Prólogo

Na primavera de 2023, fiz um discurso na Academia Sueca sobre a guerra de Putin contra as mulheres. Encorajada pelas reações do público, decidi desenvolvê-lo e transformá-lo num ensaio sobre o tema da misoginia como instrumento de poder na Rússia. A violência sexual na Ucrânia é uma componente essencial do genocídio que tem por alvo os ucranianos. No plano interno, a misoginia dominante protege o regime, impedindo as mulheres de acederem ao poder. A nível internacional, é um instrumento de imperialismo. Estes três objetivos apoiam a grande missão de Putin: consolidar o poder central.

Como a Rússia já não tem uma ideologia exportável como o comunismo utiliza a misoginia, sob a capa de valores tradicionais, para encontrar aliados, assim como para formar comunidades nos países ocidentais onde o princípio da igualdade é fundamental. Esta instrumentalização do discurso de ódio é uma ameaça global aos direitos das mulheres e das minorias.

A misoginia como tática constitui, efetivamente, uma forma de enfraquecimento das democracias e de fortalecimento dos regimes autoritários. No entanto, a democracia não pode existir sem a participação das mulheres. O problema que aqui se coloca diz respeito ao futuro da humanidade e ao legado que deixamos às gerações vindouras.

Ao longo dos anos, quando escrevia artigos sobre este tema para o jornal Ilta-Sanomat e na revista Suomen Kuvalehti, os leitores perguntavam-me o que podíamos fazer. Em primeiro lugar, é imperativo pôr fim a esta tradição de impunidade da Rússia, que torna os crimes de guerra possíveis. Em segundo lugar, não devemos esquecer que a Europa de Leste conheceu dois sistemas totalitários, a Alemanha de Hitler e a União Soviética, mas esta última experiência nunca foi integrada na história cultural de toda a Europa. A lacuna deve-se à indiferença, à ignorância e à negação de que a Europa de Leste conhece bem a Rússia, bem como ao dinheiro dos oligarcas injetado nas economias ocidentais.

Portanto, não sejamos indiferentes, não desviemos o olhar.

I — Quando a violência sexual se torna uma arma

A minha tia-avó não nasceu muda. No início da segunda ocupação soviética da Estónia, foi levada para ser submetida a uma noite inteira de interrogatórios, após a qual deixou de falar para sempre. Quando regressou a casa de manhã parecia estar mais ou menos bem, mas nunca mais disse nada além de «Jah, ärä». Podíamos perguntar-lhe o que quer que fosse que a resposta era sempre a mesma: «Jah, ärä.» Ela nunca se casou, não teve filhos nem namorou com ninguém. Passou o resto da sua vida sozinha com a mãe.

Ouvi a história da minha tia-avó quando era criança. Os adultos não entraram em pormenores, mas toda a gente sabia o que se tinha passado durante aqueles interrogatórios. Também eu sabia.

Tânia Ganho junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 19 de setembro, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz o seu livro de memórias "O Meu Pai Voava", editado pela D. Quixote.

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Este é o regresso da autora ao clube, onde esteve em 2021 para falar sobre o aclamado "Apneia", romance que foi um sucesso junto da crítica e dos seus leitores. Agora, a conversa vai centrar-se na obra que chegou às livrarias em julho, "O Meu Pai Voava", um relato pessoal que é, em simultâneo, um tributo a um pai.

Saiba mais sobre a autora e o livro aqui.

Anos mais tarde, escrevi o meu romance A Purga, antecedido pela peça de teatro com o mesmo nome, enquanto acompanhava os julgamentos dos crimes de guerra cometidos nos Balcãs. Não podia acreditar que os campos de violação tivessem ressurgido na Europa contemporânea. A história da minha tia-avó deu-me o ponto de partida para A Purga. O que lhe tinha acontecido havia recomeçado. E acontecia de novo, em pleno coração da Europa.

A minha tia-avó nunca teve direito a justiça, nem nenhum membro da minha família. Perderam as suas terras, muitos foram mortos, alguns deportados. Dois conseguiram fugir a bordo de navios para o Ocidente. Como é evidente, ninguém esperava obter justiça sob ocupação.

Porém, o colapso da União Soviética mudou tudo isso. Os Estados bálticos recuperaram a independência e lançaram um processo de descolonização, à semelhança das antigas dependências das potências coloniais. Se anteriormente a investigação histórica na URSS era uma disciplina estritamente política, destinada a veicular propaganda, o fim da ocupação permitiu que a investigação, a ciência, a cultura e a imprensa se libertassem do jugo totalitário. A linguagem pública passou a ser a de um Estado independente. Finalmente, podíamos falar do passado a alto e bom som, sem subterfúgios. Podíamos estudá-lo e discuti-lo à luz do dia. As palavras readquiriram os significados que refletiam aquilo que era efetivamente vivido: as deportações eram deportações, as ocupações eram ocupações. As violações dos direitos humanos durante a era soviética foram investigadas, mas o sucessor legal da URSS, a Federação Russa, não ajudou nesta matéria e muito menos pediu perdão. Os países ocidentais não deram especial incentivo para que tal acontecesse, ao contrário do que haviam feito com a Alemanha após a Segunda Guerra Mundial. Talvez não o tenham considerado necessário porque os crimes daquela época não eram suficientemente importantes — em todo o caso, menos importantes do que apertar a mão a Putin e lavar o dinheiro manchado de sangue roubado ao povo pelos oligarcas. Como tinham fechado os olhos a estes crimes, a invasão ilegal da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022, apanhou os países ocidentais desprevenidos.

