Em entrevista à agência Lusa a propósito dos 50 anos da independência de Moçambique, Mia Couto disse que a vê como a sua própria história, ele que tem “um bocadinho mais de idade” do que o país das capulanas.

“Quando o país nasceu já eu tinha quase 20 anos. Eu conheço o que existia antes, o que era antes da independência; sei o salto que nós demos em termos daquilo que é a dignidade das pessoas”, afirmou, recordando que, antes de 1975, a maioria dos moçambicanos era considerada indígena.

Uma memória que a maioria dos moçambicanos, com menos de 35 anos, não tem, o que os impossibilita de fazer comparações e, por isso, de viver a festa da mesma maneira, disse.

“A minha visão é uma visão positiva, porque mesmo com todos os fracassos que houve, mesmo com um sonho que não foi realizado no sentido coletivo, não há comparação com aquilo que foi antes. Antes não tínhamos país. Agora temos país”, referiu.

Mia Couto recordou que, até à independência, “a maior parte da gente que circulava dentro da cidade [Beira], nem sequer tinha sapatos para calçar”.

“Era uma relação quase de invisibilidade. Salvo alguns pequenos grupos de gente assimilada — que eram assim chamados, mas era um número ínfimo -, todos os outros eram indígenas e, portanto, eram invisíveis, não votavam. Essa é uma diferença de que é preciso ter orgulho, assim como a língua portuguesa, que teve um salto enorme”.

“Moçambique fez pela língua portuguesa aquilo que 500 anos de relação colonial não fizeram”, afirmou o escritor, que na quarta-feira passada participou no encerramento da 19.ª edição do festival literário LeV — Literatura em Viagem, em Matosinhos.

O autor de “Terra Sonâmbula” considera que o objetivo traçado em 1975 de, numa geração ou duas, mudar o mundo e redistribuir a felicidade, resultou de “uma certa ingenuidade”, embora continue a ser “um valor que não pode ser esquecido”.

“O sonho está certo, continua a estar certo, mas é preciso perceber que nenhum país, africano ou outro, conseguiu, nesse espaço de tempo de 50 anos, cumprir esse desejo de que haja escola, saúde, condições de habitação, etc., para toda a gente, de uma maneira justa”, disse.

Atribui à guerra que “durou 16 anos e destruiu tudo” muito do que ficou por fazer, mas também às relações económicas: “Os países africanos, não só Moçambique, continuam a fornecer matérias-primas aos outros [países] que depois as revendem já depois de manufaturadas; e essa relação não mudou”, declarou.

Mia acredita que, se esta relação não mudar de uma maneira radical, os africanos não vão conseguir acumular riqueza suficiente para uma assistência social e um Estado social capaz.

O escritor, biólogo de formação, recorda que mais de metade da sua vida foi passada em guerra e que o período de “enorme violência” que se seguiu às eleições de outubro de 2024 em Moçambique demonstra que o sonho de viver em paz ainda está longe.

Assume-se como um “otimista sem esperança”, não só devido à situação do seu país, mas também por causa do contexto internacional que “não ajuda”.

A 25 de junho de 1975, Mia Couto era um jornalista de 19 anos que tinha sido escalado para ficar na rádio, da qual fugiu com outros companheiros para irem para o Estádio da Machava, onde iria ser proclamada a independência.

Devido a um atraso na chegada da comitiva liderada por Samora Machel, que viria a ser o primeiro Presidente da República do país, o jovem repórter viu-se incluído na comitiva dos notáveis que iam subir ao pódio.

Hoje, 50 anos após esse dia em que Moçambique saiu “do banco de trás da vida”, Mia Couto diz não ter ressentimentos.

“Não tenho ressentimento nenhum, nem sou amargo em relação a nada. Acho que essas aprendizagens fazem parte do modo como eu hoje sou feliz”.

*Por Sandra Moutinho, da agência Lusa