunca chegava aos olhos retocados com um filtro.

Naquela noite, não. Não depois do que ele lhe sussurrara quando ela estava na mesa da carruagem-bar. As pessoas iriam perguntar porque é que ela não disse nada antes ou porque é que não o deixou. Essas eram pessoas com sorte, porque nunca tinham sido alvo de abusos. Não compreendiam que, depois da míngua de amor, quaisquer migalhas cediças eram bem-vindas.

Não importava o que as outras pessoas diziam, isso já não a incomodava. Meg iria apropriar-se da sua história. Dizer a verdade. Toda a verdade. Tudo o que andava a esconder e a guardar em pequenos vídeos havia muito tempo. Tinha chegado o momento de os publicar e de se libertar. E talvez acabasse por dar voz às muitas pessoas que não a tinham. Iniciar um hashtag só dela: #Megtoo.

Meg pegou no pó compacto e olhou-se ao espelho. As pupilas escuras reflectiam o rosto. O lápis dos olhos e o rímel escorriam-lhe pelas faces e deixavam rastos na base. Pegou na última leva de amostras promocionais que lhe tinham enviado para ela testar e corrigiu a maquilhagem onde estava mais borrada, cobrindo as manchas vermelhas que a base tinha deixado de ocultar. Se era para chorar baba e ranho à frente das câmaras, pôr-se-ia bonita antes.

Maria João Lopo de Carvalho junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 13 de dezembro, uma quarta-feira, pelas 21h00. A autora traz "Os Cinco e o quadro desaparecido", editado pela Oficina do Livro.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

"Os Cinco" é uma das mais conhecidas e bem-sucedidas séries literárias para crianças e jovens da autora britânica Enid Blyton, publicada e traduzida em vários países. Com o passar dos anos, deu origem a outras histórias, com as mesmas personagens, escritas por diferentes autores noutros países, como Sarah Bosse (Alemanha) e Claude Voilier (França).

Esta série literária de aventuras, escrita por Blyton entre 1942 e 1963, tem agora continuidade em Portugal pela mão da autora Maria João Lopo de Carvalho, pela Oficina do Livro (grupo Leya), a editora que detém os direitos e publicou os 21 volumes da coleção.

Maria João Lopo de Carvalho tem 61 anos, foi professora de Português e Inglês, criou uma escola de língua inglesa, trabalhou em publicidade e na Câmara Municipal de Lisboa e tem mais de 70 livros publicados, entre obras para adultos e para os mais novos.

Aro de luz ligado, filtro aplicado, Meg digitou no telemóvel as marcas que iriam aparecer no início da transmissão ao vivo no Instagram. Tinha segredos a revelar e estava na hora de o fazer. Um presente de Natal para os seguidores e um pedaço de carvão no sapatinho para Grant. Além disso, não lhe faria mal nenhum à carreira: o relógio do TikTok nunca parava e Meg iria assim recuperar alguma da atenção que tinha perdido. Tinha de se manter calma e de ser autêntica ao promover as marcas. As referências a Meg iriam explodir e os patrocinadores hesitantes ficariam mais seguros.

Inspirou o mais profundamente que os pulmões lhe permitiram. Pegou numa lata que estava a ser paga para vender, levou-a à boca imaculada e premiu o botão que indicava Directo:

Baixou a lata e estalou os lábios como se tivesse saboreado algo delicioso.

– Olá, pessoal. Eu disse-vos que voltaria mais tarde. As coisas não correram como previsto. Como provavelmente já viram, eu e o Grant voltámos a discutir. Normalmente, não deixo que vocês me vejam assim. – Apontou para os olhos inchados e borrados. A chuva de pessoas a ver o directo já estava a transformar-se numa tempestade. O momento dela tinha chegado. – Normalmente, recomponho-me e sigo em frente. Mas hoje não. Hoje vou contar-vos os segredos obscuros da minha relação com o Grant.

Já tinha dito o suficiente para os agarrar. Estava na hora de fazer mais publicidade. Continuou a falar, dizendo algo sobre a necessidade de ser resiliente, tal como a maquilhagem que se mantinha no rosto apesar das lágrimas.

E, quando sentiu que podia estar a perder a audiência:

– Bem ,é isto que tenho para vos contar. Na verdade, já vos tinha começado a mostrar, em pequenos vídeos que gravei em segredo, mas este parece-me o momento certo para dizer a verdade. Por detrás da maquilhagem e das sessões fotográficas, das histórias na Hello! e noutros lugares, das mentiras...

