O Cineteatro Louletano, na cidade onde Cristina Branco efetuou uma residência artística, e onde o disco ganhou forma, recebe esta noite o primeiro concerto de apresentação de “Eva”.
Ao longo de treze anos Eva acompanhou Cristina Branco. Do alter-ego ao título do recente disco foram treze anos. Do lançamento aos concertos foram seis meses, e muita coisa mudou.
“A Eva, hoje em dia, se calhar, é muito mais a Cristina do que era naquela altura”, partilha connosco.
“Eva” conta com uma mão cheia de convidados como autores. Francisca Cortesão, André Henriques, Márcia, Filho da Mãe, Filipe Sambado, Pedro da Silva Martins e Luis José Martins e Kalaf Epalanga, entre outros.
Do Algarve, Cristina Branco segue para Lisboa, onde na próxima quinta-feira sobe ao palco do Capitólio, seguindo depois para Aveiro, onde atua no dia 10, no Teatro Aveirense. No dia 17, é a vez de Famalicão, na Casa das Artes, "num formato de cine-concerto", e, no dia 24, do Teatro Vila Real.
Antes, uma conversa com “Delicadeza”.
“Eva” foi lançado no primeiro dia do estado de emergência. Não deixa de ser uma efeméride estranha associada ao disco. Qual foi o sentimento nesse dia?
O sentimento inicial foi de derrota. Porque o desconhecimento era total. Sentes que todo o trabalho deu em nada, ou poderia ter dado. [O disco] poderia ter passado completamente despercebido; as pessoas ter mais que fazer — e tinham, certamente. Nos dias que se seguiram, percebi que a Eva pode ser uma metáfora de tudo isto. E tudo voltou a fazer sentido.
Falemos então da Eva. Quem é esta personagem e quanto da Cristina Branco ela tem?
Vou variando no sentimento e na relação que tenho com ela. Muitas vezes ela sou eu, efetivamente; outras não tenho nada a ver com ela. Sendo que somos exatamente a mesma pessoa. A Eva é uma criação de qualquer coisa que achava importante há 13 anos. Fui criando algumas premissas com as quais me identificava, só que não conseguia chegar até elas. Hoje, a maior parte delas já existem em mim. Fui-me organizando de forma a adquirir essas capacidades, essas qualidades ou essa intenção de ser. A Eva, hoje em dia, se calhar, é muito mais a Cristina do que era naquela altura. Naquela altura era uma vontade.
De onde vêm estes atributos e detalhes? Uma fotógrafa que fuma com boquilhas, de origem judia e com antepassados na Martinica.
Imagina-me num sítio completamente isolado [em Copenhaga, na Dinamarca, “cidade natal” de Eva]. Estava à frente de um lago e tive imenso tempo para criar uma personagem. Há na Eva um lado prático, mas também muito cómico. Foram esses pequenos detalhes que me entretiveram.
O disco tem vários convidados. Os temas foram escritos para a Eva ou para a Cristina Branco?
Boa pergunta. Eu acho que mais rapidamente eles chegaram a essa união entre o alter-ego e a pessoa, efetivamente, do que propriamente eu. Dei-lhes detalhes de dois diários. O meu e o da Eva. Podiam ter escrito para cada uma delas, mas acho que uniram-nas. Percebendo o todo. Por isso, acho que escreveram para a Cristina.
Se esta conversa tivesse acontecido num qualquer dia de março ou de abril, o tom seria o mesmo? Ou nestes meses mudou muita coisa que condiciona a forma como falas do álbum?
Acho que muita coisa mudou e estaria a falar de outra forma. Não há como fugir a isso. De facto, as coisas mudaram e a maneira como me relaciono com o disco... Todas as minhas fichas tinham sido postas nesta aposta, neste cavalo. E estás na linha da partida, depois de três meses a trabalhar intensivamente — eu, os meus músicos e a Joana Lima [fotógrafa]. Criaram-se expectativas e, de repente, nada acontece.
Não sei se mudei, a verdade é que as minhas emoções... Passei de um estado de exaltação para um estado de desalento. De incógnita perante o futuro. E perante o presente. A maneira de falar deste disco, possivelmente, seria diferente.
O teu último concerto, na entrega do Prémio Carlos Paredes, em Vila Franca de Xira, foi também o último que assisti. A sensação que tenho, depois de várias conversas sobre o lançamento discos, que ficaram adiados ou que saíram mas não chegaram a ir aos palcos, é que acabamos sempre a falar sobre o passado — ainda que sobre um passado muito recente. Falemos sobre o futuro, sobre o que ele reserva? E como é que é estar a preparar concertos, sabendo que a qualquer momento podem ser cancelados?
