Ser uma referência na cultura pop nacional é hoje um objetivo para Tiago da Bernarda, 28 anos, autor do crítico mais felino da world wide web. Mas primeiro veio o jornalismo que — felizmente? — não correu bem.

Licenciado em Ciências da Comunicação pela FCSH - NOVA, circulou por várias redações em regime de estágio "com condições muito precárias" até se aperceber que teria "pouca abertura" a propostas que tinha interesse em abordar dentro da área da cultura. "Entre estágios, surgiu esta ideia como uma espécie de escape para poder elaborar ideias que não conseguia dentro do jornalismo", conta.

Esta ideia é "O Gato Mariano", personagem de banda desenhada que nasce em 2014 pela mão do hoje ilustrador freelancer. Mordaz e sem moderação, este "gato antropomórfico" surge da vontade de Tiago fazer algo que juntasse a "crítica de música à banda desenhada".

As primeiras críticas, que agora são reunidas numa antologia de 144 páginas intitulada "O Gato Mariano: Críticas Felinas (2014-2018), foram publicadas no Tumblr. Seguiram-se contas no Facebook e Instagram e, mais tarde, uma rubrica na webzine de música Rimas e Batidas e colaborações com festivais como o Milhões de Festa ou o Zigurfest.

Sobre o nome, "O Gato Mariano", Tiago não dá mais detalhes e fica-se por um "é um nome que gosto". "Há uma história por trás, mas é uma piada pessoal", defende-se.

Como tudo começou, ou o nascimento da personagem antes do cartoonista

Começou tudo com postura mais "naïf", admite Tiago. No início "ainda queria tentar integrar o circuito jornalístico". Hoje, essa necessidade de pertença já não existe: "A minha postura e o formato de banda desenhada que faço já é quase uma sátira à crítica musical". Esse "quase" é nada mais que uma subversão da crítica musical "mais convencional" e surge de uma "frustração" pela sua institucionalização.

"Talvez seja por isso que os músicos gostam do meu trabalho, independentemente se digo mal ou bem. Eles próprios já estão um bocado fartos de como, de certa forma, se institucionalizou a crítica. Está tudo muito estandardizado, como o facto de haver uma base numérica de classificação. Os artistas precisam de algo mais genuíno e sinto que consegui trazer isso mais de forma mais original".

Ainda que afirme que não lhe cabe dizer o que é ou não a crítica, assume que, na generalidade, sente falta que os textos se assumam como "algo de autor".

"Quando leio uma crítica, já tenho uma opinião sobre o objeto, simplesmente quero saber a opinião da pessoa que está a escrever. Por isso é que, se calhar, acho interessante ver o Tiago Guillul a fazer uma crítica do livro do Jordan Peterson no Observador e dar-lhe cinco estrelas. E o Jordan Peterson ter feito retweet na sua conta de Twitter, por exemplo. Por muito que não me reveja lá, é interessante ver a perspetiva deles".

Aparte o gosto musical, o gosto pelo desenho sempre esteve lá, mas Tiago nunca pensou fazer disso algo mais. "Comecei a fazer banda desenhada a partir d' "O Gato Mariano". Já tinha um gosto, rabiscava durante as aulas e de facto gostava de desenhar. É engraçado, quando andava no secundário, toda a gente dizia que ia ser cartoonista e eu não gostava muito desse título. Associava o cartoonismo à crítica social de jornal, que achava uma estética muito feia. Hoje já consegui aprender a subverter essa ideia. Mas é engraçado que toda a gente já soubesse que ia ilustrar — antes mesmo de eu saber".

E "O Gato Mariano" não está sozinho, tem amigos. Ou teve. As outras personagens recorrentes ao longo destes anos de crítica ilustrada através da personagem felina foram-se perdendo. Figuras como o Alce, o Panda e o Frankie Chavez surgiram, diz, "numa altura em que ainda conseguia dar uma narrativa mais continua às tiras". O Panda aparecia sempre que convidava o crítico de música Paulo André Cecílio para escrever uma tira. "Aliás, foi ele que escreveu o prefácio da antologia; era a única pessoa que conseguia imaginar a fazê-lo". O Alce, que era apelidado como o "Hipster seboso da Internet", era uma espécie de caricatura de como Tiago via o público dentro dos fóruns de música online. Já com o Frankie Chavez  foi "algo aleatório". "Tenho raros momentos, quando estou a desenhar, em que me começo a rir sozinho. Quando estava a desenhar o Frankie Chavez musculado e de tronco nu foi um desses momentos. Então pensei trazê-lo de volta outras vezes, com o apoio dele [do músico]".