O comboio trepidou e sacudiu-se para um lado. Os travões chiaram. A porta da casa de banho abriu-se de repente e bateu com estrondo na parede. A carruagem inclinou-se ligeiramente e deu uma guinada. Meg gatinhou para o canto da cama, agarrando-se com força ao telemóvel.

– O que está a acontecer? – perguntou para o aparelho, como se algum dos espectadores pudesse saber ou ajudá-la.

O comboio parou numa tremenda chiadeira.

As decorações que Meg tinha feito e pendurado antes do directo abanaram e caíram em cima dela. As malas de marca agitaram-se no compartimento. O porta-jóias caiu do lavatório, juntamente com uma palete de sombras nova com pigmentos em tons de lilás e cinzento que se espalharam pelo chão. O espelho do pó compacto deslizou da cama e estalou ao bater na parede.

Meg deixou-se ficar onde estava, à espera de que o mundo assentasse. Ouvia gritos e exclamações vindos dos compartimentos contíguos.

Ao fim de alguns instantes: sossego. Baixou a janela para deixar entrar um sopro de vento. Olhou para os carris que curvavam mais à frente, mas não conseguiu ver o que tinha acontecido, apenas a escuridão cerrada e invernosa. Outras janelas também começavam a abrir-se.

– Bem, aposto que não estavam à espera de um descarrilamento – disse ela, voltando-se para a câmara do telemóvel. – Eu também não, embora a minha vida já ande descarrilada há muito tempo. Mas o Grant não tarda a chegar, pelo que tenho de vos contar tudo. Tenho de falar. – Respirou fundo e olhou directamente para a câmara, ciente de que os olhos iriam estar esgazeados, as pupilas dilatadas. – De início, ele era maravilhoso. Um romântico por excelência. O meu psicólogo dizia que aquilo era um «bombardeamento de amor», love bombing. Mas, aos poucos, ele...

Meg deteve-se. A porta estava a abrir-se. Via-se um pé a entrar. O de Grant. Meg começou por se sentir aliviada e disse:

– Grant, oh, é...–Ele entrou e fechou a porta. Tinha aquela expressão no rosto. – Por favor, não... – Mas as palavras dissolveram-se-lhe em pó de carvão na garganta. As mãos de Grant estenderam-se para o pescoço de Meg.

Meg recuou. Remexeu no telemóvel e desligou a transmissão sem querer. Deixou-o cair ao chão e o tacão dele esmagou o ecrã. Meg levou as mãos ao rosto. Não precisava de ser bruxa para saber. Ela ia morrer naquela noite.

Um

23 de Dezembro

Era a noite antes da véspera de Natal. Nenhum carro conseguia andar na Regent Street, o engarrafamento mantinha-se há dez minutos. Contudo, o taxímetro continuava a contar, acumulando libras e minutos.

– A que horas é o seu comboio? – perguntou o taxista, baixando o volume do rádio e virando a cabeça para trás.

– Nove e um quarto–respondeu Roz, de olhos postos no relógio. Eram dez para as nove.

O taxista soltou uma interjeição de dúvida.

– Com este trânsito? Vai ser preciso um milagre de Natal para chegarmos a Euston a tempo. Vai ter de apanhar o seguinte.

– É o nocturno – disse Roz. – O último antes do Natal. Tenho de ir para a Escócia. A minha filha entrou em trabalho de parto seis semanas antes do previsto.

Os olhos do taxista desviaram-se para a fotografia no tablier com duas crianças pequenas. Uma expressão de dor perpassou-lhe o rosto. Roz sentiu vontade de lhe perguntar alguma coisa sobre o assunto, mas pôs a ideia de lado logo de seguida. Não ia meter a foice em seara alheia. A sua vida já lhe dava muito com que se preocupar.

– Eu até iria por outro caminho – disse ele –, mas está tudo entupido. Acidente na Charing Cross Road. Repercussões até à Regent Street. Não pode apanhar outro comboio que não seja o nocturno?

– Estão todos esgotados – disse Roz, mostrando o telemóvel. – Já verifiquei.