De uma perspetiva estoniana, a guerra na Ucrânia dá a impressão de recriar os acontecimentos da década de 1940, como se o botão de repetir estivesse a ser premido constantemente, uma vez que a Rússia está a usar o mesmo modus operandi das suas anteriores guerras imperialistas. Assistimos às mesmas práticas: terror infligido aos civis, deportações, tortura, russificação, propaganda, julgamentos-fantoche, eleições fraudulentas, culpabilização das vítimas, vagas de exilados, destruição da cultura. Contudo, a reação do Ocidente revelou que este plano do imperialismo russo era mal conhecido. É por isso que é necessário falar sobre os crimes de guerra do passado, porque devem ser julgados e porque devem ser gravados de forma permanente na nossa memória cultural. A menos que tenhamos consciência dos crimes do passado, não seremos capazes de detetar os próximos sinais de alerta. Apesar de a história de outras antigas potências coloniais figurar nos nossos currículos escolares, a Rússia nunca foi estudada do ponto de vista do colonialismo, o que se reflete na escola. Os países do ex-Bloco de Leste representam metade da Europa e estiveram sob o jugo de dois sistemas totalitários diferentes. No entanto, esta experiência nunca foi devidamente integrada na memória ocidental do nosso continente — não entrou na memória histórica global da Europa.

Reverter esse esquecimento seria uma forma de fazer justiça.

Após a Segunda Guerra Mundial, o Ocidente repetiu vezes sem conta «nunca mais», mas a expressão soava a falso para qualquer pessoa que tivesse vivido sob a política opressiva da Rússia. Os crimes contra os direitos humanos e o poder da ocupação soviética não cessaram após a queda da Alemanha de Hitler. «Nunca mais» dava a impressão que a nossa experiência não tinha qualquer importância. Com efeito, nunca foi inscrita na consciência cultural ocidental.

Uma fotografia

Destrói-se um povo destruindo a sua memória

Na parede do meu escritório está uma fotografia a preto e branco da minha tia-avó quando ainda falava. A matriarca da família posa no meio de um batalhão de crianças, com um bebé nos braços. A minha tia-avó olha timidamente para a câmara, a minha avó tem dois anos, todos calçam sapatos de couro feitos pelo pai. Ao fundo, vê-se o pátio da casa no verão, com peónias em flor. Ninguém presta muita atenção quando entra no meu escritório, e por uma boa razão: é um retrato de família do século passado, o mais banal possível. Não se vê a bandeira da Estónia ou outros símbolos da Estónia independente proibidos durante a era soviética, mas é um testemunho de um «Estado liquidado». Este facto seria o suficiente para tornar esta fotografia suspeita.

Para a levar para a Finlândia, tivemos de esperar até ao início da década de 1990, quando a Estónia recuperou a independência. Durante a era soviética não nos teríamos atrevido a transportá-la — clandestinamente — para a Finlândia, com receio de que fosse detetada na fronteira. As fotografias antigas faziam parte da longa lista de objetos que não podiam entrar nem sair da União Soviética. Uma fotografia destas na nossa bagagem teria dado origem a um turbilhão de perguntas: porque a tínhamos em nossa posse, o que significava para nós... Quaisquer que fossem as nossas respostas, o resultado seria o mesmo: teria sido confiscada. Durante a ocupação soviética, os estónios viram-se obrigados a retirar estas fotografias perigosas dos álbuns. Desapareceram, foram enterradas, escondidas atrás do papel de parede, como na nossa casa, para serem apenas mostradas na presença de pessoas de confiança. Na União Soviética, só era possível cultivar e manter viva a memória da família, a dos entes queridos e dos mortos, dentro dessa esfera privada. No que me diz respeito, foi graças a estas imagens que pude conhecer a minha família. As pessoas existiam através das fotografias escondidas e das histórias associadas. Foi assim que ganharam rosto.

Esta realidade nada tem a ver com a Finlândia, o país onde nasci e frequentei a escola. Aí, na altura do Dia de Finados, no Natal e no Dia da Independência acendem-se velas no cemitério. O meu avô era um veterano finlandês e o seu irmão gémeo morreu como um herói. Por isso, as guerras em que tinham participado faziam parte da história da minha família. Porém, as velas fúnebres acesas em honra dos mortos nestas cerimónias públicas finlandesas lembravam-me aqueles que podíamos apenas celebrar secretamente nos nossos pensamentos ou entre pessoas da nossa confiança. No Dia da Independência, as bandeiras finlandesas içadas nos mastros faziam-me pensar na bandeira tricolor da Estónia que foi proibida juntamente com os outros símbolos nacionais do «Estado liquidado» — incluindo o simples uso das suas cores, azul, preto e branco, mesmo na arte abstrata. Quando decorei o hino do juramento de fidelidade à bandeira, como outros alunos finlandeses, fiquei perturbada porque tal coisa não era possível na Estónia durante a ocupação soviética. Os meus colegas aprendiam a letra do hino na escola como se fosse algo natural. Em contrapartida, a nossa comunidade não estava autorizada a exibir os símbolos da Estónia independente, mesmo na Finlândia, que vivia um período de finlandização. Para todos os efeitos, a Estónia independente não existia porque a Finlândia tinha de se submeter publicamente à posição soviética em relação aos territórios ocupados. A URSS vigiava de perto os estónios expatriados. Qualquer comportamento antissoviético no estrangeiro teria posto em perigo os nossos familiares que permaneceram no país. Tinha a perfeita noção de que qualquer palavra ou ato considerado incorreto teria como consequência ficarmos privados de acesso à URSS. Nunca mais voltaria a ver a minha avó que lá vivia.

A União Soviética procurava assim destruir a minha lembrança dos territórios ocupados, incluindo a minha memória visual. Atualmente, a Rússia está a fazer o mesmo nas regiões que conquistou na Ucrânia. Além de substituir todo o corpo docente e russificar os currículos escolares, está a destruir a consciência do património cultural pilhando locais públicos dedicados à preservação da memória, como museus, mas também locais privados, como casas. Através das notícias, o mundo inteiro assistiu à ação das tropas russas a arrasarem cidades. As cidades estão cheias de casas, e essas estão naturalmente cheias de memórias e recordações. Nenhuma memória é considerada totalmente insignificante para o ocupante. Uma só fotografia, um só relato, pode preservar a história de toda uma família. É por isso que a Rússia não se limita a pilhar coleções de arte. As fotografias privadas são igualmente perigosas, pois preservam memórias que precisam de ser erradicadas. Preservam a memória dos crimes russos e da Ucrânia como nação independente.

