PRIMEIRA CARTA,
à Sra. Marquesa de B***
Não vos terá batido o coração toda esta noite, Senhora? Falou-se de Gatos numa casa de onde saio; desabridamente se falou deles, e vós sabeis quanto custa suportar essa injustiça. Não vos darei relação de todos os ridículos e vícios de que os Gatos foram acusados.
Muito me transtornaria repeti-los aqui.
Tentei defender a sua causa: parece-me que falei com razão; mas nas disputas é com a razão que se persuade alguém? Teria precisado antes de engenho. Onde estáveis, Senhora? Suportei primeiro a investida que me fizeram com aquele sangue-frio e moderação que se deve manter na exposição das opiniões mais arrazoadas, quando elas não estão ainda bem assentes no espírito: mas sucedeu um incidente que me desconcertou em absoluto. Apareceu um Gato, e logo uma das minhas Adversárias teve a presença de espírito de se desmaiar. Insurgiram-se contra mim; declararam-me que nenhum dos argumentos da Filosofia tinha poder algum contra o que acabava de acontecer; que os Gatos nunca foram, não são e nunca serão mais do que animais perigosos, insociáveis. O que me penetrou de dor foi que a maioria daqueles Conjurados era gente muito sensata.
Tenho de vos confiar um grande projeto, Senhora. Entre tantos feitos memoráveis que já alguns pro- curaram esclarecer e pôr em ordem, ainda ninguém se lembrou de fazer a História dos Gatos: não vos causa isto grande espanto? Homero não achou indigno da sua Musa descrever a guerra dos Ratos e das Rãs. Um dos capítulos de Luciano, tratado com o maior esmero, é um elogio da Mosca: e os Burros provaram já também a satisfação de se verem elogiados. Como é que os Gatos foram negligenciados? Não ficaria surpreendido se, para compor uma Obra em sua glória, fosse preciso recorrer à imaginação, mas, se olharmos atentamente para os Gatos dos séculos passados, quanta diversidade de acontecimentos, cada um mais interessante do que o outro, não iremos nós descobrir? Antes de expor esse quadro, pareceria deveras ridículo ousar admitir ter havido já algum Gato cuja vida foi talvez mais brilhante e atribulada do que a de Alcibíades ou Helena. Porém, se tanto um como a outra inflamaram guerras famosas, e se Helena viu altares erigi- dos à sua beleza, essas regalias nada ficam a dever a um grande número de Gatos e de Gatas que têm igualmente assento firme no Templo da Memória.
A História dos Gatos devia, pois, despertar naturalmente a emulação dos Escritores mais ilustres. Mas, afinal, posto que essa História não foi feita, a mediocridade dos talentos não deve calar o zelo. Ousarei intentar essa Obra, e creio-me capaz de a encetar, se prometerdes ajudar-me nesta empresa. Começaremos por procurar as fontes daquela falsa prevenção, assaz comum por aqui, que se tem contra os Gatos. Vamos expor em boa-fé as luzes que um longo hábito de comércio com eles e a reflexão nos proporcionaram. Daremos relação das formas diferentes que os interesses dos Gatos têm tido sucessivamente nas Nações, tomando todas as precauções convenientes para não revoltarmos as pessoas que têm, por puro sentimento, antipatia por eles. Recordaremos sempre que há certas repugnâncias naturais, as quais, segundo o Padre Malebranche, podem ser efeito da imaginação desregrada das mães, que influiu sobre a dos filhos, ou, como explica um célebre Filósofo Inglês, obra dos contos de alguma ama.
O temor é para as crianças a primeira lição, disse La Fontaine; e é, aliás, muito fácil reconhecer que as antipatias, adquiridas ou naturais, podem recair sobre os objetos que menos parecem atraí-las: há quem não possa ver pássaros sem estremecer; outros fogem quando dão com uma peça de cortiça. Germânico não podia sofrer o canto nem o aspeto de um Galo. Os Gatos, por esta maneira de ódio, não são, portanto, caracterizados como perigosos ou ruins. Ouve-se dizer, desde o berço, que os Gatos são por natureza traiçoeiros; que sufocam as crianças; que são talvez uns feiticeiros. A razão que sobrevem bem pode insurgir-se contra tamanhas calúnias, mas a ilusão falou primeiro: será ela a mais persuasora, mesmo depois de reconhecida como tal; e se os Gatos lograrem deixar de ser feiticeiros, continuarão a ser temidos, pelo menos, como se o tivessem sido efetivamente.
O Sr. de Fontenelle confessa que foi criado na crença de que na véspera do S. João não sobrava um único Gato nas Cidades, porque todos se reuniam nesse dia num sabat geral. Quanta glória a deles, Senhora, e quanta satisfação a nossa imaginarmos que um dos primeiros passos do Sr. de Fontenelle no caminho da Filosofia o tenha conduzido a desfazer-se de uma falsa prevenção contra os Gatos, e a encarecê-los!
Comentários