Baixou a janela, na esperança de que o ar exterior a distraísse das preocupações que lhe afligiam a cabeça. O ar frio entrou como a primeira visita do novo ano há muito à espera na soleira da porta. As pessoas passavam, numa azáfama, atafulhadas com cachecóis e gorros. O céu nocturno de Londres trazia a promessa lilás de neve. Lembrava-lhe o cabelo da filha, Heather. Roz deveria estar com Heather naquele momento, a segurar-lhe a mão, a levar-lhe coisas para comer, a encher a piscina para o parto, a fazer tudo o que fosse possível fazer. Deveria ter previsto o parto prematuro, mas também deveria ter feito muitas coisas na vida que não fez. No início da gravidez de Heather, Roz tinha prometido que se iria reformar antecipadamente da Polícia Metropolitana de Londres e que voltaria para a Escócia alguns meses antes do nascimento. Tinham planeado que Roz a ajudaria a preparar a casa para a tempestade que é a chegada de um recém-nascido. Mas depois Roz decidiu resolver um último caso antes de se ir embora e Heather acabou por entrar em trabalho de parto prematuramente. Por isso, Roz não estava na Escócia para ajudar a filha. Mais uma vez.

Consultou o telemóvel. Não tinha nenhuma mensagem nova de Heather no WhatsApp nem da noiva da filha, Ellie. E a aplicação do comboio nocturno continuava a indicar que o comboio iria sair a horas.

O taxista voltou a aumentar o volume do rádio. Estava a passar a canção December Will be Magic Again. A voz de Kate Bush elevou-se e baixou-se, tão frágil e forte como a neve. Antigamente, Roz adorava aquela canção, mas Dezembro não era mágico há muito tempo.

Acima dela, os famosos anjos de Regent Street abriam as asas iluminadas. Lembravam-lhe Hannibal Lecter a esfolar um agente da polícia em O Silêncio dos Inocentes para depois o enforcar na cela, um anjo esquartejado. Provavelmente não eram as associações festivas em que eles estavam a pensar. Na ausência de seres celestiais, Roz teria de chegar à estação pelos próprios meios.

– Eu saio aqui – disse ela, a pegar nas malas. – Quanto é que lhe devo? O taxista parou o taxímetro.

– Vinte e quatro libras e sessenta – disse ele. Encolheu os ombros em jeito de pedido de desculpa.

Roz encostou o cartão de crédito na máquina, acrescentou uma gorjeta e rezou ao deus do Mastercard para que fosse aceite. Um momento que pareceu uma eternidade, até que o recibo começou a sair com um zumbido.

– Obrigada – gritou Roz, tirando as malas do táxi.

– Espero que corra tudo bem com vocês – gritou o taxista. Voltou a olhar de relance para a fotografia dos filhos e fez o sinal da cruz no peito.

Dois

Mochila a pesar-lhe nas costas, mala de viagem ao lado como um passe‐partout com rodas, Roz subiu a rua até à estação de Metro de Oxford Circus. Euston ficava a apenas duas paragens de distância na Victoria Line e uma caminhada rápida à superfície. Mesmo assim, iria chegar mesmo em cima da hora. Tinha decidido apanhar o táxi para não ter de arrastar a bagagem pela cidade e levá-la para dentro do Metro, mas ali estava ela, a subir a Regent Street a pé na hora de maior corrupio. Era como estar num jogo de computador, mas em vez de evitar zombies, Roz estava a evitar as pessoas que andavam às compras, como o homem que caminhava na direcção dela de rolos de papel de embrulho em riste, uma espécie de Jedi que se tinha esquecido de que estava a brandir sabres de luz. A mala de viagem chiava como se estivesse a partilhar a ansiedade de Roz.

Olhou para o relógio quando parou na escada rolante da estação de Oxford Circus. Dez minutos para o comboio partir. Um artista de rua estava a cantar Driving Home for Christmas e Roz pensou na ideia de ver o rosto da neta que estava prestes a chegar. E no que o rosto de Heather faria se Roz perdesse o comboio.

No cais, Roz arrastou a mala por entre a multidão até entrar no Metro. Deixou-se ficar junto às portas, a inspirar quando tentavam fechá-las. A carruagem cheirava a suor, café e perfumes contrastantes. A mulher encolhida ao lado dela levantou os olhos para Roz.Trocaram o esgar tradicional do utilizador do Metro que reconhecia a intimidade forçada.