No início da ofensiva russa, Illia, de vinte e dois anos, estava em casa, em Kramatorsk. Quis partir de comboio com a mãe e a irmã. Estavam lá no dia 8 de abril, quando a Rússia bombardeou uma estação cheia de civis. Os ataques provocaram sessenta mortos e cento e dez feridos. A família de Illia escapou. Os três fugitivos tentaram partir de carro, mas a viagem foi interrompida no posto de controlo russo. Os soldados encontraram no telemóvel de Illia uma fotografia em que ele segurava uma bandeira ucraniana por ocasião do aniversário do Dia da Independência. Além disso, tinha instalada uma aplicação de encontros para minorias sexuais.

Illia foi abusado sexualmente por oito soldados do exército russo, que filmaram os seus atos. Só foi libertado após semanas de tortura, com a ajuda do exército ucraniano. O seu único «crime» foi ter guardado uma recordação no telemóvel.

Hoje em dia, as fotografias não são eliminadas da mesma forma como acontecia na era soviética, mas a posse de imagens consideradas perigosas continua a representar um risco, uma ameaça, um perigo para os mais próximos. Guardar lembranças físicas torna-se prejudicial e as fotografias são estigmatizadas. Isto é suficiente para destruir a memória visual, fator essencial na construção da identidade. O simples medo de represálias, por si só, leva as pessoas a apagarem os dados — portanto, a memória — do telemóvel. Tenho um amigo que deixou Kiev dez dias depois da grande ofensiva, prevendo que, se não o fizesse, teria de atravessar um posto de controlo russo, algo que temia mais que os próprios bombardeamentos. Porém, não conseguia resignar-se a apagar antecipadamente o conteúdo do seu telemóvel e, mesmo que o tivesse feito, seria sempre possível encontrar provas online das suas afinidades. Muitas pessoas decidiram permanecer em território ocupado por esta razão. Não se atreveram a apresentar-se nos postos de controlo russos como Illia de Kramatorsk e a sua família fizeram.

No passado, a Rússia já tinha tolhido o comportamento das pessoas e usurpado a sua memória visual. Está a fazê-lo de novo. A ocupação anda sempre de mãos dadas com uma mudança de paradigma moral: o que era correto e respeitável torna-se errado e perigoso.

Illia de Kramatorsk vem de um mundo completamente diferente do mundo da minha tia-avó, filha de um camponês, criada no início do século passado na Estónia Ocidental. Não são do mesmo sexo. No entanto, os dois têm uma experiência em comum que transformou as suas vidas. Ambos são civis. Ambos sofreram violência perpetrada por indivíduos mandatados pela Rússia.

No debate público sobre a violência sexual ainda se ouvem ecos das velhas ideias segundo as quais o ato está associado a impulsos masculinos, sendo, por isso, incontrolável. Não é esse o caso. Este tipo de violência é praticado quando o agressor sabe que está a salvo de qualquer sanção penal.

As experiências de Illia e da minha tia-avó têm também em comum os motivos dos seus agressores, que não se alteraram ao longo das décadas. A Rússia usa a mesma arma geração após geração, e pelas mesmas razões: desonrar a vítima, esmagar a resistência e afirmar a sua posição dominante, sendo cada caso de violência sexual um aviso dissuasor para as nações ocupadas.

Illia de Kramatorsk vive neste momento na Ucrânia independente e está a receber acompanhamento terapêutico. Os seus agressores talvez nunca venham a ser julgados, mas o facto de ele falar aberta e publicamente sobre aquilo que sofreu encoraja outras vítimas a denunciarem. No mundo da minha tia-avó, isso era impossível. Na geração em que viveu, não teve a possibilidade de encontrar na televisão ou na Internet testemunhos com relatos de experiências semelhantes à sua. Pelo menos, hoje em dia, as vítimas beneficiam deste avanço. O facto de saberem que não estão sozinhas alivia o sentimento de culpa: se tantas pessoas sofreram o mesmo, atualmente e nas gerações anteriores, por certo não foi a vítima que provocou a situação.

Uma erva daninha

Documentar os crimes sexuais

Mikhaïl Romanov, de trinta e dois anos, é pai, marido e soldado do exército russo. Na primavera de 2022, invadiu uma casa em Bohdanivka, na região de Kiev. Matou o proprietário e logo a seguir violou a sua viúva. O crime durou horas. O filho das vítimas, da mesma idade do filho de Romanov, chorava no quarto ao lado enquanto o soldado cometia o crime.

Em maio de 2022, Romanov foi julgado à revelia na Ucrânia. Este julgamento por violação foi o primeiro das atrocidades russas, sendo apenas um início. As tropas que atacaram a Ucrânia cometeram sistematicamente atos de violência sexual contra civis de todas as idades, independentemente do género.

As provas recolhidas por observadores e investigadores estrangeiros revelam atos nunca antes vistos, mesmo no contexto do horror das guerras da Bósnia ou do Ruanda. As violações são, de um modo geral, públicas. Os soldados russos praticam-nas na rua ou obrigam outros membros da comunidade a assistir. Os pais são obrigados a assistir à violação dos filhos, e os filhos à violação dos pais. Algumas vítimas são violadas até à morte.

A violência sexual traumatiza, destrói famílias e comunidades inteiras ao longo de gerações, perturba a estrutura demográfica. É por isso que é um instrumento de dominação tão prezado e é por isso que a Rússia faz questão de usar esta arma ancestral. No caso da Ucrânia, pode colocar-se a questão de também ser um instrumento de genocídio.