Há uma sensação de incógnita perante o futuro, e um lado de improviso. O que não é de todo negativo. Porque, na verdade, dá um tom mais intenso. Mesmo para quem assiste e para quem faz o esforço de vir até nós. Acho que há que valorizar o que nós temos, desacelerando o processo. Conseguimos pensar à semana em vez de pensar ao ano. Esta semana as coisas vão acontecer, a semana que vem não sabemos. Isso dá uma intensidade. Será a primeira vez que vou cantar este disco, por isso também não sei qual será a minha reação. Nesse concerto que viste estávamos completamente no ativo; tínhamos feito uns setenta concertos com o "Branco" (2018) e tínhamos acabado de gravar o "Eva". A relação com o palco era muito mais íntima, convives com ele todos os dias; é teu. De repente, não. Meses depois, parece que vais entrar num espaço novo, que não te é familiar. Isso terá certamente de dar um tom às coisas, que não acho que seja negativo. O que vamos viver agora é uma coisa nova. Com um disco e uma atitude diferente. E com o público a olhar para nós de uma forma diferente. Bora lá aceitarmos o que temos e vivê-lo.
Tinhas mais de 30 datas pela Europa, quantas é que voltaram a ser remarcadas?
Em junho começaram logo a aparecer concertos para novembro e dezembro. Neste momento já desapareceram os de novembro, para a Bélgica e Dinamarca, que passaram para a nossa extensíssima agenda de 2021 — que também não sabemos se vai acontecer. Já disse aos meus filhos, preparem-se que para o ano devo estar fora de casa para aí uns três meses, se tudo isto acontecer. Há apenas um que ainda se mantém este ano, e rezemos, será na Hungria.
Sentiste que havia mais vontade para reagendar, ou para voltar com tudo à normalidade, lá fora ou por cá?
Acho que depende um pouco do país. Há atitudes diferentes, dentro da Europa, face ao que se está a passar. Ou melhor, nem todos olham para isto da mesma forma. Por exemplo, a Holanda, uma realidade que conheço bem, tem uma atitude muito mais blasé perante as coisas. Acham que isto tudo vai correr lindamente. A minha tour só foi cancelada quando as escolas lá fecharam, quase no final de março. Há diferentes velocidades.
Sendo que não sou eu que marco concertos, com os anos vou tendo relações próximas com alguns dos agentes, e o que posso dizer é que é obvio que em termos internacionais há sempre muito mais vontade de fazer concertos. Lá fora há outra predisposição, mesmo do público.
Já que trouxeste a Holanda à conversa. Que relação tão especial é essa a que se criou entre ti e o público holandês?
Acho que também não sei. Aconteceu e acontece com toda a naturalidade. Eu não fui abrir nenhuma porta, antes de mim foram outros artistas. Como se costuma dizer, vale mais cair em graça do que ser engraçado. Aconteceu assim. Os meus primeiros concertos foram lá; fiz um disco com a gravação desses concertos — fizeram eles, eu só deu autorização para gravarem e para editar. Já mais tarde, e já com agenda de concertos noutros países, editei um disco que foi muito celebrado na Holanda. Com poemas de um poeta holandês, Jan Jacob Slauerhoff, muito querido para eles, que foi contemporâneo de Fernando Pessoa e que traduzia para holandês a poesia portuguesa. Isso teve muito impacto na sociedade holandesa; foi dupla platina e vendeu milhões de exemplares. Possivelmente é daí que vem o carinho que os holandeses têm por mim.
Onde é que te sentes mais confortável quando sobes a palco, em Portugal ou na Holanda?
Ui, na Holanda. Mas não é por falta de familiaridade com Portugal. Acho que por trabalhar tanto lá fora se cria uma rotina com espaços e culturas que não são propriamente as nossas. Aprendemos a lidar. Quando chego cá parece que há uma responsabilidade diferente, não sei explicar. Fico sempre meio à toa. Hoje em dia talvez já seja um pouco diferente, mas recordo esta sensação muito forte, durante muitos anos.
O que é preciso mudar para que esse sentimento se altere? O que é que nos falta dar?
Nada, nada. Isto não é uma troca. As pessoas acham que tenho esse amargo de boca com os concertos em Portugal ou com o facto de não ser recebida da mesma maneira. Aconteceu assim. Aquela cultura, e estou a falar especificamente dos holandeses, identificam-se mais com a minha forma de cantar, com o tipo de repertório, talvez mais do que nós. Mas é assim mesmo, nós não gostamos todos de amarelo; nem da mesma forma do amarelo. Para mim não há drama nenhum. Sendo que hoje em dia, ou desde o “Menina" (2016), que tenho muitos mais concertos em Portugal.
Para terminar, qual é o fruto proibido desta Eva?
É não acreditar nas coisas. É um problema que a Eva não tem, mas que a Cristina tem. E sendo elas a mesma pessoa, há aqui uma dicotomia grande. Às vezes tenho dificuldade em acreditar e isso é uma luta constante. Mas é uma luta muito saudável e que a Eva me ensinou há treze anos.
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