Roz tinha os braços manietados junto às ilhargas, pelo que não conseguia olhar para o relógio, mas continuava a sentir que o tempo lhe estava a fugir. A claustrofobia ganhou terreno. Roz respirou, a tentar evitar um flashback. Tarde de mais. Foi devolvida ao passado, como se a violação estivesse a acontecer naquele momento, e não há mais de 30 anos. Ele em cima dela enquanto ela lhe suplicava que parasse. O cheiro a Marlboro quando ele lhe cuspiu na cara.

– A senhora está bem? – perguntou a mulher que estava ao lado dela. Estava a olhar para o fio de emergência. Se o puxasse, Roz não conseguiria apanhar o comboio.

– Estou óptima – disse Roz, a tentar esconder o pânico. Deveria ter saído ainda mais cedo. Se tudo tivesse corrido conforme planeado, estaria na estação uma hora antes da partida. Deveria ter antecipado um acidente ou qualquer outra coisa que a poderia manter longe da filha. Até porque ela já era bastante boa a fazê-lo sem precisar de ajuda.

O comboio que se atrase, por favor, pensou, rezando sabe-se lá a que deus. Ele que se atrase. Que haja neve nos carris, uma folha numa janela, o que quer que seja. O lado mais negro de Roz chegou a pensar num passageiro na linha. Mas não o desejou.

Quando a composição do Metro parou em Euston, Roz espremeu-se para sair, evitando os passageiros no cais que saíam do trabalho ou andavam às compras. A escada rolante iria demorar demasiado, por isso Roz agarrou bem a mala e abriu caminho pelas escadas acima, arfando e com os músculos dos braços em sofrimento. Ao entrar na estação de Euston, olhou para o relógio no quadro das partidas.

21:18.

O coração de Roz era um elevador pronto a cair, mas ela segurou as por- tas. Nem tudo estava perdido... ainda. Leu a informação no quadro, a tentar recuperar o fôlego:

21:15 Fort William. ATRASADO.

O alívio foi imediato. Olhou em volta para a estação. Uma árvore decorada apontava ao tecto. Músicos a cantar canções de Natal sacudiam os sinos alegremente no centro do átrio. Filas de pessoas com coffrets e livros de bolso debaixo dos braços alongavam-se para fora das lojas. Um homem com chifres de rena na cabeça bamboleava-se a puxar malas de viagem tão cheias que pareciam prestes a explodir. Todos os tons emocionais do Natal estavam presentes, desde pessoas a encontrar-se com os entes queridos à saída dos comboios à mulher sozinha, de parca vermelha com capuz na cabeça que tentava conter os soluços.

Roz sentiu o impulso de ir ter com ela, oferecer-lhe um abraço, um lenço, um pedaço do whisky tablet – um doce parecido com caramelo, mas escocês, mais seco e melhor – que tinha feito naquela manhã. Depois, lembrou-se das palavras geladas de Heather: «Não achas que está na altura de olhares pela tua família e não por todas as outras pessoas, mãe?»

Virou costas à mulher soluçante e dirigiu-se para o balcão de informações. Tinha de saber a que horas o comboio iria partir. A última coisa que ela queria era sentar-se à espera, adormecer e perdê-lo.

Um homem idoso, à frente da fila, tremelicava. O ramo de rosas e flores de eucalipto que tinha na mão, sacudia-se com ele.

– Mas vocês não têm de disponibilizar camionetas quando o comboio é cancelado?

A mulher atrás do balcão não devia ter mais de 30 anos, mas o rosto já tinha rugas, como se todas as queixas dos clientes tivessem deixado uma marca.

Livro: "Crime no Expresso de Natal"

Autor: Alexandra Benedict

Editora: Guerra & Paz

Preço: € 17,00

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– Se tiver sido encontrada uma viagem alternativa, estará no quadro, senhor.

– O que é que eu hei-de fazer? – disse ele. – Tenho de ir para Manchester. A minha família está à minha espera.

– Peço imensa desculpa – disse a mulher.–A neve está a provocar problemas de segurança na linha.

– Mas há outros comboios a funcionar.

– Têm de ser tomadas decisões. Algumas linhas vão ter mais problemas do que outras. Idade dos carris, os comboios em funcionamento, o clima em certos lugares.

– Mas é Natal – disse ele, numa voz fina e aguda. Roz viu-o subitamente como jovem rapaz, a perceber pela primeira vez que a vida não era justa. Os carris desenhados na testa da mulher duplicaram-se quando ela franziu o sobrolho.

– Gostava de o poder ajudar – disse ela, e Roz acreditou. – Terá de falar com alguém no nosso escritório central. São eles que providenciam transportes em ocasiões como esta.