A teoria do genocídio foi desenvolvida a partir da década de 1930 por Raphael Lemkin, um advogado judeu polaco licenciado pela Universidade de Lviv, enquanto fugia dos pogroms. Utilizou pela primeira vez a palavra genocídio em 1943. O conceito viria a desempenhar um papel central nos Julgamentos de Nuremberga e na redação da Convenção das Nações Unidas adotada em 1948. Segundo Lemkin, o genocídio não é um ato isolado. Trata-se de um processo planeado que tem como alvo um modo de vida indispensável a uma determinada faixa da população, que visa destruir os seus alicerces com o objetivo de erradicar os grupos humanos em questão. O homicídio não é indispensável: há várias formas de erradicar. Se as outras medidas não resultarem, «pode-se utilizar a metralhadora como último recurso». Contudo, antes de mais tenta-se erradicar a cultura, a língua, o sentimento nacional, a religião, as instituições e a saúde, as noções de segurança, de liberdade e de dignidade, para que a população-alvo «murche e morra como uma erva daninha».

A violação pode ser qualificada como genocida consoante a intenção, dependendo esta caracterização das circunstâncias. Na Ucrânia, a violência sexual perpetrada pelos soldados russos é parte de um conjunto mais vasto, não pode ser analisada sem ter em conta o contexto. A história da Ucrânia e da Rússia, a promoção da igualdade entre homens e mulheres nestes dois países, o imperialismo russo e a sua implementação, todos estes fatores formam um todo.

No que respeita à Rússia, a intenção genocida manifesta-se nos discursos de Estado e nos meios de comunicação social, que repetem constantemente que a Ucrânia não é um Estado e os ucranianos não existem. Do mesmo modo, nas palavras dos soldados que cometem violência sexual, encontram-se frequentemente figuras de estilo que pertencem ao campo semântico do genocídio. Por exemplo, relataram que violavam as vítimas até estas deixarem de ter vontade de ter relações sexuais com ucranianos. Ao castrarem os prisioneiros de guerra, justificavam-se dizendo que isso os impediria de ter filhos.

Em 2022, muitos especialistas sublinharam a dificuldade de caracterizar uma violação como genocida, de pronunciar o veredito, de qualificar o crime como parte de um genocídio. Compreendo essa dificuldade e compreendo que os julgamentos são muito onerosos e requerem muitas horas de trabalho. Contudo, surpreende-me que este seja praticamente o único argumento no debate público ocidental, uma vez que existem várias formas de justiça. Dar a palavra em público é também uma forma de fazer justiça. Mostrar apoio é também uma forma de fazer justiça. Condenar as ameaças e a culpabilização das vítimas é também uma forma de fazer justiça. Se nos concentrarmos na dificuldade do sistema legal em definir uma violação genocida ou em perseguir os culpados, que mensagem está a ser enviada às vítimas? Que mensagem está a ser enviada à Rússia? Que mensagem está a ser enviada às testemunhas? Que elas são... difíceis? Que os casos são difíceis? Tão difíceis que é melhor não falar do crime? Se for este o ponto de vista dominante, dá-se uma culpabilização indireta das vítimas, como se o ónus da prova recaísse nelas. Não, estes casos não são difíceis.

A Rússia é que é um caso difícil.

A minha tia-avó não teve filhos. O que ela sofreu talvez hoje em dia não fosse qualificado como violação genocida, mas o facto é que nunca teve uma relação conjugal e nunca se casou. A mãe dela, por seu turno, teve oito filhos. Um dos irmãos da minha tia-avó enlouqueceu quando viu os amigos a afogarem-se num pântano, perseguidos pelo NKVD,  e morreu pouco tempo depois. Apenas um dos irmãos sobreviveu aos primeiros anos da ocupação soviética, e a sua única filha conseguiu fugir do país. E assim, dos oito irmãos e irmãs, apenas alguns tiveram filhos. Esta é a consequência do poder soviético. A taxa de natalidade na Estónia ocupada era uma das mais baixas da URSS.

Muitas mulheres ucranianas, mesmo aquelas que vivem atualmente fora da Ucrânia, sentem que a violência sexual exercida pelo exército russo perturbou a relação com a sua feminilidade. Eis o que uma delas me confessou:

«Qualquer contacto físico é para mim doloroso, até os abraços. A minha vida sexual está morta. A minha libido foi-se. Já tentei várias vezes, mas acabo sempre a chorar. Não consigo esquecer que o sexo se tornou um instrumento de violência. É horrível. É horrível estar na cama, a tentar beijar a pessoa que amo e que talvez nunca mais volte a ver, e perguntar-me com que lembrança ficaria dele se não voltasse.

»Um inimigo sorrateiramente a esgueirar-se para a minha cama? Não, não quero pensar nisso. Não quero sentir-me impotente. Não, o nosso inimigo é o canalha que quer destruir a parte mais íntima das nossas vidas. Ele diz para si próprio: “Não podemos conquistar-vos? Então vamos impedir-vos de terem filhos, vamos impedir-vos de criarem a próxima geração, vamos impedir-vos de perpetuarem a vossa linhagem.”»

A violência sexual em zonas de conflito assume muitas formas além da violação: ameaças de violação, agressões e ferimentos infligidos às mulheres grávidas, ser obrigada a agachar-se e a despir-se, cabelo cortado, violência nos órgãos genitais. Isto também se aplica aos homens. São experiências que deixam uma marca fortíssima, impossível de esquecer, não só nas vítimas, como também nas testemunhas oculares e aqueles que acompanham à distância. Uma amiga minha, hoje com mais de setenta anos, era pequena quando um soldado russo violou a mãe dela, em casa, no quarto ao lado. Ainda hoje não consegue ouvir falar em russo sem tremer de medo.

A Rússia serve-se da violência sexual como de uma arma, fazendo dela um instrumento de intimidação suprageracional e supranacional. Desde a Guerra Fria que a expressão «equilíbrio do terror» é bem conhecida. A violência sexual, contudo, não permite o mesmo equilíbrio, e é por isso que a Rússia gosta tanto de recorrer a ela. Face a este instrumento de intimidação, o Ocidente não pode responder da mesma forma. No entanto, isso não significa que devamos resignarmo-nos ao silêncio ou à indiferença, atitudes que serviriam os interesses da Rússia — bem como os dos ditadores e chefes militares de outros países que observam atentamente as nossas reações. Em Titus Andronicus, uma das primeiras tragédias de Shakespeare, a filha do rei, Lavínia, é violada. Para evitar serem denunciados, os autores do crime cortam-lhe a língua e, por precaução, amputam-lhe também as mãos para que ela não possa apontar-lhes o dedo. Do mesmo modo, a Federação Russa procura calar as vítimas do terror que exerce utilizando uma vasta gama de meios, tal como fazer com que as vítimas se sintam culpadas. Esta é uma tática eficaz porque vai ao encontro do sentimento de vergonha e de estigmatização que acompanham a experiência da vítima de violência sexual de um modo universal.