Das mais de duzentas críticas que já desenhou, cerca de 140 estão na antologia agora publicada. Todas elas sobre artistas ou eventos de música nacional. A preferência pela música lusófona vem, por um lado, de um sentimento inicial de que esta estava "subrerepresentada nos órgãos de comunicação social". Por outro lado, Tiago da Bernarda "tinha uma perceção de que eram sempre os mesmos artistas representados e via necessidade de uma quota de artistas nacionais". "Havia muita coisa boa feita em Portugal que não estava a ser falada", defende.

E tanta assertividade não traz inimizades? "Não há ninguém que seja publicamente anti-O Gato Mariano. Como são bonecos, as pessoas não conseguem levar a mal", diz. Tiago da Bernarda dá como exemplo uma crítica ao evento Red Bull Music Culture Clash onde escreveu que "quando se dizia o nome do Rui Pragal da Cunha três vezes, o Manuel Fúria aparecia". O próprio Manuel Fúria quis uma zine para oferecer a Rui Pragal da Cunha. "Eles sabem rir de si próprios", saúda. "Tive muita gente dentro da música que começou a puxar por mim", diz. "Comecei a inserir-me no meio porque as pessoas já estavam familiarizadas com o meu trabalho".

créditos: O Gato Mariano

"Para muitos músicos, a pergunta deixa de ser quem é o Gato Mariano para passar a ser: quando é que ele fala de mim?"

São muitas tiras, são muitos artistas e muitas críticas. Este gato já fez muitas "caças", pegando numa expressão que Tiago Guillul usou quando lhe perguntámos se podia escrever sobre a sua experiência de ter sido analisado pelo traço de Tiago da Bernarda — e o cantautor, que recentemente reeditou "IV", não se negou.

"Dizem que há trinta anos a crítica musical era popular ao ponto de alguém que por aí andasse poder tornar-se um escritor realmente popular - veja-se o Miguel Esteves Cardoso. Há vinte anos já não era tanto assim, mas, apesar de tudo, o pessoal ainda comprava o Blitz, nem que fosse para ler a secção desbocada dos "Pregões". No Século XXI tivemos a era dos suplementos culturais (o saudoso DNMais e o resistente Ipsílon), mas a crítica musical já soa a artefacto histórico E entra o Gato Mariano", começou por escrever Tiago Guillul (Guillul é o correspondente do hebraico para o seu apelido, Cavaco), numa troca de e-mails.

"Para muitos músicos, a pergunta deixa de ser quem é o Gato Mariano para passar a ser: quando é que ele fala de mim? Talvez o futuro da crítica seja assumir o que parece que o Gato assume, que a música é um pretexto, porque o verdadeiro rock'n'roll é o das suas listas. Já por três vezes o Gato Mariano arranhou discos meus. Nunca disse propriamente bem deles, nem se deu ao luxo do oposto. Como um bom felino, deu-me o privilégio de lhe sentir o ronrom e, que remédio tive eu, se não o de dar-me por satisfeito."

Também Alex D'Alva Teixeira, a metade do conjunto D'Alva, não disse que não ao repto. Ele que interpelámos pelo Instagram depois de, curiosamente, ter partilhado uma tira d' "O Gato" em que se satirizava a morte do rock'n'roll.

A ideia do "O Gato Mariano" "torna a crítica musical mais divertida" e "é entusiasmante acompanhar as aventuras de uma personagem que gostamos", diz-nos. "É bom ver uma coisa que se tornou tão séria ser feita com esta dose de humor, sem deixar de ser brutalmente sincero. Fiquei contente, não só pela honestidade das reações, mas em particular na crítica ao 'Maus Êxitos', senti que o gato compreendeu perfeitamente o que fizemos".

A Antologia, limitada a 700 exemplares, será editada pela Chili Com Carne, uma "referência máxima na banda desenhada em Portugal" para Tiago, e tem lançamento marcado para dia 19 de janeiro na Casa Independente, em Lisboa. Os Colónia Calúnia, com a participação de L-Ali, Tilt, Nerve, Pedro Mafama e IGUANA PERIGOSA dão música à noite a partir das 22h00. Quem chegar mais cedo pode ver as críticas [ou neste caso, as tiras] expostas.