O homem assentiu devagar com a cabeça e afastou-se, a parecer subitamente muito mais velho.

Roz desejou que passasse muito tempo até que a neta que estava a chegar conhecesse as injustiças do mundo. Olhou para o telemóvel. Tinha acabado de receber uma nova mensagem de Heather no WhatsApp:

HEATHER: Ainda no início do trabalho de parto. Já devorei todos os bolinhos de aveia que a Ellie fez. Está a fazer mais entre as minhas contracções. Quem me dera ter um bocadinho do teu whisky tablet. Já estás a caminho?

Roz pensou sobre o que deveria responder. Deveria dizer que tinha um whisky tablet na mala pronto para ser consumido assim que chegasse? Ou talvez que se lembrava das primeiras etapas do parto de Heather e de como se sentira assustada. Sozinha. Que tentava não voltar a essas memórias de maneira nenhuma e que o coração batia de dor pela filha tanto no passado como agora. Ou talvez devesse pedir desculpa e dizer todas aquelas palavras que tinham ficado por dizer desde sempre. Qual era o emoji para isso?

Mas não era o momento certo e o WhatsApp não era o local adequado. Em vez disso, escreveu:

ROZ: Comboio atrasado, pelo que ainda estou em Euston. Come os bolinhos de aveia todos! Estarei aí em breve. Amo‐te, mãe, bj

Roz deveria ter enviado o whisky tablet para Heather muitas semanas antes. Não fazia ideia porque não o tinha feito. No trabalho, tinha um cérebro óptimo para perceber como as coisas aconteciam. Era capaz de ligar o que parecia ser uma sequência de eventos desconcertante e dispersa. Mas na sua própria vida? Nem pensar. Não tinha a desculpa para ter feito o doce em cima da hora. O whisky tablet durava, pelo menos, dois meses. Uma vez tentara mantê-lo durante mais tempo, para ver se duraria um ano, mas, ao fim de duas semanas, já o tinha reduzido a nada por não conseguir resistir-lhe.

– Desculpe, minha senhora? – A mulher atrás do balcão, Natalia, de acordo com o instável crachá com o nome, estava a falar com Roz. – Posso ajudá-la?

– Tem mais alguma informação acerca do comboio nocturno para Fort William? – perguntou Roz. – Diz «atrasado», mas não diz quando é que se espera que chegue. – A palavra «espera» lembrava-a de Heather e do trabalho de parto da filha. E do seu próprio trabalho de parto. Afastou as memórias. Não podia pensar nisso. Não era o momento.

Natalia digitou algo no computador. Um olhar de alívio suavizou-lhe as feições.

– Está com sorte. É a única linha do comboio nocturno que está em funcionamento. Normalmente, o comboio divide-se em Edimburgo para ir para diferentes partes das Terras Altas da Escócia, mas hoje as outras rotas são consideradas demasiado perigosas.

– Sorte a minha, então.

– E parece que vai chegar dentro de cerca de uma hora. – As rugas de preocupação voltaram. – Não vai sair numa das estações menores, pois não? Devido aos atrasos, o comboio não vai parar em algumas estações mais pequenas.

– Eu vou até Fort William.

– Então não há problema – respondeu Natalia. – Chagará a casa a tempo do Natal. – Tinha um sorriso cativante, que lhe transbordava do rosto até chegar a Roz.

O sorriso de Natalia fez-se mais profundo, mas não demorou a esbater-se quando olhou para além de Roz e viu o semblante carregado do cliente seguinte. Roz voltou a agradecer-lhe e afastou-se, na esperança de que o Natal de Natalia melhorasse a partir de então.

Enquanto atravessava o átrio, passou por um imbecil de cidade, podre de bêbado, com um gorro de Pai Natal descaído. O rapaz assobiou a uma jovem vestida de elfo. A rapariga corou e deixou cair os ombros.

Roz conhecia bem os rapazes daquela laia, como tantas outras raparigas conheciam. Aquela sensação de ser reduzida. Acontecera-lhe tantas vezes, bem como coisas piores. Fora para a polícia para tentar impedir que acontecesse a outras. E não conseguiu; o último caso em que trabalhou mostrou-lhe isso mais do que nunca.

Lançou o seu melhor olhar de inspectora ao rapaz.