Algumas pessoas acreditam que falar de violação incita a uma escalada, como se não falar sobre o assunto pudesse evitar mais violações. A minha tia-avó nunca contou a ninguém o que lhe aconteceu. Muitas pessoas ficaram em silêncio perante os crimes do Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial. Muitas ficaram em silêncio durante as guerras na Chechénia e na Síria. Muitas ficaram em silêncio na Crimeia e nos Estados-fantoche da Ucrânia Oriental controlados pela Rússia desde 2014.

O facto é que o silêncio não impediu o exército russo de voltar a cometer os mesmos crimes.

No tempo da minha tia-avó não se falava em público da violência sexual, era impossível fazê-lo sob a ocupação soviética, tal como acontece atualmente na Ucrânia ocupada pela Rússia. Noutros lugares é diferente, mas quando se fala na guerra e na Rússia, as vítimas de violência sexual são sempre referidas de forma marginal ou meramente estatística.

Quando Beth Rigby entrevistou Olena Zelenska na Sky News em novembro de 2022, perguntou-lhe de imediato qual o número de violações cometidas pelo exército russo. A pergunta é comum em entrevistas relacionadas com a violência sexual em tempo de guerra. No entanto, o ato de quantificar é limitado, pois não revela o verdadeiro impacto e todas as implicações do fenómeno. Não permite saber quantas pessoas são indiretamente afetadas. Não mostra quantas são afetadas nas suas carreiras, nas suas opções profissionais ou na sua capacidade de trabalho. Não indica quantas sofrem na sua vida social. Não fala daquelas que perdem a fala, como a minha tia-avó, ou passam a usar apenas roupa que lhes permita esconder o corpo. Não fala das mulheres ucranianas que disfarçam as filhas de rapazes, ou daquela que armazenou estrume em casa para despejar baldes sobre a filha e nela própria assim que os soldados russos se aproximassem. Não fala da geração perdida, dos filhos que as vítimas nunca terão. Não fala das mulheres ucranianas que evitam a intimidade com o marido por causa do que aconteceu a outras mulheres no país. Não fala das que são abandonadas pelos seus companheiros quando estes descobrem que foram violadas. Não refere quantas mulheres foram infetadas com o VIH ou que sofrem de problemas de tiroide para o resto da vida — tal como constatam os médicos quando lidam com vítimas de violação em tempo de guerra, além de vários outros problemas físicos. A violência sexual pode ter um impacto permanente na saúde da vítima.

A Guerra de Putin contra as mulheres
A Guerra de Putin contra as mulheres créditos: Penguin Random House Grupo Editorial Portugal

Livro: "A Guerra de Putin contra as mulheres: uma história antiga de violência e opressão"

Autor: Sofi Oksanen

Editora: Objectiva

Data de Lançamento: 9 de setembro de 2024

Tradutora: Carolina Cruz

Preço: € 16,61

Publicado com o acordo da Salomonsson Agency

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A violação é ainda mais difícil de quantificar porque as mulheres nem sempre estão em condições de precisar quantas vezes o ato foi cometido e quantos eram os agressores. Numa violação em grupo, pode haver tantos violadores que a vítima perde a capacidade de os contar. Os atos podem prolongar-se durante dias, semanas, meses, anos. As vítimas não estão necessariamente conscientes, podem ter sido sedadas ou fechadas numa cave. Podem ter a cabeça tapada com um saco ou um capuz. Mesmo assim, os investigadores, as autoridades e os jornalistas querem saber os números. Sempre. A advogada de direitos humanos e Prémio Nobel da Paz, Oleksandra Matviïtchouk, documenta crimes de guerra no âmbito do seu trabalho. Porém, a sua preocupação não consiste em determinar em que artigo da lei se enquadra um determinado crime. «O que nós documentamos é a dor das pessoas.»

Não pretendo minimizar a importância dos números, mas há outros aspetos que importa determinar: quantos anos ou décadas a vítima perdeu até deixar de pensar no que aconteceu. Quantos dias, semanas, anos, décadas perdeu até ser capaz de ter relações íntimas sem pensar no que aconteceu. Quantos anos ou décadas são precisos para que os corpos possam sarar... e as almas também. As mesmas perguntas poderiam ser feitas às pessoas próximas, aos pais, cônjuges e filhos, a todos aqueles que testemunharam estes crimes ou que foram obrigados a participar neles de uma forma ou de outra. Talvez o hábito de contar os soldados mortos ou feridos tenha instituído o número de cadáveres e de membros amputados como referência, a ponto de não haver necessidade de desenvolver outro indicador para avaliar os danos causados pela guerra. Talvez o número de armas e munições divulgado nas notícias se tenha tornado o único indicador. A questão é que as violações raramente deixam cadáveres para serem contados. Raramente é possível mencioná-las nas notícias em tempo real. Talvez isto explique o facto de o estudo das consequências a longo prazo dos crimes sexuais estar ainda a dar os primeiros passos. Talvez não se considere necessário financiar este tipo de pesquisa, por se entender que não «nos» diz verdadeiramente respeito — por «nós» leia-se o mundo ocidental branco.

O silêncio das vítimas é compreensível. Os prisioneiros de guerra ucranianos libertados receiam represálias contra as pessoas que lhes são próximas ou os seus camaradas ainda detidos. Numa entrevista ao Toronto Star, a oficial ucraniana Yulia Gorochanska relatou aquilo que os representantes da Rússia lhe disseram quando foi libertada: «Se eu contasse a verdade sobre o que tinha acontecido, iriam atacar todos aqueles que amo.» Apesar disso, incita os outros a contarem aquilo por que passaram. Com efeito, promover uma atmosfera de discussão livre de culpas e ameaças é um dever que nos compete, assim como garantir que as experiências das mulheres sejam incluídas nos debates sobre a Rússia e na tomada de decisões. Só através da discussão pública e da disponibilização de recursos para investigar os crimes, não perdendo de vista a questão, é que conseguiremos mostrar às vítimas que não somos indiferentes ao seu sofrimento. Que as suas histórias são importantes. Que a Rússia não alcançará o seu objetivo, armando-se de toda a panóplia de formas de violência sexual. Que o agressor não conseguirá fazer prevalecer o silêncio que deseja.

Do ponto de vista da Ucrânia, a condenação da Rússia pelos seus crimes de guerra é uma condição sine qua non para as negociações de paz. Entre estes crimes, a violência sexual é o mais negligenciado e historicamente subestimado. Por conseguinte, é de temer que estes crimes sejam relegados para segundo plano. Até ao verão de 2023 falou-se muito de negociações de paz, mas a participação das mulheres e o sofrimento por que passaram não mereceu especial destaque.

Justiça

O silêncio e a vergonha não fazem justiça

Por vezes, pergunto‐me o que poderia ter ajudado a minha tia‐avó a recuperar a fala. Será que o fim da ocupação teria sido suficiente? Teria voltado a falar se a independência da Estónia tivesse sido restaurada quando estava ainda viva? Ter‐se‐ia sentido reconfortada ao ouvir na rádio canções proibidas durante o regime soviético? E se tivesse podido sair de casa sem medo de se cruzar com os homens que a tinham interrogado? O medo de reencontrar os agressores, torturadores e violadores é ainda uma realidade para muitas vítimas, nomeadamente na Ucrânia ocupada.

No seu livro Our Bodies, Their Battlefield, a correspondente de guerra Christina Lamb escreve sobre as mulheres yezidi que estão a convalescer na Alemanha depois de terem sido violadas por combatentes do Daesh. O processo de psicoterapia deparou‐se com obstáculos ines‐ perados. Quando lhes era perguntado como estavam, respondiam que os seus filhos estavam bem. Não estavam habituadas a falar da violência que sofreram, nem tão‐pouco das suas experiências em geral. Algumas tinham deixado de falar, como a minha tia‐avó. Outras voltaram a falar ao fim de um ano.

As yezidis e a minha tia‐avó não são as únicas que caíram no mutismo em reação à violência sofrida. O mesmo aconteceu a Victoire Mukambanda, uma sobrevivente do genocídio dos Tutsi, que só mais tarde veio a saber que outras mulheres tinham sido violadas em todo o Ruanda, que as suas familiares e amigas não eram as únicas. Victoire também não fazia ideia de que outras mulheres tinham sofrido o mesmo destino noutras guerras. Conseguiu recuperar a fala e testemunhou, sob o pseudónimo JJ, no julgamento em que foi decretada a primeira sentença por violação como crime de guerra, em 1998. O arguido Jean-Paul Akayesu, presidente da Câmara de Taba, foi julgado por ter dado a ordem para matar tutsis. O testemunho de Victoire Mukambanda estava longe de ser um dado adquirido: antes dela, muitas mulheres foram assassinadas depois de terem prometido depor em tribunal. O primeiro julgamento internacional por violação registado na História remonta a 1474, com a condenação de Pierre de Hagenbach, ao serviço do duque da Borgonha. Durante anos, o cavaleiro e as suas tropas aterrorizaram civis, cometendo violações, entre outros ataques. O tribunal composto por vinte e oito juízes convocado pelo imperador condenou Hagenbach à morte, embora ele tenha alegado em sua defesa que estava apenas a obedecer a ordens. Este caso é importante uma vez que se trata do primeiro julgamento documentado no qual foi imputada a responsabilidade a um comandante pelos atos cometidos pelas suas tropas, através de um tribunal internacional.

Seguiu-se um longo interregno de silêncio na História.

Na altura da Guerra Civil Americana, o jurista Franz Lieber modernizou a legislação em matéria de direitos e deveres do exército da União. Conhecida como Código Lieber, a lei que entrou em vigor em 1863 obrigava os militares a tratarem as populações com humanidade e proibia a tortura como tática de guerra, nomeadamente a violação de civis, sob pena de condenação à morte.

Na atualidade, os primeiros julgamentos por violação como crimes de guerra datam de 1998, no Tribunal Penal Internacional para o Ruanda. Posteriormente, os julgamentos da ex-Jugoslávia e dos genocídios no Darfur ajudaram a desenvolver instrumentos jurídicos e a compreender melhor as consequências da violência sexual. No entanto, o número de sentenças proferidas é irrisório em comparação com os crimes de guerra cometidos, apesar de ter permitido uma melhor compreensão do papel da violação na implementação de um genocídio.

O número reduzido de julgamentos é atribuível à falta de vontade política. A violência sexual não é considerada um crime de guerra tão grave como os outros. Além disso, há sempre casos com desfechos mais previsíveis e vereditos mais certos. Por outro lado, como os julgamentos são dispendiosos, apenas uma fração dos crimes é levada à justiça. Consequentemente, trata-se uma questão de escolha, e a falta de vontade leva a escolhas em que os culpados de violência sexual saem impunes com mais facilidade. Ou seja, a impunidade permite que esta arma volte a ser utilizada no futuro.

A vontade política é também influenciada pela opinião pública, sendo que as notícias desempenham um papel preponderante nesta matéria. A violência sexual nunca foi um assunto tão importante quanto os outros. Na literatura militar, é um tema sub-representado. Christina Lamb, jornalista britânica, disse que os editores apresentavam as suas reportagens com uma advertência de conteúdo sensível ou consideravam-nas demasiado perturbadoras para os leitores.

Ora, o dever da imprensa não é proteger-nos, mas falar daquilo que nos perturba. Desviar o olhar não é fazer justiça, é tornar possíveis os crimes de guerra no futuro porque «a guerra mata pelas mãos dos indiferentes».