– Vá-se foder, avozinha – disse ele, contorcendo o rosto numa rosnadela. – Estou quase a tornar-me avó, rapazinho, e orgulho-me disso. O que é que a tua avó diria se te visse agora?

O rapaz empalideceu. Baixou os olhos para o chão desgastado.

– Bem me parecia.

Ele lançou um último sorriso de desprezo e afastou-se a arrastar os pés.

A elfo virou-se para Roz com cara de poucos amigos.

– Não sei se sabe, mas eu sei defender-me sozinha.

Depois, foi-se embora, com os sininhos no gorro e nos sapatos a tilintar. E era precisamente por isso que Roz tinha de sair da Polícia Metropolitana naquela cidade que parecia um circo. Deixar que os palhaços se defendessem a si próprios.

Três

Um cappuccino arrefeceu na mão assassina. E a mão assassina abanou. A pessoa que se preparava para cometer o crime tinha de se recompor porque sabia que aquela tremedeira não era nada boa. O crime tinha de acontecer. A vítima não podia continuar a viver.

Viu pessoas a atravessar o átrio da estação a correr, todas com vontade de ir para casa. Muitas pareciam preocupadas com os atrasos e os cancelamentos ou talvez com o tenso Natal em família que as aguardava no final da viagem de comboio. A pessoa que se preparava para cometer o crime desejou que as suas preocupações fossem apenas essas.

Pôs-se a rever o plano para tentar acalmar-se.Tinha estado no comboio nocturno para Fort William três vezes em pouco tempo: conhecia o comboio, o terreno e as paragens como as rugas prematuras que lhe marcavam o rosto. Além disso, nunca deixara nada ao acaso na sua vida, sobretudo desde que conhecera a vítima, mas havia demasiadas variáveis controlar. Demasiadas pessoas no comboio. Contudo, continuava a ser a forma mais fácil de se aproximar da vítima. Iria estar sozinha, vulnerável em algum momento. E presa a noite inteira num comboio com a pessoa que se preparava para cometer o crime.

No entanto, isso não ajudava. Aquela seria a primeira vez que mataria algo além das moscas-da-fruta que lhe assediaram as bananas no Verão anterior. Agora, sentia que tinha moscas-da-fruta no estômago. Será que todas as pessoas que cometiam crimes se sentiam assim? E se se assustasse? E se, no momento da verdade, não fosse capaz de matar?

Mas bastava isso. O compromisso. E isso não representava um problema. Pelo menos, no que tocava ao compromisso com uma causa. Não tinha sido capaz de se comprometer com uma pessoa desde, bem... era por isso que ali estava, afinal.

Quando chegou à estação e viu que o comboio estava atrasado, quase virou costas e foi para casa. Imaginou o Natal sem a morte nas mãos, apenas no prato. Mas vira a vítima. Vira a vítima a verificar os gostos nas redes sociais, a olhar para o seu próprio reflexo nas montras das lojas. O sorriso que trazia no rosto agora era tão falso como o bronze que ostentava e as pestanas postiças que lhe caíam na almofada. A pessoa que se preparava para come- ter o crime não podia fazer mais nada senão matar.

Parou numa Whistlestop para se abastecer de snacks. Em viagens de comboio longas, valia a pena preparar-se para o caso de não chegar nenhuma comida. Uma vez, tivera de subsistir com mandarinas e uma embalagem pequena de Pringles numa viagem de Londres até Edimburgo. Desta vez, comprou uma sanduíche de queijo e pickles, alguns frutos secos e uma barra de chocolate Twirl, o seu preferido. Não ia pensar em calorias. Afinal, era quase Natal e havia um crime para cometer. Além disso, comprou um livro na WHSmith e depois dirigiu-se para a sala de espera da primeira classe onde ficou a aguardar o comboio. Integrar-se-ia e sorriria.

Um casal jovem passou pela pessoa que se preparava para cometer o crime, a balançar as mãos juntas. Riam-se e falavam da festa para a qual se dirigiam. O mais certo era que, para eles, o Natal fosse uma ocasião cheia de luz, amor e biscoitos de canela. A pessoa que se preparava para cometer o crime tinha a certeza de que eles, bem como a lei, a polícia e os jurados, as revistas e os tablóides diriam que matar no Natal era errado. Mas a verdade é que não conheciam os segredos da vítima. Pelo menos, até àquele momento. Quando conhecessem, aplaudiriam, com certeza, a pessoa que se preparava para cometer o crime e desejar-lhe-iam um Natal muito feliz.