Existe outro fator que influencia a vontade política: a forma como a violação é vista enquanto crime. Enchem-nos os ouvidos com o velho mito dos «impulsos masculinos». Publicado em 1975 nos Estados Unidos, o livro da jornalista Susan Brownmiller intitulado Against Our Will: Men, Women, and Rape foi um dos primeiros a analisar a violação como uma tática militar e um problema político, não como um crime passional tal como é frequentemente retratado no ecrã. Os velhos mitos perduram pela simples razão de que ainda estão vivos na nossa cultura. No meio artístico, durante séculos a violação em tempo de guerra foi usada como pretexto para representar a nudez numa altura em que a pornografia era condenada. A escassez de roupa e a violência sexual eram elementos admissíveis no âmbito de um determinado contexto histórico ou relacionado com a mitologia antiga. A premissa de venda era que as vítimas retratadas deveriam ser mulheres sexualmente atraentes aos olhos do comprador de arte da época. Por conseguinte, a história da arte moldou toda uma visão cultural das vítimas e dos seus destinos. É difícil construir uma nova imagem da violação em tempo de guerra porque visualmente é um tema perturbador nas notícias. Quanto mais difícil é a representação de um tema através de imagens, mais os estereótipos persistem.

Hoje, apesar de os velhos estereótipos se manterem, a situação é melhor do que nunca desde o início da nossa era. A criminologia desenvolveu-se. Os lençóis recolhidos no local de um crime de guerra permitem agora aos investigadores descobrirem informações que seriam inimagináveis há algumas décadas. Na Ucrânia as pessoas recebem formação, é-lhes dito que materiais são admissíveis em tribunal, é-lhes explicado o que deve ser filmado para constituir uma prova. Este material pode ser enviado anonimamente através da Internet, incluindo no território da Federação Russa. Na sequência da ofensiva russa, a associação de juristas ucranianos JurFem tornou-se um centro de referência e apoio às vítimas de violência e discriminação sexual. A associação conta com muitos voluntários que distribuem material informativo de criminologia aos cidadãos.

No caso dos crimes sexuais, a falta de provas é precisamente o maior obstáculo aos processos criminais. Na Ucrânia, o registo de provas e a sua divulgação nos meios de comunicação social iniciou-se de forma imediata e célere graças às novas tecnologias e aos smartphones. Esta é uma prática sem precedentes na história das violações em cenário de guerra. Significa que os processos podem ser instaurados enquanto a guerra está ainda a ser travada. Segundo Oleksandra Matviitchouk, o legado da Segunda Guerra Mundial e os Julgamentos de Nuremberga deram origem à ideia de que os crimes de guerra só poderiam ser julgados a posteriori. É necessário mudar esta ideia: os crimes de guerra julgam-se no presente.

Aquilo que os ucranianos estão a aprender por força das circunstâncias é uma lição que pode ser aplicada a futuras zonas de conflito, assim como aquilo que os outros aprenderam com os crimes de guerra anteriores pode ser útil à Ucrânia. Em 2018, o Prémio Nobel da Paz foi atribuído ao médico Denis Mukwege e à ativista Nadia Murad. Murad tinha sido usada como escrava sexual pelos combatentes do Daesh porque era yezidi, e Mukwege trabalhou durante muito tempo na República Democrática do Congo com vítimas de violência sexual. Durante esses anos, na sua clínica, o médico congolês desenvolveu uma modalidade de tratamento holístico. Este método tem sido utilizado na Ucrânia e a Fundação Mukwege oferece programas de formação aos ucranianos que trabalham com as vítimas.Contudo, mesmo partindo do princípio de que as pessoas que necessitam têm acesso a este tipo de apoio a nível local, apenas uma minoria irá ao médico. Muitas decidem esconder o que lhes aconteceu por sentirem vergonha e por terem medo do que os outros possam dizer.

As histórias das vítimas que são tornadas públicas são apenas a pequena ponta visível de um enorme e profundo icebergue.

Para que os processos e a gestão dos crimes sexuais decorram de forma adequada e eficaz, é fundamental aumentar o número de mulheres entre os investigadores, jornalistas, juristas e magistrados. Isto deve-se ao facto de as mulheres serem mais capazes de reconhecer os sinais de violação e mais rigorosas no tratamento do problema e de as vítimas terem mais facilidade em falar com elas. Nos tribunais, verificou-se que as procuradoras e as juízas sabiam fazer as perguntas certas. Como contraexemplo extremo refira-se que durante os Julgamentos do Ruanda os advogados dos arguidos perguntaram a TA, uma testemunha que tinha sido violada dezasseis vezes, se teria sido possível isso acontecer se entretanto não se tivesse lavado. A reação dos juízes foi de riso. Saber fazer as perguntas certas é mais importante do que se possa pensar, tal como saber interpretar as fotografias e os vídeos.

Os jornalistas de investigação da rede Bellingcat resolvem crimes explorando as fontes públicas. Por exemplo, conseguiram identificar um combatente do exército russo responsável por castrar um soldado ucraniano ao reconhecerem o seu chapéu. De facto, toda a gente, incluindo as vítimas, os autores dos crimes e outras pessoas partilham na Internet, sem o saber, uma quantidade surpreendente de informações relacionadas com os crimes contra os direitos humanos — daí a importância de sensibilizar a opinião pública para esta questão. Reconhecer que o ato é um crime é já uma forma de justiça. Imagens que mostram mulheres detidas nuas ou soldados a praticar «brincadeiras» que impliquem violência sexual são pistas que podem ser usadas para determinar se o ato ocorreu antes ou depois da gravação do vídeo ou de a fotografia ter sido tirada. Da mesma forma, os objetos presentes no local não devem ser negligenciados: se a imagem mostrar garrafas, cabos de vassoura inteiros ou em pedaços junto das vítimas ou dos cadáveres, isso pode constituir um indício de um crime sexual.

Não quero de todo minimizar a importância da lei, muito pelo contrário. Porém, ao acompanhar os julgamentos em diferentes zonas de guerra ou de conflito, cheguei à conclusão de que precisamos de falar de justiça num sentido mais lato. A gravidade da violência sexual em contexto de guerra deve ser reconhecida fora dos tribunais. Para tal, é necessária uma mudança de atitude política. Isso não será possível se os cidadãos dos países democráticos não condenarem severamente estes abusos e só poderá ser alcançado se falarmos destas questões sem rodeios. É a única forma, não há outro caminho. Nunca será graças a um mistério caído do céu de forma inesperada ou inexplicável.

Ouvir as vítimas e respeitá-las é uma forma de justiça, assim como dar-lhes visibilidade e prestar-lhes homenagem. Não há estátuas para as vítimas de crimes sexuais, nem selos comemorativos, nem ruas com o seu nome, nem nenhuma data no calendário em sua homenagem. Nenhuma bandeira é hasteada para homenageá-las. Não recebem as mesmas honras que os heróis de guerra ou as figuras de importância nacional. Ora, honrar é definitivamente uma maneira de fazer justiça.

Quando depõem, é frequente as vítimas não compreenderem que o culpado não será necessariamente detido, e que nem todos os casos serão alvo de um processo. Contudo, para elas o mais importante é serem ouvidas e não permanecerem na invisibilidade. É necessário documentar os crimes e não descartar as experiências sofridas. Respeitar as vítimas é exatamente isso.

O respeito elimina a vergonha associada aos crimes sexuais. O tratamento público e respeitoso destes crimes significa prestar um serviço aos homens e às mulheres que sofreram crimes semelhantes — tal como nos mostraram os resultados do movimento MeToo. No Japão, um assunto voltou à tona no início da década de 1990: o trabalho sexual forçado durante a Segunda Guerra Mundial. Na Coreia, na China, no Vietname, nas Filipinas e noutras zonas ocupadas, o exército japonês reduziu as mulheres à escravatura sexual como «arma de conforto», antes e durante a guerra. Muitas destas «mulheres de conforto» suicidaram-se.

Depois da guerra, o Japão minimizou o fenómeno. Calcula-se que tenham sido forçadas a prostituir-se entre 50 mil e 200 mil mulheres. São poucas as que ainda estão vivas. Nas Filipinas, a primeira a falar em público foi Rosa Henson, em 1992, aos sessenta e cinco anos. Até então, não havia contado a ninguém, à exceção da mãe e do falecido marido. Os crimes sofridos remontavam a várias décadas, mas o seu testemunho levou a outros e durante a década de 1990 os processos não pararam. Houve casos em que os descendentes das vítimas foram também abrangidos pela justiça. Em 2021, um juiz sul-coreano decretou que fossem concedidas indemnizações a doze mulheres e às respetivas famílias pelo seu sofrimento. Os julgamentos relacionados com a prostituição forçada no Japão ajudaram os tribunais penais do Ruanda e da Jugoslávia a julgar as violações como crimes de guerra. Nos Balcãs, aconteceu o mesmo que na Ásia: uma entrevista pública com uma vítima desencadeou uma vaga de novos testemunhos. Na Ucrânia, a cineasta Alisa Kovalenko, detida no Donbass em 2014, foi a primeira a contar a sua história. Os seus agressores eram soldados russos. No início, sentiu-se constrangida quando foi contactada por organizações de direitos humanos. As restantes vítimas não tinham ainda falado publicamente, mas por fim convenceu-se a dar o primeiro passo na esperança de que talvez outra vítima ousasse também falar. Alisa Kovalenko tinha razão.

Estes exemplos representam uma preocupação para o Kremlin, uma vez que a abertura de um processo ucraniano por violação poderá instigar um MeToo legal que denuncie a situação das vítimas destes crimes cometidos em contexto de guerra há décadas, levantando, em simultâneo, a questão do direito a indemnizações, incluindo para a segunda geração.

Note-se que o Japão não embarcou de bom grado neste processo de reparação moral: a participação civil foi indispensável, assim como a pressão de outros países e a possibilidade de falar publicamente sobre violência sexual. Dito isto, a denúncia destes crimes não deveria ser uma prerrogativa das mulheres.

O jornalista Stanislav Asseyev foi raptado em 2017 pela milícia do Estado-fantoche de Donetsk. Passou 962 dias em Isolatsia, uma antiga fábrica reconvertida em centro de arte, e por fim transformada em prisão pelo novo regime. Libertado em 2019 graças a uma troca de prisioneiros, publicou o livro Donbass — Um Jornalista no Terreno Conta. A escrita deste livro apenas foi possível porque sobreviveu. Muitos outros não tiveram a oportunidade de contar porque foram mortos. Dentro desta prisão supervisionada pelo FSB e conhecida como «o Dachau do Donbass», a tortura dos prisioneiros era permanente, em particular nos órgãos genitais. Não se tratava de um método de interrogatório mas de um mero entretenimento para os guardas. Além da utilização de choques elétricos, os torturadores batiam na vítima com um cano reservado para o efeito, até que os órgãos genitais ficassem inchados como os de um boi. Escrotos rasgados e violações eram uma ocorrência diária. Tudo era filmado. Cada cela estava equipada com uma câmara, assim como todas as divisões da prisão. Existe uma enorme quantidade de dados, terabytes de gravações, centenas de horas de material para os tribunais. Asseyev conta que tinha a sensação de estar a assistir a um teste: «Será que estas pessoas podem realmente continuar a filmar os seus crimes com toda a impunidade, durante seis anos, fazendo pouco de todos os relatórios das Nações Unidas? Parece que sim, e assim sendo a prisão de Isolatsia revela-nos a verdadeira face do mundo em que vivemos.»

O Dachau do Donbass ainda está a funcionar. Existem mais de cento e sessenta prisões ilegais deste tipo na região.

Nos centros de detenção, prisões e campos de concentração, a violência sexual contra homens é frequente, ameaçando de forma permanente prisioneiros de guerra. A tortura por eletrocussão dos órgãos genitais é comum, tanto para os civis como para os soldados feitos prisioneiros.